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quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A saúde mental começa em bebé...






 Cada vez mais há registro de adultos que sofrem de doença mental, segundo dados recentes Portugal é o país da Europa com mais prevalência de doenças mentais na população com uma percentagem de 22,9% (dados do relatório de Saúde Mental 2018). Podemos identificar múltiplos motivos para estes resultados, desemprego, baixos salários, falta de condições e oportunidades, embora verdadeiros, existe uma razão que é fundamental (muitas vezes subestimada) que está relacionada com os primeiros anos de vida que são fulcrais na construção de identidade base do individuo. A forma como o adulto gere a sua ansiedade/depressão está estreitamente relacionado com a qualidade das relações precoces e do ambiente familiar mais ou menos disfuncional.
Estamos numa sociedade que ignora completamente a primeira infância, apesar das inúmeras e exaustivas investigações científicas que sublinham a importância, desta fase de desenvolvimento, para saúde quer física quer mental do futuro adulto. Sabemos que nos países ditos “mais desenvolvidos” no Norte da Europa os pais podem ter direito a 3 anos de baixa, de forma a poderem dar a atenção necessária e a qualidade relacional ao seu bebé. Contudo em Portugal a realidade é bem diferente pelo que as consequências têm vindo a notar-se, cada vez mais se medicam as crianças e se diagnosticam com atraso de desenvolvimento, hiperatividade e deficit de atenção.


À medida que a sociedade avança mais parece que se desumaniza, os bebés não têm direito a ficar bebés, as crianças têm de crescer rapidamente e, depois, transformam-se em adultos incompletos, com falhas no desenvolvimento psicoafectivo, de difícil acompanhamento psicoterapêutico. A prevenção é, assim, totalmente ignorada e consequentemente multiplicam-se as problemáticas na saúde mental. Segundo dados da OMS estima-se que em 2030 a Depressão seja a doença com mais incidência no mundo, esta doença mental tem vindo a aumentar.
Neste sentido porquê falar do desenvolvimento infantil? A infância é como a coluna vertebral da identidade do sujeito, a base da pirâmide psíquica. A qualidade das interações precoces com o bebé vão promover um sentido de pertença e de segurança, na criança, que irá se repercutir até a fase adulta.
 Mitos sobre o desenvolvimento dos bebés: “O bebé ou a criança não percebem nada do que se diz ou se faz... Apenas querem cuidados básicos desprovidos de afetos... O ambiente familiar não influencia os bebés, pois ainda não têm consciência” Estão completamente incorretos, os bebés são autênticas esponjas emocionais, detetam e sentem, na pele, todos os ambientes afetivos exteriores. Se a família for muito disfuncional e ansiosa, se os pais promoverem ambientes conflituosos, então os bebés irão sofrer tal como os pais.
Estudos revelam que o recém-nascido apresenta elevados graus de cortisol que consiste numa hormona responsável pelos níveis de reatividade ao stress ou ansiedade. Contudo, esta reatividade ao stress tende a diminuir ao longo do primeiro ano de vida, à medida que a relação precoce entre cuidador e bebé se regula, sendo que depende da contingência e sensibilidade das figuras parentais. Verificou-se correlação entre a falta de sensibilidade do cuidador aos sinais do bebé e a continuidade ou até mesmo um aumento dos níveis de cortisol ao longo da infância. Esta situação pode prolongar-se para a fase adulta (e sucessivas gerações) através da criação de padrões fixos de resposta ao stress que envolvem o funcionamento restrito e rígido de neuro transmissores e de glucocorticoides.
 Um clima emocional precoce de stress, repleto de emoções negativas, leva o bebé a não conseguir atingir um estado de equilíbrio homeostático (biológico e emocional), estando permanentemente receoso por não encontrar, na relação, alguma significação que permita acalmar este estado. A regulação hormonal do medo depende, essencialmente, da capacidade que os pais (ou outras figuras centrais) têm para estabelecer comunicações empáticas, de partilha de estados mentais e afetivos e, assim, conterem a ansiedade do bebé.
 As investigações verificaram que este tipo de relação empática leva as crianças a desenvolverem instrumentos de auto-regulação emocional, bem como, está associado a uma maior capacidade de aprendizagem e concentração.
O bebé exige muito dos pais, da sua atenção, precisa de se certificar que é amado e respeitado. Se assim for vai crescer com amor-próprio e confiante das suas capacidades. Todos os comportamentos, ações, e atribuições de carácter dos pais aos filhos vão ter consequências na construção de identidade dos bebés e posteriormente no futuro adulto. O bebé vai querer sempre se adequar às expectativas dos pais quer sejam positivas (conscientes) quer sejam negativas (inconscientes).
 Deste modo a melhor forma de diminuir a doença mental é prevenir a sua incidência através de ações de sensibilização e de informação correta sobre como promover um ambiente relacional e afetivo positivo, para que as nossas crianças possam crescer em paz e adquirir a aprendizagem da regulação da ansiedade. Afinal este é o melhor presente que os pais podem dar aos seus filhos, a inteligência emocional que promove a saúde mental e dá alento e entusiasmo pela vida.



Mafalda Leite Borges
Canto da Psicologia

quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Aqui Jaz uma infância perdida!





