sexta-feira, 30 de março de 2018

A semente de quem somos...







É nas relações que estabelecemos ainda enquanto crianças que se encontra a origem do que sentimos, daquilo em que acreditamos e da forma como nos relacionamos com os nossos outros significativos. Apesar de não termos normalmente memórias dos nossos primeiros anos de vida, é nesta fase que as sementes de quem somos são lançadas à terra. Não se pretende com isto reduzir a essência do ser humano a este período inicial de vida; naturalmente que as nossas experiências ao longo da vida também nos moldam. No entanto, há que olhar com atenção para esta fase tão especial, feita de primeiros encontros e desencontros.

Durante os primeiros anos de vida, é através da interação com as figuras cuidadoras que se torna possível a organização interna das crianças. Estas figuras são essenciais na maturação pulsional e estruturação do Eu que se dá na primeira infância, havendo uma transformação das experiências partilhadas em esquemas cognitivo-afetivos. Estes irão estruturar a forma como as crianças pensam e se sentem em relação a elas mesmas e às outras pessoas, o que lhes permite olhar para o mundo de uma forma simplificada, à luz destas experiências precoces.

Que características devem pautar estas figuras para que haja um desenvolvimento harmonioso na criança? Para que o mundo seja olhado com lentes realistas mas também essencialmente positivas? Arriscamos dizer que não sabemos. Não existem fórmulas certas, conselhos infalíveis e receitas mágicas. No entanto, apontamos duas características que nos parecem absolutamente essenciais: o afeto e a autonomia.

Sobre o afeto muito haveria por dizer, mas optamos por não nos alongar. Preferimos deixar a sua mente aberta às mais variadas manifestações de amor que possam existir e que façam parte do seu quotidiano: um beijo e um abraço ao acordar, um olhar cúmplice num momento de travessura, uma “colher-avião” à hora de jantar, ou uma história antes de adormecer. É a partilha, a cumplicidade, o desfrutar dos momentos que se passam em família.
Na autonomia, há que respeitar as várias fases em que as crianças (e também as famílias, diríamos nós) se encontram. No começar a andar e afastar da mão sempre pronta a amparar, e que de repente começa a ter de sacudir terra dos joelhos, limpar lágrimas da face e, mesmo assim, encorajar a seguir em frente. Na roupa que não combina e que foi escolhida por pequenas mãos, mas que, desde que ajustada à estação do ano, talvez possa ser simplesmente vista como muito criativa. No assistir a um tomar de decisões com as quais não se concorde mas que, apesar de tudo, poderão ensinar muito sobre o que são consequências. No acreditar em coisas diferentes, num pensamento crítico e promotor de discussões saudáveis, com a conquista de uma maior capacidade de argumentação.

Porque as sementes lançadas à terra se tornam, também elas, em árvores independentes, querem-se raízes fortes e resistentes às intempéries da vida.


Drª Carolina Franco
O Canto da Psicologia



terça-feira, 27 de março de 2018

Mexa-se pela sua saúde e pela sua vida...








Os dados já não são novos, mas os últimos estudos científicos na área do exercício comprovam que, a inatividade física é tão mortífera como o consumo de tabaco.

A revista Lancet avançava já há meia dúzia de anos, que uma em cada dez mortes prematuras em todo o mundo tem a sua origem no sedentarismo, ou seja, falta de exercício físico. Sendo que, ao olharmos para o número de mortes provocadas prematuramente pelos hábitos tabágicos, estes são sensivelmente iguais. Na primeira década do séc. XXI, estima-se que, cerca de 5 milhões de mortes prematuras em todo o mundo na idade adulta, estão relacionadas com a falta de exercício físico regular.
A estas mortes, ligam-se doenças como: doenças cardiovasculares, cerebrais, diabetes tipo 2 e vários tipos de cancro.

Em teoria, um aumento de 10% de pessoas a começarem a praticar exercício físico regular, pode evitar a nível mundial a morte a cerca de 500 mil pessoas ao ano.

As recomendações para uma vida ativa e saudável, continuam a ser: 30 minutos diários de exercício moderado a vigoroso pelo menos 5 vezes por semana.

Mexa-se pela sua saúde e pela sua vida.

Bons treinos


Hugo Silva 
Instagram: hugo_silva_coach
Linkedin: http://linkedin.com/in/hugo-silva-1b8295132
-Licenciatura Educação Física/Especialização Treino Personalizado
-Pós-Graduação em Marketing do Fitness 
-Pós-Graduando em Strength and Conditioning
-Director Técnico ginásio Lisboa Racket Centre 




quinta-feira, 22 de março de 2018

Educação para a morte – uma educação sobre e para a vida.







