quinta-feira, 30 de abril de 2020

Era uma vez um casal...




Era uma vez um casal. Os seus membros acordavam a horas diferentes, tomavam o pequeno-almoço à pressa, iam trabalhar, trocavam umas mensagens ao longo do dia, voltavam do trabalho cansados, jantavam, estavam juntos e iam dormir, às vezes ao mesmo tempo mas, normalmente, também aqui, em horas diferentes.

Este casal, para a maior parte de nós, já não existe. Agora, acordamos e estamos juntos: de manhã, de tarde e de noite. Podemos fazer actividades e as nossas rotinas em horários diferentes mas estamos em casa. Sempre na mesma casa!! (e não esquecer, continua a ser importante ficar em casa!!!).

Como podemos viver e sobreviver a esta super exposição que, quase sempre, apenas nos sonhos adolescentes de paixões eternas e avassaladores, de amor e uma cabana, faz sentido e é desejada? A que sinais devemos estar atentos para garantir que o casal continuará vivo e robusto após esta fase?

Parece de especial importância pensar em manter ou criar três tempos fundamentais:

·         Tempo individual;
·         Tempo de partilha;
·         Tempo de intimidade.

Estes tempos são momentos importantes para manter a sanidade e o salutar crescer do Casal. Se perdermos a capacidade de estarmos sozinhos (para ler, meditar, ouvir música, entre outros) também estaremos a perder a capacidade de lidar com algumas situações internas, aumentando assim o peso sobre o casal.
Os outros tempos: partilha e intimidade são de grande utilidade para evitar e resolver conflitos e manter momentos de proximidade diferentes daqueles que, a simples presença 24h por dia, nos promove.

Esta fase da nossa vida social, comunitária, de família,casal e individual levanta muitas questões novas sobre a forma como experienciamos estes momentos. Em casal esperamos um aumento de vivências nem sempre positivas. Entre outras, podemos encontrar e estar atentos às seguintes:

·        Momentos de incompreensão face à ansiedade que esta pandemia nos trás;
·        Discussões, despoletadas por situações aparentemente insignificantes;
·        Períodos de zanga e “birra”, pós discussão mais prolongados;
·        Períodos de tristeza e choro não reconhecido ou apaziguado pelo outro;
·        Cansaço das pequenas coisas que o Outro (sempre) fez de forma regular;
·        Períodos de maior silêncio;
·        Explosões de, chamar-lhe-emos, mau humor mais regulares e violentas (aumento de           ofensas);  
·        Diminuição na nossa capacidade de reconhecer os nossos próprios erros;
·        Um regresso a situações dolorosas, aparentemente ultrapassadas, do passado.

Estas situações podem acontecer em todos os casais e muitas delas já fazem parte do quotidiano de alguns. No entanto, não indicam, necessariamente, que o casal esteja à beira da ruptura ou que o fim está próximo. Indica que o casal deve estar atento a tentar, através dos tempos acima referidos: individual, de partilha e de intimidada, falar sobre as situações que os estão a perturbar. Muitas vezes existe a tentação de não aumentar o problema ou de não voltar ao problema. E os acontecimentos traumáticos vão surgindo e vão-se acumulando sem que sejam falados e trabalhados. É um erro.

Usando os tempos de partilha, os casais podem ter um tempo, definido pelo casal, para falarem, por exemplo, das rotinas do dia, de quem faz o quê, do que será o jantar ou o almoço, reduzindo assim pontos de conflito. Este tempo de partilha, pode existir, num pequeno-almoço conjunto ou noutro período definido pelo casal.

O tempo de intimidade pode servir para estreitar laços, para conversar sobre tristezas ou só para estarmos em silêncio, mas juntos. Sem um ecrã, sem objectos a perturbar o estar próximo. Estar, sem outro motivo que não estar ali para e com o outro, muitas vezes, é só o que podemos fazer …e já é tanto!!

Sabemos que é difícil a criação destes momentos e a manutenção dos mesmos. Por isso, o Canto da Psicologia, tem à Vossa disposição técnicos especializados que podem ajudar os casais nesta fase difícil que todos atravessamos, e os casais, em especial, atravessam. Continuamos aqui para vocês. E, façam o que fizerem, continuem a falar uns com os outros…

Dr. João Martins
Psicólogo Clínico - Terapeuta de Casal e Família
O Canto da Psicologia





terça-feira, 28 de abril de 2020

As crianças, o confinamento e o exercício físico...