“João A…, ao Gabinete 1”
“ Matilde L…, à Sala de tratamentos”

E assim sucessivamente se ouviam os “plins” de uma campanha que servia de banda sonora aquela manhã.
Naquela sala de espera da urgência de pediatria (do que poderia ser um qualquer Hospital Nacional), os brinquedos arrumados nas duas caixas ao lado da mesa, estavam claramente doentes. Coloridos, texturados e exuberantes, apelando provocadoramente ao “olha para mim” vestiam negro no olhar e cinzento nos sorrisos. Levianamente muitos diriam: é uma virose! Antes fosse… que entre mezinhas, pomadas, descanso e recato haveria de passar.
O diagnóstico parecia claro embora encontrasse o seu contraste nas cores da roupa da boneca de pano e na musica do orgão de animais, não poderia haver dúvidas de que aqueles brinquedos padeciam de um mal gravíssimo. O robot espacial, o carrinho do Noddy, o telefone cor-de-rosa, a boneca de pano, o orgão dos animais e sua restante comitiva transportavam um ar pesado, um olhar baço e uma inércia que tão pouco as pilhas alcalinas( já quase a “babar”) tinham potência para combater. Os brinquedos estavam de luto! Curvados, tortos e amassados se carregassem ás costas a sua perda, haveria a algures de se ler: Aqui Jaz uma infância perdida!
A vivacidade de outrora estava perdida, o sentido no balanço do significante e significado, perdera o norte e o seu papel há muito parecia enterrado nas memórias longínquas, de um tempo que parecia já não se voltar a repetir. No meio de todo o barulho e frenesim daquela sala, batiam corações mudos em sintonia entre os quatro lados de cada caixa e ao aproximar-me na incredulidade de tamanha exasperação, juro quase ter ouvido um choro uníssono abafado que só os objectos outrora amados e agora abandonados conhecem.
Os brinquedos estavam de luto, pelas enumeras crianças que perderam, pelas imensas mãos que já não lhes tocavam, pelos apertos que já não levavam e pelos sorrisos inocentes de novos descobridores que não vislumbravam.
Os brinquedos estavam de luto e sucumbiam a uma dor, por vezes enganada pelos passos desleixados em modo de corrida que se dirigiam sobre a caixa, que depois e sobre o olhar projectado e desvitalizador se desiludiam por nada mais terem para oferecer que não eles próprios. Os brinquedos estavam de luto pela perda do amor do objecto. Esse amor talhado na forma de olhar o outro, medido nos gestos de afecto e amparo, que cria laços tão fortes como cimento que edifica cada estrutura interna como única…esse amor faltava-lhes agora. Restava fantasiar sobre as linhas finas de uma constituição subjectiva do que até então se tinha internalizado mais profundamente que um ou outro parafuso, uma pelúcia, um botão, peça de plástico ou até mesmo uma bateria.

Imaginei a boneca de pano em sessão, mergulhada no divã com a caixa de lenços ao colo murmurando entre lágrimas os seus sentimentos de culpa que lhe atormentam os sonhos e o olhar sobre a realidade, os sentimentos de não merecimento e de insuficiência que a deixam letárgica e incapaz de pensar. Até mesmo o Robot enchendo o Setting com o seu vazio interno e a sua dificuldade em pensar as emoções, desviando o olhar sobre a janela e mantendo um silêncio tão ensurdecedor que não dava espaço para interpretar e conter. E o orgão de animais… metia dó mas já só tocava Ré, desarmonioso sem posição para estar saltitando de um lado para no sofá, levantando-se e gesticulando sem tom, num registo incontido e lábil, numa vulnerabilidade tão característica dos que perderam o seu lugar, papel e identificação.
Os brinquedos estavam de luto por todas as crianças que passaram, passam e permanecem naquela sala de espera. Choravam a perda dos palmos e meio que naquele mesmo momento enchiam o espaço, tornando-o cada vez mais vazio de quem o via através das caixas. Os brinquedos estavam de luto pelo João A. que de chucha na boca e lágrima ao canto do olho ficou ao colo do pai a ver o Babytv no tablet. Estavam de luto pela Matilde com 4 anos que sentada ao lado da mãe gargalhava entre a tosse e o fungar, ao ver a Dora - A Exploradora no youtube. Estavam de luto por eles e pelas restantes oito crianças que sem sair do lugar e sem nunca se debruçarem sobre as caixas, “brincavam” escondendo-se da espontaneidade, do faz-de-conta, da fantasia e da experimentação, atrás dos ecrãs das tecnologias.
Perguntei a medo à enfermeira - Isto é sempre assim? - não percebendo a inquietação inicial da pergunta acabou mais tarde por responder - Sim. No outro dia até pensei se não seria melhor retirar as caixas dali do fundo e… (enchi-me de esperança) deixar a extensão mais disponível para os carregadores de telemóvel e tablets (morri na praia). Mais grave que um infância que se perde é claramente uma adultez que a corrompe, esmaga e negligencia.

Aqui Jaz uma Infância que um dia soube brincar, fazer-de-conta, caiu e levantou-se, conheceu os limites do seu corpo, esfolou os joelhos, explorou, experimentou e foi…e soube ser CRIANÇA.


Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia




sexta-feira, 21 de setembro de 2018

O lugar das coisas possíveis e impossíveis...






                          

“Tu és a filha, eu sou a mãe; 
- Filha, já te disse que não podes ver esses desenhos à noite, depois tens esses sonhos maus. E agora vais deitar-te (enquanto me tapa).

Continua... a “mãe”
-Agora que estás a dormir vais sonhar que anda um bandido atrás de ti”.

E andamos em voltas pela sala até chegar o momento de novamente acordar.