Potencialmente, a consciência de que o tempo que dispomos é limitado faz com que mobilizemos com maior frequência a expressão de amor na interação com o meio que nos rodeia. De uma forma global, as investigações indicam que a proximidade com a morte, como por exemplo no caso de pessoas com doença terminal e presos condenados a pena de morte, promove frequentemente a expressão de conteúdos associados a temas como o perdão, o arrependimento, reconciliação, gratidão, declarações de inocência, o afeto e também, não poucas vezes, o reforço de mensagens de ativismo social e/ou político.

A consciência da finitude é a principal fonte de angústia para o ser humano. O instinto de preservação e sobrevivência faz com que todo o ser vivo tente manter a sua vida com todas as suas forças. O medo pode funcionar como um mecanismo bastante útil para a preservação das espécies. Este instinto de preservação, em conjunto com uma espécie de anseio do Homem em ser eterno, chega a negar a morte, conferindo a esta uma conotação de tabu que faz com que sejam algumas vezes acionados esforços no sentido de escondê—la, silenciá—la, ocultar toda a dor e sofrimento causado. É a partir da década de 50/60 do século passado que a temática da morte começa a ser maior alvo de atenção por parte da sociologia, etnologia, antropologia e da psicologia, promovendo uma maior consideração sobre a importância de um movimento de  educação para a morte (desenvolvimento pessoal que se baseie numa preparação para a morte).

O medo da morte traz como consequência estados de ansiedade que interagem como forças de atrito relativamente ao entendimento do final da vida como um processo natural inevitável. Pode dar-se em forma de medo à dor, medo de sofrer, medo da dependência, da separação e perda com e de tudo e todos que amamos, perda de controlo, medo do desconhecido. Talvez o pior de todos os medos seja o medo ao próprio medo que se torna mais intenso quanto mais dele tentamos escapar. Temos sobretudo medo da vida e, por isso, medo da morte. Temos muito medo de não sermos capazes de atingir uma plenitude existencial que se poderá eventualmente traduzir na concretização abundante do Amor. 

A vida é uma contínua dança entre nascimento e morte, uma dança de transformação, de impermanência. Desperta-se para a vida através da consciência e aceitação da morte. Aprendendo a viver, aprende-se a morrer. Quando acreditamos que as coisas são permanentes, resistimos a aprender a mudança. Aprender a viver é aprender a fluir com a (nossa) natureza. 

Conceber a morte como um processo universal da natureza, o que realmente é, pode ajudar a diminuir o medo e facilita a sua integração. Quando aceitamos e estamos conscientes da morte, transformamos a nossa atitude perante a vida, somos mais realistas, experienciamos maior sintonia e compaixão connosco próprios, com os outros e com o mundo, vivendo com maior qualidade.

Apesar de tudo, e como nos diz o famoso psicoterapeuta Irvin Yalom, ”não é fácil viver cada momento absolutamente consciente da inevitabilidade da nossa morte. É como tentar olhar para o sol e manter os olhos fixos: qualquer um de nós só consegue fazê-lo durante alguns segundos”. É pois muitíssimo natural que criemos estratégias para suavizar o terror da morte. De certa forma, nunca a poderemos eliminar por completo.  Pensar e falar na morte dói e dói também porque este é o preço a pagar por amarmos. 

Dr. André Viegas
Psicólogo Clínico
O Canto da Psicologia



quinta-feira, 15 de março de 2018

“Eu sou mudança, mas vivo isso, ainda melhor, com outros!”








Cada pessoa toma decisões nas múltiplas experiências da sua vida e, nessa medida, muda os seus pensamentos, emoções e comportamentos inúmeras vezes ao longo do tempo.

Neste sentido, o processo de mudança é sistemático e até inevitável no decurso da existência humana, porque a dinâmica fluída e contínua do Tempo marca que, cada momento, seja irrepetível e único, mesmo que possa ser considerado, em grande medida, semelhante a qualquer outro momento já vivido. De facto, como bem compreendeu um dos primeiros filósofos da Humanidade, Heraclito, há mais de 2500 anos, “tu não podes tomar banho duas vezes no mesmo rio, pois aquelas águas já terão passado e também tu já não serás mais o mesmo”. 