As nossas crianças estão de volta à escola, mas agora em casa. Sabemos o quão difícil é para os pais, gerirem trabalho a partir de casa, tomar conta das crianças e ainda terem tempo para as tarefas domésticas e para eles próprios.

 Não raras vezes, com a falta de tempo, o exercício físico passa para segundo plano. Com as crianças em casa, pode tornar-se ainda mais difícil gerir estes estímulos. Assim, é importante que as crianças assistam às aulas de Educação Física através da televisão. A situação não será a melhor, mas face ao contexto, é preciso compreensão e salientar os benefícios do exercício.

É de reforçar, que o exercício é fundamental para a melhoria do estímulo cerebral, funcionamento cognitivo e para melhorar e otimizar a gestão do stress a ansiedade, em grande parte decorrente do confinamento.

A ciência já comprovou que o exercício físico regular promove melhoria do rendimento escolar, porque torna o cérebro mais rápido, ajuda a preservar as suas capacidades e permite aumentar a plasticidade do mesmo. Assim, em tempos que nos desafiam a todos, se queremos as nossas crianças mais atentas, mais concentradas e com maior capacidade de lidar com a responsabilidade e gestão emocional, devemos permitir que o exercício físico não saia das suas rotinas, coabitando lado a lado com os estudos.


Bons treinos
Hugo Silva



Instagram: hugo_silva_coach
-Licenciatura Educação Física/Especialização Treino Personalizado
-Pós-Graduação em Marketing do Fitness 
-Pós-Graduando em Strength and Conditioning
-Director Técnico ginásio Lisboa Racket Centre


quinta-feira, 23 de abril de 2020

A família num mundo “Normal” Mais do que “ficar tudo bem” é preciso ficar tudo melhor.







A família encontrava-se pouco, por vezes, passavam-se dias, noites, meses, anos, tudo numa roda-viva, sem parar e faltava sempre tempo, tempo para amar, tempo para estar só por estar, sem fazer nada, tempo para simplesmente desfrutar de momentos em família. A nova crise Covid-19 trouxe múltiplos problemas e desafios a todas as famílias, estava tudo habituado a não ter tempo suficiente. Uma vez que no “mundo normal” havia dificuldades em manter momentos de partilha com os outros, horários de trabalho infindáveis, imensas responsabilidades, atividades extra curriculares, entre outras muitas distrações que pareciam não nos deixar tempo, para pensar, apenas para estar quieto e refletir. O que é a vida normal? Estávamos completamente imersos em atividades, numa correria, em que não havia espaço para ficar com os nossos pensamentos e aproveitarmos a nossa companhia. Estar só, faz tão bem, pois de facto não estamos sós, estamos acompanhadas pelos nossos sonhos, projetos, ideias, criatividades, imaginações, pensamentos, sentimentos, lembranças, memórias, que resultaram das nossas relações intimas. O movimento estar sozinho e estar acompanhado, é fundamental para o equilíbrio da saúde psíquica. Ter tempo para o “ócio” descansar apenas, ter saudades, estar consigo a pensar nos outros, não é um ato de preguiça é absolutamente necessário, para adquirir uma boa forma de pensar sobre si próprio, sobre os outros e sobre tudo. Se estivermos sempre numa agitação permanente, acabamos por não viver plenamente pois, é necessário, parar para recordar, para sonhar, para criar significado às nossas experiências. É desgastante viver, a correr e isto para poder encaixar em ideais de perfeição incutidos quer pela família, quer pela sociedade de narcisismo doente. A questão não é o tempo, o problema é se tiver esse tempo, como agora, o que vou fazer com ele, como o vou aproveitar? Vão haver famílias que irão encarar como uma oportunidade para estreitarem mais os laços afetivos, mas outras que estiveram sempre a fugir do estar com, que já não sabem o que é desenvolver interações em conjunto.