A psicoterapia com crianças ou o acompanhamento com crianças permite-nos passar por diversos papeis simbólicos, ser diferentes personagens, alguns dos sonhos, outros de uma realidade projectada (uma realidade que raras as vezes é, para a criança, a realidade dela). Nesta dança entre adulto (terapeuta) e criança existem movimentos de diversa natureza, uns provêm da angústia, outros da agressividade, outros mais persecutórios (como os bandidos que nos perseguem nos “sonhos maus”). Afinal de contas há um encontro, literalmente, com bebés, pistolas, carros, soldados, animais ferozes e animais “fofinhos”, com lápis e canetas, com panelas que facilmente passam a baterias, com pratos que servem de pandeiretas...num espaço em que tudo se pode dizer, em que tudo tem potencial de ser compreendido e de eventualmente ser integrado.

É para os pais muito assustador, ou desesperante, trazer ao nosso espaço o seu filho, seja por questões próprias da criança tais como,   não conseguir controlar os esfincteres durante a noite, fazer muitas birras com um dos progenitores, crises de ansiedade quando é deixado na escola, entre outras;  ou até porque alguém na escola levanta uma desconfiança - normalmente com uma palavra que os pais não conseguem identificar - que os põe em estado de alerta e os leva a pedir ajuda ou ainda, por começarem a recear , o que angustia tremendamente os pais, o facto de que também eles possam ser parte do motivo pelo desajustamento do comportamento dos seus filhos. Independentemente dos casos, todos sabemos  que nunca é  fácil deixar um filho com “um técnico” isso significa que pode haver um problema, e se o houver o risco de poder  ser responsável por parte desse problema e ter um dedo a apontar: “não estás a ser bom pai/mãe; não estás a ser suficiente bom”. Ser pai nem sempre é fácil e acarreta um conjunto de desafios que, por diversas vezes, nos colocam em causa e que precisam de poder ser contidos.

Por outro lado,  as crianças precisam apenas de um espaço que possa ser por si só, contentor; em que elas possam fazer “todos os disparates”, as coisas que nem sempre cheiram bem, ou até as coisas que nem sempre são bem vistas (normalmente pelos adultos) sem correr o risco de serem repreendidas, rejeitadas ou abandonadas, libertas do  receio de deixar o pai ou a mãe triste, ou desiludidos; permitindo-se ainda, “pensar”, elaborar ou transformar estas coisas estranhas, que nem sempre têm nome, ou nem sempre são claras, em coisas de mais fácil compreensão através do movimento simples do brincar!

Sendo para os pais aterrador todos estes sentimentos, também o são para as crianças - muitas delas, só agora se estão a autonomizar e a começar a desvendar o lugar delas no mundo das crianças, dos adultos, da família, da escola...ás vezes, este espaço terapêutico é só isto, um sitio seguro, onde se podem pensar e dizer coisas que podem ser  ouvidas ,aceites, vistas e cuidadas. Um bocadinho como os sonhos maus, ninguém gosta deles, mas eles não deixam de fazer parte de nós.



Drª Inês Lamares
O Canto da Psicologia



quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Crónicas do tapete: brincar com bonecas...






- Este é o teu bebé e estes são os meus! Toma, mete por baixo da camisola, ainda não nasceram!

Brincar com bonecas, ou com qualquer objeto que sirva a mesma função, é uma forma absolutamente privilegiada de aceder ao mundo simbólico infantil. Esta atividade desvela um universo de uma complexidade assombrosa, composto por sonhos, memórias, fantasias e experiências de vida de pequenos seres que por vezes ainda nem perderam os dentes de leite! Ao trabalhar com os mais novos, ao tentar vislumbrar o seu mundo interno, é necessário empregar um registo diferente daquele que marca o trabalho com adultos. Assim, o tapete da sala torna-se muitas vezes num componente imprescindível.

Neste tapete, que nada tem de inaudito, deparamo-nos com alguma frequência com movimentos mais agressivos da parte das crianças, que tanto passam por insultar o terapeuta como chegam a ser de agressividade agida, com empurrões e chapadas.  Aquilo a que se pode almejar é a um trabalho elaborativo, de compreensão da função desse mesmo comportamento, o que nos irá permitir olhar humildemente para o que as crianças nos trazem, com verdadeiro interesse, e sem “levar a peito” estes movimentos. Lentamente, pretende-se que as vamos ajudando a transformar a dor, o medo ou a raiva em produtos mais digeríveis, integrados numa vivência complexa.

Durante bastante tempo, uma menina em acompanhamento optava por brincar invariavelmente com bonecas. No decorrer das nossas sessões, ambas assumíamos muitas vezes o papel de mães, pais ou filhos, alternando entre papéis a um ritmo quase selvático. A seu mando, as bonecas que perfilhávamos eram envenenadas, enganadas de forma absolutamente perversa, agredidas de forma gratuita, e não cuidadas ao ponto de falecerem, sem que isso despertasse fosse em quem fosse qualquer tristeza ou mágoa. Ao chegar ao final do nosso tempo, sessão após sessão, mês após mês, esta criança tentava-se esconder dentro da sala ou fugia para se esconder noutras divisões, tentava roubar brinquedos, empurrava-me, fingia urinar para cima de mim, cuspia efetivamente em mim, mas não abandonava o nosso espaço. Lentamente, conseguimos chegar juntas à compreensão de que aquela separação no final das nossas sessões era verdadeiramente dolorosa; aquele espaço seguro e pleno de aceitação, interesse e compreensão fugia-lhe entre os dedos, e a sua reação a tal “perda” era partir para a agressão. A agressão que me era infligida era, no fundo, uma defesa: contra o mal ao qual ela sentia estar frequentemente sujeita, contra o sentimento de vulnerabilidade perante o outro, contra a nossa ligação que, ao ser aceite enquanto real, queria ser mantida a todo o custo, de forma agida e não elaborada. Este repetir da agressão, sessão após sessão, foi, em si, uma oportunidade. Para a interpretação, para a reconstrução e para o crescimento, tanto da menina quanto meu enquanto profissional, que não poucas vezes regressava a estes momentos ao longo da semana e neles procurava significado.