Na realidade, entre o nascimento e a morte, a questão a colocar não será tanto se alguém está ou não a mudar, mas sim como está a lidar com o processo de mudança da sua vida.

Deste modo, pode-se compreender a psicoterapia como um processo que está, intimamente, ligado com a essência da própria vida humana, na medida em que está ao serviço da mudança do paciente. 

“Será que está a aproveitar bem o seu tempo? E o que é, para si, aproveitar bem o seu tempo? O que lhe faz sentido realizar na sua vida, sabendo que ela é temporalmente limitada?”

No decurso de uma psicoterapia, essas e outras tantas questões podem ser colocadas, as quais se dirigem, certamente, à angústia, tipicamente humana, de não saber, com certeza, se as escolhas que estão a ser feitas serão as mais acertadas, porque não é possível saber com rigor o futuro, ou seja, as consequências que tais decisões terão nas suas próprias vidas e nas dos outros. Ainda assim, com tal reflexão, ficará mais clarificada uma ideia de rumo a escolher, mesmo sem saber ao certo o que acontecerá no desenvolvimento desse processo de vida.

Realmente, poder-se-á dizer que a incerteza é a parceira de baile da mudança em cada vida humana, correspondendo às escolhas pessoais o modo como essa dança inevitável se processará, ou seja, de uma forma mais aberta e flexível ou mais fechada e rígida. Assim, na psicoterapia, o convite que é feito à reflexão de dimensões fundamentais da vida do paciente, favorecerá a sua compreensão e uma maior clareza quanto ao sentido inerente às suas escolhas, ou seja, ao modo como decide lidar com a (mu)dança que, continuamente, é a sua vida.

A frase que serve de título a este texto, apesar de ter sido pensada e escrita por mim, é da autoria vivencial de todos aqueles que escolhem, nas suas vidas em mudança, projectos em comum com outras pessoas, compreendendo os grandes benefícios potenciais dessas decisões – uma real união promove a expansão de perspectivas, de competências e de possibilidades de desenvolvimento por comparação com as vias restritivas de escolha do isolamento que, como se sabe, está, intrinsecamente, associado com perturbações ao nível da Saúde Mental.

Na senda dos saudáveis exemplos de projectos em comum, enquadra-se, indiscutivelmente, O Canto da Psicologia, no qual tenho tido o privilégio de ser um dos elementos da Equipa de Psicólogos e, nessa medida, tenho podido participar no desenvolvimento desse projecto com várias pessoas. É sustentado nesse espírito de união, de entreajuda e de partilha de conhecimentos profissionais e experiências humanas que, julgo eu, todos nós no Canto temos sido valorizados, principalmente enquanto pessoas que encontraram e desenvolvem com a força acrescida que o grupo facilita o seu sentido de vida profissional a ajudar outras pessoas a compreenderem os seus próprios processos de mudança em curso.



Dr. Nuno Almeida e Sousa  
Psicólogo Clínico
 O Canto da Psicologia


terça-feira, 13 de março de 2018

DÊ VIVAS À FELICIDADE, SENHOR TROLHA (Com um abraço e uma sande de torresmos para o André Gomes)









Ponto prévio já para aperitivo, senhor trolha: sabe, eu não conheço o André Gomes, mas conheço a vida de um futebolista - é meu trabalho acompanhá-la há 20 anos. Não a martirizo, não a glorifico, mas arredá-la dos afetos é impossível. Neste país onde pressão é acordar cedo, encarar durezas e sustentar famílias a troco de dez réis de mel coado, percebe-se que as glórias e desventuras de um jogador caiam na "insensibilidade" do cidadão que paga a eletricidade e gás mais caros da Europa, mas cada um de nós - os afortunados e os nem por isso - sabe que a felicidade nunca está no que se tem. O André teve sorte, já o sabe. Faz o que mais gosta e é bem pago por isso. Foi longe (sem juízos de valor, se não se importa), mas anda nos arredores do labirinto da depressão. Isola-se, não quer falar, sair ou jogar. É do Barcelona. É campeão da Europa. É infeliz.

Senhor trolha, ouça cá: sacuda com dignidade fidalga esse pó do fatinho de almeida; tire lá a carcófia negra das unhas; volte a apostar no Euromilhões que a fezada é boa amiga e eu até vou nessa consigo; entorne essas três minis e já agora arrote outras tantas para mostrar quem manda e rasgue lá esse sorriso: há alguém à sua espera no vale de lençóis e a certeza de que nada há como um dia depois do outro. A vida não é assim tão velhaca. Bom fado o seu. Podia ter jeito para jogar à bola, estar no Barcelona, ser rico e sentir-se um imenso nada, com medo do instante que se segue.