Neste sentido, agora, com este grande desafio para as famílias, de terem de estar todos juntos, todos os dias e a todas as horas, a necessidade de intimidade saudável passa a ser ainda mais fundamental. Pelo que é necessário criar momentos de descontração sozinhos, a ver um programa ou simplesmente, estar um tempo no quarto descansado, é muito importante que o casal respeite isto e que as crianças comecem a aprender, quais os limites do outro, como empatizar e respeitar os ritmos da mãe e do pai. São dinâmicas relacionais, que nesta altura podem dificultar o bem-estar na família, pelo que a criação de regras saudáveis e rotinas, torna-se fulcral.

O período de adaptação ao covid-19 implica um luto sobre como se conhecia a vida antes desta Pandemia. Emergiu em todos uma estranheza no dia-a-dia, o ter de estar em casa, o não poder passear de forma segura, pois existe um perigo invisível, mas que causa tantos danos. As rotinas diárias, a forma de estar na vida, a convivência social, foram completamente postas de parte e alteraram-se drasticamente. As dificuldades económicas e sociais têm vido a piorar, é emergente pois, a adaptação a uma nova forma de estar na vida. Mas que forma é esta? Por onde começamos? O que podemos fazer para nos reequilibramos a esta nova realidade?


Embora ainda estejamos todos em fase de adaptação, é natural que, aos poucos, comecemos a dar os primeiros passos na mudança que toda a crise obriga, mudar não é necessariamente mau, a mudança é das certezas maiores que temos na vida, uma vez que nada fica igual. Para os que estavam no “céu” antes desta crise ou assim consideravam. Esta situação acaba por obrigar a impor criatividade e capacidade de reajustamento, uma vez que ninguém escolheu este momento. Sim, existem acontecimentos externos incontroláveis por todos, nomeadamente catástrofes naturais, tsunami, terramotos, ataques terroristas, Pandemias infeciosas, não temos controlo sobre tudo, muito menos em relação a estes fenómenos. A noção de ausência de controlo, perante situações externas e adversas é encarada de forma distinta, consoante o tipo de personalidade, experiencias de vida e a capacidade de adaptação. Assim sendo, importa sublinhar que mais do que “ficar tudo bem”, é preciso ficar tudo melhor, é urgente, mais generosidade, mais equidade, mais amor, mais empatia e menos julgamento e critica. Pois dado que estamos a atravessar este período atípico, já agora que sirva para crescermos, evoluirmos e modificarmos o que não estava tão bem, na nossa sociedade, pode ser este o momento, esperemos que sim.

Assim, podemos entender que a par com a crise e o mal-estar que dela advém, também surgem, grandes oportunidades de crescimento, desenvolvimento, resiliência e sabedoria, tão essenciais à evolução da humanidade.


Mafalda Leite Borges - Alcochete
Canto da Psicologia




terça-feira, 21 de abril de 2020

Diz-me como vai o teu sono e eu dir-te-ei que exercício físico precisas...





Continuamos por casa de quarentena e necessitamos de manter uma boa higiene física e mental. Processos de confinamento e de incerteza sobre o futuro, levam muitas vezes a uma desregulação de vários padrões físicos, entre os quais, o sono.

O sono influencia hábitos alimentares, peso, imunidade, metabolismo, etc. Noites mal dormidas durante dias consecutivos, fazem disparar níveis de cortisol, diminuir a hormona de crescimento, testosterona, além de aumentarem a resistência à insulina. Considerando isto tudo, a literatura reforça uma vez mais, que em períodos de isolamento, o treino de força quer seja feito com cargas externas ou apenas o peso corporal, tem um papel preponderante para ajudar a regular os níveis de sono, aumentando sensação de bem-estar, contribuindo para um sono mais profundo, diminuindo stress, ansiedade e ajudando na manutenção de um peso saudável.

O treino de força feito em casa pode e deve passar por exercícios básicos de movimento. Exercícios de empurrar, puxar, rodar, mudar de nível, ou seja, agachamentos, peso mortos, extensões de braços, elevações, press, etc. Optar também por treinos curtos e com pausas mais longas, quando os níveis de stress e ansiedade são elevados.

Caso não tenha experiência de treino, a melhor solução passa por procurar algum profissional de exercício que o ajude a começar a mexer-se em casa, tendo sempre em conta que não existem processos milagrosos. O treino contempla imensas variáveis, internas e externas, sendo que a consistência ao longo do tempo irá ditar uma melhoria na qualidade de vida.