Ao longo deste último ano, o nosso tapete passou a ter bebés que já não são envenenados, ou abandonados à nascença, e agora até o parto é mais humanizado, com cuidados médicos tanto às mães como aos bebés. Os pais interagem de forma mais próxima com os filhos, que por sua vez passaram a estabelecer também relações satisfatórias com outras pessoas, membros da família ou pertencentes a outros contextos. No fundo, vislumbram-se algumas alternativas de funcionamento que envolvem trocas emocionais recíprocas, um investimento genuíno no outro, umas pinceladas de narcisismo saudável e, no geral, uma menina com uma maior tranquilidade.

Neste momento, o final das sessões é na maioria das vezes sereno, e acompanhado de um pequeníssimo pedaço de plasticina bem apertado na sua mão; este ato permite-lhe sentir que a nossa relação se mantém para lá das nossas portas, que não termina quando o ponteiro, implacável, assinala o fim. Estamos a evoluir para uma lista dos objetos necessários para a nossa próxima sessão, que é por ambas assinada; este novo passo brota de uma ainda tímida (mas bastante significativa) maior capacidade de representar internamente a nossa relação. Juntas avançamos, ao seu ritmo, porque tal como os bebés que parimos de novo a cada sessão, também ela tem vindo a renascer, a pouco e pouco.




Drª Carolina Franco
O Canto da Psicologia


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

As crianças sabem que são amadas quando se brinca com elas…







O mundo natural das crianças é o do brincar e, nessa medida, elas desejam, tipicamente, esses momentos com os pais e, com maior legitimidade, quando toda a família se encontra mais disponível para essas interacções, sendo os fins-de-semana e as férias os períodos mais propícios para essas experiências. Deste modo, é sobretudo nessas alturas que as crianças observam e sentem, em grande medida, a qualidade do amor parental através da experiência partilhada do brincar.

Importa frisar que nas sessões de psicoterapia com crianças, uma das queixas infantis mais habituais, quer seja explícita ou implícita, reside na imensa frustração que as crianças sentem por brincarempouco com os seus pais. Para que tal suceda tão pouco, algumas vezes ocorrem mal-entendidos na relação pais-filhos, dado que os pais podem julgar que as crianças se divertem de tal forma com jogos num tablet, consola ou smartphone que até parece que não dão importância ao brincar interactivo e real com os pais. Quando assim acontece, é importante notar que as crianças que não apelam pela atenção dos pais, de algum modo já desistiram de o fazer… mas tal não significa que não necessitam dessa expressão de amor fundamental, o qual passa por experiências lúdicas com os progenitores, na medida em que são as pessoas mais importantes das vidas delas.


Um qualquer aparelho tecnológico pode facilitar alguns momentos de diversão às crianças, mas, principalmente nos casos em que os pais não se envolvem nessas actividades com os filhos, as crianças habituam-se a retirar dessas experiências um bem menor, de mero entretenimento ou distracção, de alguma forma controlado por elas e que não depende da (pouca) vontade dos pais brincarem. Assim, compreende-se que as crianças já não apelem aos pais, porque, desse modo, evitam a esperada dor da rejeição.

Como tão bem elucidou o pediatra e psicanalista Donald W. Winnicott (no seu célebre livro “O brincar e a realidade”, de 1971) “é no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self)”. Deste modo, torna-se evidente que a restrição do brincar na relação pais-filhos dificulta um bom e saudável desenvolvimento do que é ser humano. De facto, pais que não brincam suficientemente com os filhos mostram,enquanto modelos parentais que são na relação vivida, no aqui-e-agora com as crianças, que essa via tão importante para o conhecimento do próprio, das relações humanas, e do desenvolvimento da capacidade de imaginação e criatividade, está a ser desvalorizada, encontra-se bloqueada ou até mesmo comprometida.

Por conseguinte, muitas vezes, nas consultas de aconselhamento parental, é clarificado o impacto e a relevância da dimensão do brincar na relação pais-filhos, sendo algo que, tantas vezes, está escondido em outros problemas como a desobediência das crianças ou nas dificuldades dos pais em imporem as suas regras educativas. De facto, é importante notar que as crianças quando se sentem muito frustradas por brincarem pouco com os pais, tendem a contrariar, com muita mais intensidade e frequência, os limites e a autoridade parental. E, nessa revolta das crianças, ainda lá reside, bem disfarçada e protegida, a esperança que os pais entendam as genuínas necessidades infantis, em brincar com eles, de modo a que possam sentir que são crianças, profundamente, amadas…


Dr. Nuno Almeida e Sousa
Psicólogo Clínico
O Canto da Psicologia



quinta-feira, 5 de julho de 2018

O direito às férias...






Cada vez mais nos deparamos com uma sociedade e uma cultura em que o ónus passa pelo fazer, ocupar, ter, preencher... em que querer estar só, querer estar consigo, pensar, ou simplesmente não querer ir sair, não querer estar em socialização, não querer fazer coisas é quase sinónimo de “estar deprimido”. Bem, muitas vezes poderá sê-lo mas, não necessariamente.