Até gente como o André dava tudo para estar aqui ao seu lado a beber um tintol carrascudo daquele que vem às postas para o copo e rir com as coisas simples disto que é andar por cá, com uma sande de torresmos para remate.
Felicidade pode ser isso.



FILIPE ALEXANDRE DIAS
O Canto da Psicologia




Treino de Força e Envelhecimento...








Sabemos hoje em dia, que o treino de força é fundamental para melhorar a saúde. A novidade é que um grande estudo feito em jovens adultos e idosos com base no treino de força, conseguiu que muitos dos genes associados à idade e exercício revertessem o processo de envelhecimento após 6 meses de intervenção. No estudo, as expressões genéticas dos idosos mostraram ser semelhantes à dos jovens adultos, assim como a disfunção mitocondrial começou a reverter após 6 meses de treino de força continuado.

Em suma, este estudo mostrou pela primeira vez que o treino de força ou treino com cargas externas, pode reverter processos de envelhecimento precoce ao nível dos genes. O envelhecimento pode e deve ser um processo assente em qualidade de vida e o treino de força tem um papel crucial no aumento da longevidade.

Assim, devemos desde a idade jovem fomentar o treino de força entre a população. Pessoas ativas são mais saudáveis física e psiquicamente. Comece já hoje a tratar de si!



Bons treinos

Hugo Silva 

Instagram: hugo_silva_coach
Linkedin: http://linkedin.com/in/hugo-silva-1b8295132
-Licenciatura Educação Física/Especialização Treino Personalizado
-Pós-Graduação em Marketing do Fitness 
-Pós-Graduando em Strength and Conditioning
-Director Técnico ginásio Lisboa Racket Centre 



quinta-feira, 8 de março de 2018

Estranhos...