Bons treinos
Hugo Silva



Instagram: hugo_silva_coach
-Licenciatura Educação Física/Especialização Treino Personalizado
-Pós-Graduação em Marketing do Fitness 
-Pós-Graduando em Strength and Conditioning
-Director Técnico ginásio Lisboa Racket Centre





quinta-feira, 16 de abril de 2020

Dia Mundial da Voz - Como pode a palavra acalmar o medo...





Quando fiz uma pesquisa no google sobre a data em que iria ser publicado este artigo descobri que o dia 16 de Abril é o dia mundial da voz - fantástico! - pensei eu. Isto aconteceu no período ‘pré-Covid-19’ e já aí me pareceu uma ótima coincidência, sendo a voz o instrumento por excelência do meu trabalho enquanto psicóloga. Atualmente, quase um mês após ter sido declarado o estado de emergência no nosso país, é ainda mais pertinente pois o direito à voz é algo que preservamos nestes tempos de isolamento, um direito que a pandemia não nos conseguirá arrancar.

Ao nascer o bébé solta um grito, o primeiro choro pelo qual todas as mães e pais anseiam para se assegurarem de que tudo está bem. Este grito vem na sequência da primeira separação entre o bébé e a mãe e, segundo Sigmund Freud, não vem ainda dirigido a alguém, trata-se de uma tentativa do recém-nascido de exprimir o seu sofrimento. São as palavras da mãe, que se baseiam na interpretação subjetiva daqueles primeiros choros (formulando a hipótese de que poderá dever-se a um desconforto, frio, fome, dor, medo, etc.) que permitem que se acalme a angústia resultante da primeira separação, o primeiro trauma, transformando estes gritos em apelo, em comunicação.

Podemos considerar que a realidade que vivemos, desde que a ameaça de um novo vírus se impôs sobre o mundo, é potencialmentetraumática. Nunca estamos preparados para um trauma, o trauma abate-se sobre nós e cada um responderá de forma diferente mediante as suas experiências, as suas relações, os seus medos, as suas angústias, mediante a sua subjetividade.

Perante esta ameaça observamos uma exacerbação de alguns sintomas já existentes, o aparecimento de outros ou ainda a estabilização em certos casos. A palavra é um excelente mecanismo de defesa na medida em que permite enunciar, nomear e tentar circunscrever este perigo desconhecido. Assim assistimos a uma proliferação de artigos científicos ou de opinião, de programas de humor, de produções literárias ou musicais, de houseparties, de simples chamadas telefónicas, de posts nas aplicações em voga ou em blogues como este. A voz e o laço que esta nos permite construir com os outros é essencial em tempos de isolamento.

Numa entrevista à revista italiana Panorama, no ano de 1974, Jacques Lacan dirá que é essencialmente o medo que leva as pessoas a recorrer a uma psicoterapia, o medo que surge quando não entendem algo que sucede nas suas vidas, e que se converte pouco a pouco em pânico. Respondendo à questão sobre qual seria o tratamento indicado, Lacan diz indubitavelmente ser a palavra. O medo aparece então em face do desconhecido, do que não se pode explicar nem perceber, e neste caso há muito que não se sabe sobre o virus SARS-CoV-2 que, para além de invisível, não distingue classes, raças, situação económica, geográfica ou social.

Para terminar, gostaria de citar a mensagem que encontrei naquele que me parece ser o sítio oficial do Dia Mundial da Voz : “Em tempos de crise, como aquele que vivemos, a voz humana pode acima de tudo unir e confortar as pessoas”.

Nós, a Equipa d’O Canto da Psicologia, continuamos por aqui disponíveis para o ajudar a tentar simbolizar o trauma, encontrar um significado, explorar as circunstâncias maioritariamente inconscientes e sempre singulares que causam o sofrimento, e ulteriormente encontrar as palavras que poderão acalmar o medo.









sábado, 11 de abril de 2020

Até poderia ser uma Páscoa como tantas outras...