Vivemos a correr para que o tempo passe, procuramos constantemente as coisas que nos entretêm, que nos distraem, que nos ocupam (além de todo o tempo que já passamos ocupados a trabalhar), passamos, de forma inconsciente e sem disso nos apercebermos,  muito tempo a tentar não viver o tempo que temos, para nós, para a família, para as coisas de que mais gostamos... cada vez mais nos é difícil, enquanto parte integrante desta sociedade, tolerar as coisas que sentimos e deixar que elas tomem o poder por uns instantes ou por uns dias,  retirando-nos do "mundo" externo e promovendo em nós diálogos internos necessários; não temos ( nem queremos ter) tempo!

Vemos isto nos adultos e, naturalmente, a maior parte das nossas crianças são espelho disso! Com a  aproximação das férias, principalmente das férias escolares,  ouvimos e vemos os pais muito aflitos na decisão de quais as actividades em que vão ocupar os filhos nas férias. Sentimos, deste lado, a impossibilidade de muitas crianças poderem estar de férias, isto é, sem fazer nada que tenha associado o adjectivo obrigatório. Muito possivelmente porque para nós, adultos, também nos é difícil estar só de férias, apesar de passarmos muito do nosso tempo a ansiar, a idealizar e até mesmo a sonhar com o momento em que elas chegam.

As crianças cada vez mais se deparam também com estas dificuldades de ficar só, simplesmente sem fazer nada, sem receio de que este tempo seja invadido pelo tédio;  afinal de contas começam desde cedo a vivenciar a angústia dos adultos perante a possibilidade de terem tempo "vazio" e não conseguirem preenchê-lo de forma securizante; quantos de nós não ouvimos crianças e adolescentes dizer que estão fartos da escola, que querem que cheguem as férias e quando elas chegam ficam aborrecidos porque não têm nada para fazer do que gostam ou do que querem, mas sim, o que simplesmente os pais decidiram que o fizessem. É evidente que há um principio da realidade que não é facilitador deste quadro, seja pela pela idade da criança, seja pela falta de suporte familiar, disponibilidade dos avós e afins, que limitam e muitas vezes impedem de os poder deixar à vontade; importa no entanto que fique claro que esta nossa posição não é um estímulo à anarquia completa e a uma inércia total, o que queremos salientar e acentuar, é a importância do  equilíbrio entre o ocupar e o lazer, priorizando acima de tudo o bem estar dos filhos, dos pais e da família em pré e época de veraneio... 

Por isso, permita-se, sempre que lhe for possível, libertar-se da farda profissional  (interna e externa :-) ) e seja só um pai ou uma mãe, em pausa familiar....




Drª Inês Lamares




quinta-feira, 28 de junho de 2018

O efeito mágico do "NÃO" ...






São muitos os “nãos” que circulam por entre as interações e relações que se estabelecem ao longo da vida. Hoje debruçamo-nos sobre aqueles nãos que vão dos pais para os filhos, aqueles que tantas vezes causam indignação e revolta nos mais novos mas são tão necessários, tão organizadores. Nãos que podem ser comunicados verbalmente ou podem ser transmitidos através de uma atitude ou decisão, de um limite que é estabelecido, como uma afirmação de um pai ou de uma mãe...

Concordamos, obviamente, com a noção de ineficácia, crueza e inadequação que caracteriza uma educação e as relações cimentadas em nãos, daqueles nãos taxativos, rígidos, frios e distantes; as crianças e adolescentes precisam que lhes sejam apresentadas alternativas, precisam que lhes seja explicado o porquê de determinado não e as consequências de não o aceitar; é importante que tudo faça sentido; uma relação sem nãos é  desorganizadora.
Uma relação sem nãos pode ser descuidada, pode inverter papéis, pode até chegar a ser negligente. Um não muitas vezes mostra que o adulto se importa, que a criança ou adolescente não está sozinho e tem com quem contar. Mostra às vezes que tem que se contentar, que tem que fazer uso dos seus próprios recursos e que é possível ficar bem dessa forma, que fica bem mesmo que com o pai ou mãe um pouquinho mais distantes. Como o caso de uma menina de 7 anos cuja mãe criou uma rotina no momento de adormecer à noite muito agradável e securizante para esta mas com a qual foi perdendo o controlo e foi estendendo até ao ponto de demorar mais de 2 horas, entre massagens, histórias e canções. Às vezes dar demais também pode constituir um problema. Neste caso a mãe começou a ficar exausta, deixou de ser comportável, porque não se foi capaz de dizer que não, de transmitir que há limites ao que ela pode dar e que ela, a criança, também precisa aprender a aquietar-se sozinha. Esta é uma situação mais complexa do aqui se descreve mas  interessa hoje ver nesta perspetiva. Serve para ilustrar que às vezes um não é tão importante como o cuidado e o amor de uma mãe, é este que permite alcançar um relativo equilíbrio.

Mesmo que disso não tenha consciência, um adolescente securiza-se   com um não com o qual, aparentemente, se debate, contesta... É como se se tratasse de duas partes de si que estão em disputa e o pai ou a mãe viessem desempatar. Fica satisfeito (embora não o admitisse aos pais, nem que lhe pagassem) porque sossega... Afinal de contas, o que é da fantasia, pode continuar nesse mundo e pertencer apenas a ele e isso, pode ser imensamente tranquilizante.

