Na ressaca do revisionamento recente
da última e uma das muitas aclamadas obras de Stanley Kubric, Eyes Wide Shut, fica a impressão clara
da clarividência e aquiescência do artista para com a fragilidade matricial dos
humanos e das relações (sobretudo as íntimas) que entre estes se estabelecem; fragilidade
que é prova major da densidade e complexidão psicológica que os caracteriza e
determina. Nesse ensaio encenado acerca do papel que a esfera erótico-sexual
desempenha na dinâmica relacional, in
casu de um casal da classe alta nova-iorquina, somos convidados a aceder a
uma narrativa de dimensões e vivências paralelas: entre o concreto quotidiano e
o inusitado subjectivo, mas, especialmente, entre realidade e fantasia, sonho e
fantasma. No caleidoscópio vivencial que o autor nos oferece, vamos entrevendo
a forma como a confiança, segurança e compromisso entre parceiros são abalados,
pelo acesso recíproco à intimidade fantasiosa e fantasiada de cada um;
sobretudo quando a realidade informa de potenciais corroboradores do princípio da
dúvida. As certezas da personagem principal, Bill, desabam quando a sua esposa,
Alice, num impulso de sinceridade plena, quiçá provocado pela omnipotência
ingénua do marido, revela uma fantasia com um outro homem, de outrora –
fantasia e homem. Tal evento, pelo seu impacto no funcionamento e estado
psicológico de Bill inauguram um período de instabilidade e errância relacional,
dinamizadas pela ideia ruminativa de uma putativa traição da esposa e precipitam
uma série de eventos de laivos reactivos, trespassados de uma pungente e
avassaladora carga erótico-sexual.
Ora, se, ao invés de Bill, a
esmagadora maioria das pessoas não se vê, depois, envolvida numa trama de
suspense urdida ao melhor estilo kubriquiano (passe o neologismo), o vislumbre
constante da experiência humana, que a prática psicoterapêutica nos proporciona,
permite-nos perceber como fenómenos semelhantes ou próximos estão presentes na
vida das pessoas com que trabalhamos, sessão após sessão, na procura da sua
sempre transitória e dinâmica verdade – a que deveras importa, exactamente pelo
seu carácter fluído, mutável e, por conseguinte, pérvia ao processo de
significação.
E é na realidade do setting terapêutico, no aconchego das
quatro paredes que delimitam o espaço transicional, mas sobretudo potencial da
psicoterapia, que verificamos que ninguém passa incólume aos desafios impostos
pelo jogo de sombras desenhado pelo ciúme. Jogo esse, encetado aquando do
acesso negado, limitado ou parcial (nunca ilimitado), procurado ou encontrado,
ao mundo fantasioso do outro; daquele outro tão íntimo, depositário e
depositante de expectativas, receios, prazer e desprazer, amor e ódio, evolução
e ruptura.
Alegadamente, António Lobo Antunes
terá dito ou escrito algures, que numa relação existiriam sempre quatro
pessoas: as duas reais e as duas idealizadas. Mais que isso, sabêmo-lo nós, há
também dois mundos que se encontram em permanente relação e que dizem respeito
à subjectividade de cada um dos elementos do par e à daí resultante
inter-subjectividade – a relação, enfim. É, pois, nesse espaço de
inter-subjectividade que as problemáticas acima destacada são experienciadas,
mas também agidas.
Com frequência, constatamos o quão
duro pode ser para um dos elementos da relação, só o conhecimento (ainda não sequer
consciência), de determinada particularidade ou da totalidade da fantasia do
outro; pior ainda, se pairar a ameaça da consumação (ainda que anterior) da
dita fantasia ou de parte dela. A ideia de o outro possuir um imaginário
erótico diversificado, multi-pessoal, mas sobretudo não exclusivo, é muitas
vezes percepcionada e significada entre a visceralidade da traição encenada e o
advento do terror e tragédia relacional inevitável. Sucedaneamente, para muitos
é também génese para uma senda de afirmação narcísica compensatória, um
empreendimento contraproducente de reequilíbrio da pretensa equivalência
relacional, absorto da distinção entre realidade e fantasia e que consuma,
irónica e inversamente, o pelo outro não consumado; opera-se, assim, a
reificação do fantasma ameaçador da não fidelidade desse outro, pela
infidelidade real do primeiro.
O adágio popular “quem desconfia é de
desconfiar” (como todos os outros) não é, de todo, verdade absoluta, mas terá aqui
ocorrido na mente de alguns. Também por isso, no seio das relações de
intimidade, continua a ser necessário reflectir sobre o porquê de determinas
reacções à individualidade íntima do outro quando, às vezes quase que por
acidente, tomamos conhecimento de mais uma ínfima parte desse sempre
desconhecido universo, que é a mente de outrem; acima de tudo quando esse outro
é tão próximo que quase e erradamente, o achamos nosso. A noção ilusória -
impossível e por isso ultrapassada – de posse, posse do outro, do seu corpo, da
sua mente… de todo o seu ensejo e desejo, limita e gora, por demasiadas vezes,
uma vivência e experiência total, plena, liberta e libertadora da coisa amorosa*.
Continua, consequentemente, a
perpetuar-se no tempo e no ideário das relações a representação de um outro sem
densidade implícita, latente. Um outro que não tem - nem pode ter – segredos,
fantasiados ou reais, também estes, idiossincrasias identitárias e, portanto,
definidoras e diferenciadoras. Este outro do qual são negadas as muitas camadas,
desconhecidas e insondáveis, por vezes até para o próprio. Mantém-se, pois, a
dificuldade em aceitar que o outro é e será sempre um estranho, quase tanto
como nós o somos para nós próprios, perante a riqueza e complexidade da nossa
psique.
O Canto da Psicologia
*Nota
teórica: aludindo a uma reflexão psicanalítica e à luz de uma leitura da
segunda teoria pulsional, estaríamos distantes da norteadora eros, de construção, ligação e vida e
bem mais circunjacentes do que outrora se denominou como pulsion d’emprise; uma espécie de vertigem no sentido do domínio do
outro, numa economia pulsional que é bem mais tributária das vicissitudes do
intrincamento das pulsões de vida com as pulsões de morte. Alternativamente, à
luz da teoria das relações de objecto, grosso modo, poderíamos postular a hipótese
de um ego frágil, caracterizado por alguma efracção dos limites psíquicos; não
do ego, ou do self propriamente dito
(do envelope psíquico), mas entre o objecto internalizado e o self-objecto.
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