Até poderia ser uma Páscoa como tantas outras: cidades mergulhadas em incenso e coloridas pelas flores; altares cobertos de arranjos florais; a cor roxa a predominar sobre todas as outras do arco-íris; Procissões a tomarem forma e "as gentes", "as gentes da nossa terra", a reviverem uma das datas mais queridas entre todos, deixando as tradições seculares entrarem e tomarem posse do lugar principal da casa de cada um.

Uma comemoração de cor, alegria, com muitos sabores e cheiros familiares que nos lembrariam momentos de um passado, num tempo presente recheado de folares e amêndoas, culminando no borrego, rei do almoço de um domingo de Páscoa, em família!

Esta é, efectivamente, uma Páscoa diferente e especial: recatada, silenciosamente habitada e percorrendo um qualquer caminho de uma Procissão em solidão.

Mas, "as gentes da nossa terra " não estão em solidão, estão antes em comunhão com o que foi pedido a cada um, num tempo como este ! E tal como o nome Páscoa, de origem hebraica, vem da palavra Pessach que significa "passagem", também "as gentes da nossa terra" sabem que a seu tempo, também este tempo, vai ser visto no futuro como um "tempo de passagem"... assim esperemos...


Até lá, em meu nome e em nome de toda a Equipa d' O Canto da Psicologia , o nosso desejo de que, a sua, seja uma Santa e Feliz Páscoa!






quinta-feira, 9 de abril de 2020

Atenção à crise pand…existencial!






A situação de pandemia pelo Covid-19 marca uma restrição acentuada e extraordinariamente invulgar do mundo externo. De facto, o isolamento, sobretudo em casa, de milhões de pessoas, manifesta uma grande redução da dimensão espacial da existência humana. Neste modo restrito de viver, sentimentos contraditórios tendem a ser vivenciados face ao espaço alargado da convivência social - o qual, entretanto, foi drasticamente abandonado - nomeadamente o desejo de regressar rapidamente a esse mundo externo habitual, e o medo face à ameaça presente do Covid-19. Neste balanceamento de sentimentos difíceis de conciliar, tem sobressaído muito mais, pelo menos assim parece em Portugal, o medo protector face a si próprio e aos outros, escolhendo-se predominantemente o confinamento em casa.

Neste sentido, nas circunstâncias actuais, a maioritária percepção de redução do mundo externo, associa-se, portanto, a uma vivência mais ou menos persistente de medo e de grande incerteza face ao futuro. Deste modo, dadas estas tão angustiantes condições de vida a nível mundial, poder-se-á até definir este período como uma crise existencial da Humanidade no seu todo. 

É importante frisar que este modo de estar tão difícil e penoso na relação com o mundo externo consubstancia-se, com maior ou menor intensidade em cada pessoa, como um convite implícito à interioridade

Por conseguinte, o mundo interno poderá ser acedido, em grande medida, como um refúgio possível face à «tempestade» continuada que se assiste «lá fora». Naturalmente, as qualidades de segurança, tranquilidade e conforto do refúgio interior serão, certamente, muito variáveis de pessoa para pessoa, sendo, ainda assim, certo, que este abalo com tanta magnitude no viver habitual humano conduz à necessidade premente de cuidar o melhor possível desse «lugar» exclusivo de cada um. Enquanto a assustadora turbulência externa durar é preciso lidar com as decorrentes maiores limitações concretas de vida, mas também, inevitavelmente, com a tradução que toda essa situação extraordinária incita no domínio «subterrâneo» e invisível de cada pessoa. Que efeitos são esses lá nas profundidades do ser? Em que medida a estrutura do que se sente e pensa face a si próprio e à relação com os outros está a ser alterada? Aquilo que se pretendia enquanto projecto do viver está a ser modificado de que forma? 

Dado o enquadramento excepcional que a Humanidade está a viver, essa reflexão profunda e questionante será muito relevante para encontrar renovadas respostas para o existir pessoal. E é nesse âmbito que a psicoterapia se integra e será indubitavelmente um recurso valioso, não só pela sensação sistemática de apoio obtido face às adversidades concretas a enfrentar no dia-a-dia mas, sobretudo, pelo acesso à  experiência intersubjectiva da relação psicoterapêutica, a qual tem um potencial de maior amplitude de compreensão do que a reflexão não partilhada. De facto, a psicoterapia permite o conciliar expansivo das perspectivas diferenciadas de paciente e psicoterapeuta sobre as grandes e pertinentes questões a serem encontradas nas profundidades da pessoa acompanhada, lá onde o viver íntimo anseia por uma escuta e palavras atentas, empáticas e transformadoras. 



sexta-feira, 3 de abril de 2020

Eu não tenho saudades de um abraço! Eu tenho saudades da liberdade de poder dar um abraço...