Um adolescente precisa de limites e estes são construídos e alicerçados igualmente pelos nãos que vai escutando ao  longo do seu crescimento dando-lhe ferramentas para conseguir gerir, com confiança, os conflitos internos inerentes à etapa da adolescência  permitindo-lhe assim, definir com alguma segurança "o que é meu, o que é do outro, onde pertenço..." Quando este processo falha encontramos um adolescente perdido, desorientado, desorganizado reflectindo-se este comportamento, na maior parte das vezes, em resultados escolares insatisfatórios,  chumbos por faltas, ou em outros aspectos comportamentais nomeadamente, gasto excessivo de dinheiro, pequenos furtos caseiros, mentiras e outros... Existem, naturalmente, outras razões e circunstâncias de vida que o poderão levar a este estado, no entanto, a importância do papel dos nãos  para, entre outros aspectos, aprender a frustrar e consequentemente ajudá-lo a crescer  é absolutamente incontestável

nãos que protegem, há nãos repletos de amor, há nãos que encorajam...


Drª Filipa Rosário




quinta-feira, 17 de maio de 2018

Famílias Mais ou Menos... Acolher ou Adotar?







Em tempos, na minha consulta de psicologia, veio uma senhora trazer a sua filha “adotiva” de 15 anos que andava muito perdida e com comportamentos de risco na escola. A menina era muito bonita, tinha um sorriso encantador e puro, dava a impressão que tinha amor na sua vida. A “mãe” descreveu a menina com alguma ternura, ainda que timidamente, porém recriminava os maus comportamentos dela. 

Expressava que a adolescente estava a desiludir a família pois tinha sido “buscada” (“adotada”) e devia ser muito grata uma vez que teve o privilégio de ter acesso a uma realidade que jamais teria em condições normais. A história da querida menina foi muito dura, nasceu numa família de toxicodependentes, pai violento e alcoólico e mãe igualmente dependente e depressiva. É a terceira filha e a mais nova de três irmãos; um rapaz e uma mais velha. A adolescente foi retirada à família ainda com poucos meses de vida, a família era recorrentemente agressiva e negligente, deixavam as crianças sozinhas em casa, sem comida durante dias, o pai batia e maltratava principalmente a irmã mais velha. Este foi o contexto central, desta menina, quando nasceu e teve sim, talvez a sorte, de ser retirada ainda com meses para um centro de acolhimento. 

Contudo este bebé não foi adotado, foi um bebé, digamos que “emprestado”, isto é, são as famílias de “acolhimento” que acolhem as crianças mas não lhes dão o seu nome, que dizem para estas mesmas crianças para as tratarem como tios, apesar de serem pais, no fundo. Enfim são as famílias mais ou menos. Pode ser questionável - mas não será melhor estar numa destas famílias de “acolhimento” do que num centro de acolhimento? Aqui está a grande questão, estas famílias são, de facto, muito prestáveis, porém podem estar a provocar mais estragos e mazelas psicológicas, a estas crianças que já carregam um início de vida tão sofrido, marcado pela rejeição e pela falta de amor.


Esta adolescente nem bilhete de identidade tinha, pois não tinha de facto família (último nome) apesar de a ter na prática. Podemos deduzir que estas situações geram tremendas confusões na mente destes jovens que, por vezes, poderão recorrer a práticas perigosas, drogas, comportamentos sexuais de risco, porque na realidade sentem que não pertencem a nada (tal é a ansiedade e a dor interior). Esta é uma verdade indubitável para quase todos nós que nos enquadramos na “norma”, uma vez que podemos afirmar que pertencemos a esta família, o nosso último nome é o tal, é uma certeza garantida (nem pensamos muito no assunto). Mas estas crianças pensam e muito neste tema, vivem ora ansiosas ora tristes com esta situação da não assumida pertença. O processo de vinculação, a representação cognitiva que temos da forma como os mais significativos (pais ou outras figuras de referência) nos trataram ao longo da nossa infância, fica totalmente comprometida de forma negativa e vai influenciar todas as experiências relacionais futuras. Uma criança de Centro de acolhimento tem, necessariamente, esta representação danificada, as figuras de vinculação primárias foram negligentes, mal tratantes e abandónicas, pelo que provocaram, no bebé, uma construção de uma vinculação insegura que é muito difícil de reparar.

O ser humano necessita de pertencer a algo como necessita de se alimentar e de respirar. Precisa de pertencer a uma família em primeiro lugar e depois, de pertencer a um grupo de amigos, a um namoro, a uma escola, a um trabalho. Esta necessidade de pertença é fundamental, pois precisa de sentir que é especial, no seu trabalho, na sua família em tudo em que está envolvido de corpo e alma. Deste modo é muito violento afetivamente não ser verdadeiramente e concretamente adotado pela nova família. O não ser é uma rejeição “mascarada” que estas crianças não precisam muito pelo contrário.
 A adoção ou é concretizada após minuciosa análise dos pais e das crianças ou então, penso que estas famílias de acolhimento ou as do fim-de-semana, para os meninos de lar, não são uma solução viável que respeite o seu interesse superior. Os encontros escassos, com famílias em alguns fim-de-semanas também, só irão aumentar a frustração e a certeza, de que não pertencem a nada. É urgente perceber que as famílias “mais ou menos” são nefastas para estas crianças! Porque não merecem elas o melhor que podem ter? Porque não merecem elas uma família por inteiro? São crianças como todas e precisam de ter o mesmo que outras que nasceram numa família que as teve por inteiro. Só assim faz sentido que estas meninas e estes meninos, do mundo, tenham acesso a boas experiências, depois das contrariedades do início da vida. A sociedade deve lhes isso e não podemos fazer, se não o nosso melhor, para lhes proporcionarmos o mínimo: que é ter uma identidade, que é pertencer.