          Na ressaca do revisionamento recente da última e uma das muitas aclamadas obras de Stanley Kubric, Eyes Wide Shut, fica a impressão clara da clarividência e aquiescência do artista para com a fragilidade matricial dos humanos e das relações (sobretudo as íntimas) que entre estes se estabelecem; fragilidade que é prova major da densidade e complexidão psicológica que os caracteriza e determina. Nesse ensaio encenado acerca do papel que a esfera erótico-sexual desempenha na dinâmica relacional, in casu de um casal da classe alta nova-iorquina, somos convidados a aceder a uma narrativa de dimensões e vivências paralelas: entre o concreto quotidiano e o inusitado subjectivo, mas, especialmente, entre realidade e fantasia, sonho e fantasma. No caleidoscópio vivencial que o autor nos oferece, vamos entrevendo a forma como a confiança, segurança e compromisso entre parceiros são abalados, pelo acesso recíproco à intimidade fantasiosa e fantasiada de cada um; sobretudo quando a realidade informa de potenciais corroboradores do princípio da dúvida. As certezas da personagem principal, Bill, desabam quando a sua esposa, Alice, num impulso de sinceridade plena, quiçá provocado pela omnipotência ingénua do marido, revela uma fantasia com um outro homem, de outrora – fantasia e homem. Tal evento, pelo seu impacto no funcionamento e estado psicológico de Bill inauguram um período de instabilidade e errância relacional, dinamizadas pela ideia ruminativa de uma putativa traição da esposa e precipitam uma série de eventos de laivos reactivos, trespassados de uma pungente e avassaladora carga erótico-sexual.
          Ora, se, ao invés de Bill, a esmagadora maioria das pessoas não se vê, depois, envolvida numa trama de suspense urdida ao melhor estilo kubriquiano (passe o neologismo), o vislumbre constante da experiência humana, que a prática psicoterapêutica nos proporciona, permite-nos perceber como fenómenos semelhantes ou próximos estão presentes na vida das pessoas com que trabalhamos, sessão após sessão, na procura da sua sempre transitória e dinâmica verdade – a que deveras importa, exactamente pelo seu carácter fluído, mutável e, por conseguinte, pérvia ao processo de significação.
          E é na realidade do setting terapêutico, no aconchego das quatro paredes que delimitam o espaço transicional, mas sobretudo potencial da psicoterapia, que verificamos que ninguém passa incólume aos desafios impostos pelo jogo de sombras desenhado pelo ciúme. Jogo esse, encetado aquando do acesso negado, limitado ou parcial (nunca ilimitado), procurado ou encontrado, ao mundo fantasioso do outro; daquele outro tão íntimo, depositário e depositante de expectativas, receios, prazer e desprazer, amor e ódio, evolução e ruptura.
          Alegadamente, António Lobo Antunes terá dito ou escrito algures, que numa relação existiriam sempre quatro pessoas: as duas reais e as duas idealizadas. Mais que isso, sabêmo-lo nós, há também dois mundos que se encontram em permanente relação e que dizem respeito à subjectividade de cada um dos elementos do par e à daí resultante inter-subjectividade – a relação, enfim. É, pois, nesse espaço de inter-subjectividade que as problemáticas acima destacada são experienciadas, mas também agidas.
          Com frequência, constatamos o quão duro pode ser para um dos elementos da relação, só o conhecimento (ainda não sequer consciência), de determinada particularidade ou da totalidade da fantasia do outro; pior ainda, se pairar a ameaça da consumação (ainda que anterior) da dita fantasia ou de parte dela. A ideia de o outro possuir um imaginário erótico diversificado, multi-pessoal, mas sobretudo não exclusivo, é muitas vezes percepcionada e significada entre a visceralidade da traição encenada e o advento do terror e tragédia relacional inevitável. Sucedaneamente, para muitos é também génese para uma senda de afirmação narcísica compensatória, um empreendimento contraproducente de reequilíbrio da pretensa equivalência relacional, absorto da distinção entre realidade e fantasia e que consuma, irónica e inversamente, o pelo outro não consumado; opera-se, assim, a reificação do fantasma ameaçador da não fidelidade desse outro, pela infidelidade real do primeiro.
          O adágio popular “quem desconfia é de desconfiar” (como todos os outros) não é, de todo, verdade absoluta, mas terá aqui ocorrido na mente de alguns. Também por isso, no seio das relações de intimidade, continua a ser necessário reflectir sobre o porquê de determinas reacções à individualidade íntima do outro quando, às vezes quase que por acidente, tomamos conhecimento de mais uma ínfima parte desse sempre desconhecido universo, que é a mente de outrem; acima de tudo quando esse outro é tão próximo que quase e erradamente, o achamos nosso. A noção ilusória - impossível e por isso ultrapassada – de posse, posse do outro, do seu corpo, da sua mente… de todo o seu ensejo e desejo, limita e gora, por demasiadas vezes, uma vivência e experiência total, plena, liberta e libertadora da coisa amorosa*.
          Continua, consequentemente, a perpetuar-se no tempo e no ideário das relações a representação de um outro sem densidade implícita, latente. Um outro que não tem - nem pode ter – segredos, fantasiados ou reais, também estes, idiossincrasias identitárias e, portanto, definidoras e diferenciadoras. Este outro do qual são negadas as muitas camadas, desconhecidas e insondáveis, por vezes até para o próprio. Mantém-se, pois, a dificuldade em aceitar que o outro é e será sempre um estranho, quase tanto como nós o somos para nós próprios, perante a riqueza e complexidade da nossa psique.


Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia


*Nota teórica: aludindo a uma reflexão psicanalítica e à luz de uma leitura da segunda teoria pulsional, estaríamos distantes da norteadora eros, de construção, ligação e vida e bem mais circunjacentes do que outrora se denominou como pulsion d’emprise; uma espécie de vertigem no sentido do domínio do outro, numa economia pulsional que é bem mais tributária das vicissitudes do intrincamento das pulsões de vida com as pulsões de morte. Alternativamente, à luz da teoria das relações de objecto, grosso modo, poderíamos postular a hipótese de um ego frágil, caracterizado por alguma efracção dos limites psíquicos; não do ego, ou do self propriamente dito (do envelope psíquico), mas entre o objecto internalizado e o self­-objecto.




quinta-feira, 1 de março de 2018

Ortorexia!! Uma nova perturbação do comportamento alimentar?









Atualmente estamos perante uma enorme pressão para sermos perfeitos, para encaixarmos em caixas que definem para nós e que procuram que sejam inquestionáveis. Entramos numa era narcisista que o mais importante é termos a imagem “perfeita”, é o parecermos, em detrimento do sermos.