Eu não tenho saudades de um abraço! Eu tenho saudades da liberdade de poder dar um abraço.

Hoje fui visitar a minha mãe com 82 anos! Sim, fui visitá-la! 

Ouvirei com certeza vozes contestando e  reclamando da minha insensatez e completa loucura, criticando a minha aventura… a quarentena a que me obrigam começa a justificar este entorpecer de racionalidade e levada pela emoção e pelo afecto tenho saudades do abraço da minha mãe ou, saudades da liberdade de poder dar um abraço à minha mãe….

Entre os dois metros de distância a que nos obrigámos e nos olhámos,  havia uma rede, uma rede suficientemente forte e poderosa que não permitiu o nosso abraço, nem o nosso tocar de dedos, nem o contágio do vírus (ele anda por aqui, nunca fiando!). Por instantes,  julguei-me em pleno holocausto, separada por uma rede tentando tocar o intocável;  estas  imagens que vamos lentamente esquecendo e reduzindo-as ao esfumar de memórias, não vividas, mas sabidas, e perpetuadas ao longo do tempo, herança de uma grande guerra mas não desta guerra, por enquanto!

Por instantes, só, só por uns instantes, esta imagem toldou-me o olhar, mas não o sentir! E o seu sorriso, aquele sorriso, aquele olhar ( do qual me lembro tão bem, espelhando uma infância bem longínqua, onde esse mesmo olhar me transmitia segurança, confiança e que tudo ia correr bem, mesmo que os 40 graus de febre, devido à malária, me prendessem a um sem fim de alucinações) resgatou-me, mais uma vez , de um medo paralisante deste principio da realidade que me impede, mesmo  à distância, a mais de dois metros de distância de lhe  dar um abraço e um beijo, perdido no ar, numa imensidão de espaço onde se respira sol, primavera e vida… Eu precisava desse olhar para reforçar a capacidade de esperar...

Não saí do nosso Concelho!! Tão pouco fui a pé! Entre campo, prado, flores e uma rede, suficientemente forte,  demos o nosso abraço, matamos as saudades uma da outra, num  jeito alienado, mas cheio de afecto…

- Já sabes que não temos almoço de Páscoa!!!
- Sei mami!

- Quando pudermos, comemoramos tudo junto: o meu aniversário, o da tua irmã e o almoço de Páscoa.
- Sim mami!

- Deixa-te estar sossegada, não precisas de vir até aqui, falamos pelo telefone e quando quiseres fazemos facetime ou whatsapp!
- Sim mami!

- Agora vai-te embora que está sol e não trouxeste chapéu, e além disso, não devias vir…
- Mesmo que seja só para te ver e matar saudades?

- Não precisas disso. Basta saberes que estou viva e gosto de ti… o resto, o mundo encarrega-se!!


E vim-me embora, cumprindo rigorosamente o que ela me ordenou porque sei que o fez cheia de afecto, carinho e medo!

Para a semana, entramos na semana Santa. Não há Páscoa em família num tempo como o de hoje; assim como não há aniversários, nem casamentos, nem funerais… há só um inabalável sentimento de vida suspensa  e um  futuro refém de um vírus. Mas há o olhar da minha mãe que me diz, "vai tudo correr bem"  e o olhar dela nunca se enganou.

A si, que me lê desse lado, fique em casa, abrace os seus à distância e sonhe que o está a fazer separado por uma rede feita em pedaços de fantasia… logo, logo, vai tornar este sonho realidade…


Drª.Ana de Ornelas - Lisboa




quinta-feira, 2 de abril de 2020

Porquê fazer psicoterapia? - Reflexões acerca do que torna a relação terapêutica psicodinâmica numa relação única.