Mafalda Leite Borges



quinta-feira, 10 de maio de 2018

A culpa é da mãe!!!






(…) Para o psicólogo da minha filha a culpa é sempre minha, porque eu faço isto e aquilo, devia fazer de outra forma…porque deixo que ela faça tudo o que quer… sou permissiva e cedo sempre. Sabe lá ele o que ela faz se lhe disser que não! Tenho que ir sempre distraindo-a para a levar a bem se não…
 Faça o que fizer a culpa é sempre minha…até parece que eu é que a ponho assim!! “

As mães…as mães…como são importantes! É por vezes tão difícil de explicar e transmitir-lhes a importância do seu papel, como das mesmas o ouvirem, sem tricotar uma palavra mais assertiva ao rendilhado de olhares e nós críticos do mundo exterior, suspensos no seu tear interno de medos e inseguranças.

Eduardo Sá dizia As boas mães são chatas!”, e atrevo-me a acrescentar tão chatas quão corajosamente medrosas. As boas mães, ou mães suficientemente boas como dizia Winnicott, têm medo de verter aquela lágrima no momento de maior fraqueza, de atrasar 5 minutos a hora de mamar, de não valorizar aquela borbulha, de ralhar demais ou de menos, de não repetir pela trigésima vez que o amam, de ter tempo para si, de não conseguir controlar ao milímetro um coração que pula e bate fora delas, de serem iguais ás suas próprias mães ou totalmente diferentes…têm medo de que façam mal ao seu menino/a ou até bem demais, colocando em causa  o seu valor e alterando o poder do seu centro gravitacional no mundo interno do seu rebento.
As boas mães são corajosamente medrosas porque, com estes e tantos outros medos empoleirados nos seus ombros não baixam os braços, não deitam a toalha ao chão e assumem a peito cheio que…ser mãe é a melhor coisa do mundo.
E a culpa é sempre da mãe? “

Não…de todo. Deixemos a culpa para os tribunais, porque as cobranças ás heranças passadas levariam demasiado tempo e acabariam num inabalável “a tua mãe, avó, bisavó…fez o que sabia de melhor na altura”. E naturalmente isso seria quase  uma conclusão inquestionável, tornando ilógico cobrar ao passado um preço do presente. Pensemos antes na responsabilidade que a figura materna assume desde o primeiro olhar, toque, pensamento, palavra e desejo sobre o seu filho. É expectável, que a par do choque à realidade extra-uterina, a primeira mancha visual que o bebé percepciona seja a do rosto materno e, no mesmo registo, o chorrilho de sons e palavras da sua voz, bem como, o seu cheiro e toque totalmente novo e único. E esta sensação maravilhosa e “perigosa”, de receber no colo pela primeira vez o ser com quem partilhámos o nosso corpo, deverá perdurar em cada boa mãe até à despedida.

E é neste cordão umbilical invisível que se tricota a relação basilar da vida emocional de um bebé, que se tornará criança, jovem e finalmente adulto. E é exactamente neste cordão que cada filho aprenderá a sentir, a viver e a crescer para o mundo, construindo a sua identidade e papel na sociedade. Malha a malha há um cordão que se consolida, entrelaça e amarra nas mais diversificadas vivências, do sorriso ao choro, bem como, da alegria à dor.

A cada malha fugida neste tricot haverá uma lágrima, outras um buraco ou espaço por preencher, um padrão interrompido que poderá quebrar a harmonia e consistência de um cordão. Cordão este que se deseja sempre perfeito…ou antes suficientemente bom, chato e corajosamente medroso, para assumir a sua falha sem comprometer a sua força, dando espaço para ser reparado e remendado com amor.

A culpa não é sempre da mãe, mas a responsabilidade de segurar entre as mãos as agulhas que tricotam um cordão que cresce sobre o seu colo sim…isso sim. E é essa a magia da maternidade…a melhor coisa do mundo!!

Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia





sexta-feira, 30 de março de 2018

A semente de quem somos...







É nas relações que estabelecemos ainda enquanto crianças que se encontra a origem do que sentimos, daquilo em que acreditamos e da forma como nos relacionamos com os nossos outros significativos. Apesar de não termos normalmente memórias dos nossos primeiros anos de vida, é nesta fase que as sementes de quem somos são lançadas à terra. Não se pretende com isto reduzir a essência do ser humano a este período inicial de vida; naturalmente que as nossas experiências ao longo da vida também nos moldam. No entanto, há que olhar com atenção para esta fase tão especial, feita de primeiros encontros e desencontros.

Durante os primeiros anos de vida, é através da interação com as figuras cuidadoras que se torna possível a organização interna das crianças. Estas figuras são essenciais na maturação pulsional e estruturação do Eu que se dá na primeira infância, havendo uma transformação das experiências partilhadas em esquemas cognitivo-afetivos. Estes irão estruturar a forma como as crianças pensam e se sentem em relação a elas mesmas e às outras pessoas, o que lhes permite olhar para o mundo de uma forma simplificada, à luz destas experiências precoces.