Neste contexto a Ortorexia apesar de ainda não ter sido considerada, pela comunidade científica, como uma perturbação do comportamento alimentar, alguns especialistas a definem como uma obsessão pela alimentação saudável. Este vício que leva uma pessoa a apenas escolher alimentos dito “puros” ou seja sem qualquer tipo corantes, conservantes, químicos, aditivos, gorduras saturadas, açúcares, faz com que o “ortorexico” entre numa incessante busca do alimento dito “perfeito” e biológico. Tendo em conta que nos supermercados comuns, praticamente não existem, este tipo de alimentos, leva a que o “Ortorexico” viva em constante frustração.

Os sintomas que se associam a este distúrbio estão muito ligados a Perturbação Obsessiva Compulsiva em que os sujeitos apresentam pensamentos recorrentes obsessivos incontroláveis, ruminam nas mesmas ideias, têm rituais de verificação, tudo tem de estar controlado ao mínimo pormenor, se não podem descompensar e entrar em ansiedade. Esta situação poderá levar ao isolamento social, ou seja, compulsivamente tentam evitar a todo custo estar socialmente com familiares ou amigos, para que não caiam na tentação de ingerir os tais alimentos proibidos. Caso não consigam travar o desejo, os sentimentos de culpa e, por vezes, de inferioridade narcísica instalam-se de forma avassaladora e ansiogénica.

A obsessão pelo controlo sobre a sua alimentação leva o “ortorexico” a ocupar a sua mente constantemente com a disciplina de cumprir à risca todos os hábitos alimentares saudáveis, a que se propõe, pelo que verifica, exaustivamente, as propriedades de cada alimento. Estes pensamentos contaminam a vida do sujeito, ao ponto de se desconcentrar, do momento presente, impedindo ao mesmo a possibilidade de desfrutar da companhia dos familiares e amigos.

Todas estas compulsões e obsessões são sintomas que mascaram algo mais profundo, uma possível depressão latente, com baixa auto estima e ansiedade. A falsa sensação de controlo, revela uma necessidade subjacente, a de acalmar a ansiedade, neste sentido, os anoréticos controlam as quantidades de calorias, os obesos comem compulsivamente e os “ortoréxicos” procuram controlar a qualidade da comida. À medida que estes sintomas vão dando conta do sujeito, mais ele procura controlar os comportamentos obsessivos, pelo que vai criando uma falsa ideia de que está a dominar, assim vai “escondendo” as questões que estão por tratar nomeadamente as depressivas. A este propósito a causa de fundo mais comum, a depressão, fica por trabalhar e quanto mais a obsessão aumenta, mais doentes psicologicamente ficam.

A dúvida que surge relaciona-se com o fato de estarmos perante um aumento deste tipo de casos como tem aparecido nos media. Parece que, nos dias de hoje, as pessoas facilmente caiem em compulsões, obsessões e vícios, como forma de não encarar uma realidade que é sentida como dura e/ou incompreensível. Neste sentido algumas das causas possíveis poderão estar associadas às emoções que entram em colapso, ao sentimento de vazio interior e à falta de propósito na vida. Os relacionamentos estão cada vez mais superficiais, a capacidade de amar intersubjetivamente e de forma saudável, isto é, sem ser simbiótica, em que duas pessoas, inteiras, são capazes de amar sem se diluírem no outro. Esta forma de amar saudável permite ao sujeito se entregar ao outro sem, contudo, se perder identitariamente.

Por outro lado, a incapacidade de desenvolver um significado profundo perante o sofrimento e as emoções sentidas como difusas, faz com que o obsessivo procure nos seus rituais um “descanso”, momentâneo, para acalmar a sua angústia. Porém estas obsessões poderão ficar descontroladas, pelo que, somente através de um processo psicoterapêutico, em co-construção, é possível ir apaziguando o estado de ansiedade, ao dar significado emocional para os medos, por vezes ilógicos, do obsessivo.

Neste sentido a aceitação de que a nossa, diferença, imperfeição e intersubjetividade é o que temos de mais precioso, irá libertar o sujeito de uma exigência da perfeição que chega a ser, por vezes, tirana. O processo psicoterapêutico visa enaltecer as nossas idiossincrasias, o que nos faz únicos e especiais.

A alteridade é a aceitação de que não somos cópias de ninguém, mesmo com a pressão eventual, devemos manter a nossa genuinidade e deixar emergir a nossa verdadeira identidade, consciente e disponível para receber e dar o melhor nesta vida.



Drª Mafalda Leite Borges

O Canto da Psicologia