Durante a nossa vida estabelecemos muitas relações - umas mais saudáveis, completas ou com um maior potencial de satisfação; outras nem tanto, menos saudáveis, parciais ou com um maior potencial de frustração. A perspetiva psicanalítica ou psicodinâmica observa todas estas relações e, no contexto terapêutico, tem o objetivo de devolver à pessoa (considerando sempre a sua história individual) o que a própria já contém dentro dela, impossibilitada, no entanto, de ver em si mesma.
A relação terapêutica num contexto dinâmico é uma relação única. Um modelo de relação que não se encontra em mais lugar nenhum. Mas mais concretamente o que oferece a relação terapêutica dinâmica ou psicanalítica de tão diferente de outros tipos de relação?

Em primeiro lugar
Em primeiro lugar, e também comum a outros tipos de psicoterapia, a relação paciente-psicólogo é única pelo lugar que a pessoa que vai em busca do autoconhecimento ocupa. Neste contexto, o paciente está em primeiro lugar, num lugar de destaque. É um espaço privado e particular para cada pessoa - durante aquele tempo e aquele espaço a única pessoa importante é de facto a pessoa à nossa frente - o que diz, o que não diz, o que sente e o que não se permite a sentir.
O outro lugar
No entanto, este lugar destacado do paciente não é por si só suficiente para afirmar a singularidade da relação terapêutica psicanalítica. O lugar do psicólogo é bastante importante no sentido do que o profissional pode oferecer à pessoa que procura compreender-se melhor. Este lugar abarca então a formação do profissional - de onde advêm ferramentas essenciais para a compreensão do paciente nesta relação - e o próprio investimento pessoal do profissional. Um bom profissional nesta área faz ou já fez o seu próprio processo psicoterapêutico e também supervisão (processo onde se discutem os casos, mantendo sempre a privacidade e o anonimato, de modo a refletir potenciais pontos cegos do psicólogo sobre os seus pacientes) - possibilitando assim um olhar sobre si e sobre o outro bastante mais claro e desintoxicado de algo que não pertença a cada relação terapêutica em particular.

Novo lugar
Até agora, como algo que não se encontra em mais nenhuma relação, podemos observar duas particularidades. A primeira que destaca o paciente, e a segunda que tem que ver com o investimento do profissional. Em conjunto e na relação estabelecida, o espaço total para o paciente dentro da sessão e o espaço interno de compreensão por parte do profissional permitem a reflexão desintoxicada acerca do paciente – permitem o espaço para o novo. Existe ainda algo especialmente particular relativamente à perspetiva psicanalítica ou psicodinâmica, metaforizando: é como se existisse uma estrada em que o paciente é o condutor de um carro e o psicólogo o seu copiloto. Quem escolhe o caminho é de facto a pessoa que conduz. A função do copiloto passa por estar atento a todos os outros fatores que possam prejudicar ou ajudar o piloto na sua condução - os obstáculos no seu caminho; o caminho já percorrido; o estado do carro; o estado do piloto, ... - mas nunca escolher o caminho pelo piloto, uma vez que não é essa a sua função. É o paciente que é visto como o maior detentor de conhecimento acerca de si mesmo e, portanto, é este que conduz o caminho da sua análise. Voltemos então a olhar novamente para o lugar do psicólogo de perspetiva psicanalítica. Este, de forma a observar tudo como realmente é para cada pessoa, precisa de escutar aquilo que a pessoa diz, o manifesto, e escutar também aquilo que a pessoa não diz - aquilo que está escondido naquilo que está a ser dito e que, por alguma razão, não está a ser falado - o latente. Voltando à metáfora anterior, faz parte da função do copiloto (psicólogo) estar atento tanto ao caminho que está a ser feito pelo piloto (paciente) como aos ângulos mortos impossibilitados de serem vistos por este, por estar a desempenhar outra função, já exigente por natureza, conduzir.
Concluindo, este novo lugar que se cria entre o paciente e o psicólogo tem espaço para acontecer uma vez que existe um olhar em relação ao que está manifesto e ao que está escondido, em conjunto com os lugares ocupados pelo psicólogo e pelo paciente acima descritos. Na relação terapêutica é elaborada a dois uma mistura exclusiva, especial e particularmente íntima apenas possível de se experienciar num processo psicoterapêutico ou de psicanálise. 



Dr. Sérgio Pereira - Setúbal
O Canto da Psicologia