A natureza instintiva do Homem aparece reflectida num
conjunto de fenómenos sociais, económicos, políticos, culturais que têm vindo a
marcar a evolução da espécie. O século XXI é paradigmático deste paradoxo
fundamental entre o homem enquanto ser pensante, dotado de ferramentas
intelectuais que utiliza ao serviço da produção de recursos que sustentem e
promovam o seu crescimento, e, simultaneamente, provido de um ímpeto
destrutivo, pulsional, que lhe permite utilizar perversamente o conhecimento
como forma de ataque e de aniquilação.
O que tem sucedido com o sistema ecológico é paradigmático
disso mesmo, embora pudéssemos evocar outros tantos fenómenos onde esta
profunda contradição surge espelhada. Os conflitos no médio-oriente, as tragédias
com os refugiados no mediterrâneo, as ideologias xenofóbicas que sustentam
atentados como aquele sucedido em Oslo, até à falência de alguns dos sistemas
económicos do ocidente, são representativos de uma natureza animal, impulsiva e
assoladora do homem.
Não sabemos se inspirado por algum destes fenómenos, mas
inegavelmente marcado pela conjuntura em que é realizado, surge o novo filme de
Woody Allen – Homem Irracional. Este que, tal como de costume, traz até à tela
as preocupações existenciais que balizam o seu trabalho, colocando em cena os
aspectos mais ocultos da natureza humana. Tomando como pano de fundo a crise
existencial de um professor de filosofia, leva-nos a percorrer ao longo do
filme os lados mais perdidos e desorganizados do psiquismo.
Abbe (Joaquin
Phoenix) veste a pele de um homem profundamente deprimido, incapaz de obter
prazer ou de encontrar um sentido para a sua vida. As relações surgem
esvaziadas de significado, encontrando no álcool o refúgio possível. Neste
percurso diletante com que se faz mover pela sua realidade, é surpreendido por
um encontro com estranhos, que desperta em si um ímpeto de agir em prole da
justiça, capaz de mobilizá-lo e retirá-lo do afundamento depressivo em que se
encontra. A partir de aqui, Abbe enceta um plano no qual é capaz de reinvestir
a sua energia, encontrando o prazer outrora perdido, embora levando ao extremo o seu propósito,
acabando por culminar num crime. Um crime que lhe traz uma omnipotência
desmedida, capaz de distorcer a realidade, os valores e tudo o que representava
as suas convicções, agora visto em perspectiva pelas lentes distorcidas de um
olhar enlouquecido, movido por um desejo pervertido de dar rumo à sua
existência. Ética, moral, perigo, dor, sofrimento passam a constituir um plano
secundarizante na vida de Abbe, que toma a acção sem medir consequências.
Observar o
comportamento de Abbe é perceber o quanto a sua incapacidade de encontrar um
devir para a sua história, aliado a um estar sem-lugar permanente, o foi
conduzindo a uma profunda degradação de si, ora de forma mais silenciada e
perdida, capaz de despertar empatia ao outro, ora elevando-o a um estado de
loucura, que acabou por conduzi-lo à sua própria morte. Com efeito, este lado
destrutivo, sendo vivenciado numa faceta mais depressiva ou na espiral de delírio
que foi emergindo, não deixa de retratar os lados mais sombrios do homem,
capazes de ultrapassar todos os limites, numa esfera onde a ética, a moral ou a
própria realidade parecem perder significado. Novamente, neste enredo, Woody
Allen a revelar a sua extrema sensibilidade de questionar a natureza humana.
O Canto da
Psicologia,
Dr.ª Joana Alves
Ferreira