Que características devem pautar estas figuras para que haja um desenvolvimento harmonioso na criança? Para que o mundo seja olhado com lentes realistas mas também essencialmente positivas? Arriscamos dizer que não sabemos. Não existem fórmulas certas, conselhos infalíveis e receitas mágicas. No entanto, apontamos duas características que nos parecem absolutamente essenciais: o afeto e a autonomia.

Sobre o afeto muito haveria por dizer, mas optamos por não nos alongar. Preferimos deixar a sua mente aberta às mais variadas manifestações de amor que possam existir e que façam parte do seu quotidiano: um beijo e um abraço ao acordar, um olhar cúmplice num momento de travessura, uma “colher-avião” à hora de jantar, ou uma história antes de adormecer. É a partilha, a cumplicidade, o desfrutar dos momentos que se passam em família.
Na autonomia, há que respeitar as várias fases em que as crianças (e também as famílias, diríamos nós) se encontram. No começar a andar e afastar da mão sempre pronta a amparar, e que de repente começa a ter de sacudir terra dos joelhos, limpar lágrimas da face e, mesmo assim, encorajar a seguir em frente. Na roupa que não combina e que foi escolhida por pequenas mãos, mas que, desde que ajustada à estação do ano, talvez possa ser simplesmente vista como muito criativa. No assistir a um tomar de decisões com as quais não se concorde mas que, apesar de tudo, poderão ensinar muito sobre o que são consequências. No acreditar em coisas diferentes, num pensamento crítico e promotor de discussões saudáveis, com a conquista de uma maior capacidade de argumentação.

Porque as sementes lançadas à terra se tornam, também elas, em árvores independentes, querem-se raízes fortes e resistentes às intempéries da vida.


Drª Carolina Franco
O Canto da Psicologia



quinta-feira, 15 de fevereiro de 2018

Enurese - O xixi que alivia...






Enurese: uma perspetiva além da fisiologia


A enurese infantil é um distúrbio que se caracteriza pela perda involuntária de urina, numa idade em que a criança já deveria ter obtido o controlo dos esfíncteres. A manifestação da enurese ocorre, sobretudo, durante a noite, podendo variar na frequência e na intensidade e amplificando-se quando a criança está exposta a situações de tensão. 
A origem do quadro enurético pode estar relacionado com diversas condições, sejam elas de cariz orgânico-fisiológico ou psicológico. Com efeito, a enurese pode ser um sintoma resultante de diversos fatores predisponentes, de natureza social, psicológica e anatómica, pelo que o seu diagnostico implica, sempre, um rastreio de todos os possíveis fatores desencadeadores. 

Quando nos reportarmos a situações de cariz emocional, as quais surgem frequentemente na clínica, verificamos que este quadro parece emergir como uma expressão indireta da angústia vivenciada pela criança, constituindo-se, não raras vezes, como uma forma de manifestar a sua necessidade de auxílio ou como forma de atrair a atenção dos pais, através deste sintoma. Situações como o nascimento de um irmão ou o divórcio dos pais, são exemplos de fatores que podem fazer despoletar este quadro, no qual a ansiedade e a tensão geradas acabam por ser “descarregadas” pela criança durante o sono.

Trata-se de uma problemática que afeta cerca de 15% das crianças com 5 anos, sendo que, de acordo com um estudo da National Sleep Foundation, cerca de 21% das crianças em idade pré-escolar faz chichi na cama, pelo menos, uma vez por semana. A enurese noturna apresenta, pois, um impacto evidente no comportamento e bem-estar da criança ou do adolescente, sendo simultaneamente uma fonte de stress para a família. Entre as consequências negativas da enurese, encontram-se a baixa auto-estima, o isolamento, e o elevado stress relacionado ao medo de ser ridicularizado pelo grupo de pares. Este quadro acarreta o comprometimento da socialização, pelo que é importante que os pais entendam o caráter involuntário da doença e sejam compreensivos com as crianças, procurando ajuda, nos casos em que este sintoma perdure. 

A psicoterapia tem-se revelado eficaz no trabalho com estas crianças e com as famílias, permitindo uma melhoria do sintoma, mas, sobretudo, dos efeitos colaterais que esta condição implica para todos. 

Entretanto e porque cabe aos pais ajudar a criança a ultrapassar a situação e não transformar estes episódios numa experiência traumatizante, deixamos-lhe por aqui algumas sugestões:
  • Expliquem ao seu filho que há muitas crianças da idade dele que também passam pelo mesmo problema e que conseguem ultrapassá-lo.
  • Limitem a ingestão de líquidos a partir do final da tarde.
  • Deitem a criança sempre à mesma hora e estabeleçam uma rotina que inclua a ida à casa de banho antes de se deitar.
  • Criem com ele e de acordo com as suas rotinas um sistema que o possa ajudar a ter menos momentos "molhados" ;
  • Reconhecer de forma consistente o sucesso de uma noite seca e os convenientes que traz para todos, sempre que isso acontece; afinal de contas ele foi capaz.
  • Que o seu filho participe sempre na logística inerente a estes episódios, por exemplo, que seja ele a tirar a roupa da cama e a colocá-la na máquina de lavar; afinal de contas  o problema é seu e há um trabalho a fazer  para o vencer.



O Canto da Psicologia,
Dr.ª Joana Alves Ferreira



segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

Este Carnaval, quero ser uma girafa...





“…Quem sou eu?
Digam-me primeiro quem eu sou,
e se eu gostar de ser essa pessoa, eu subo;
senão fico cá em baixo até ser alguém que me agrade...”
Alice não sabe dizer quem é…eu também não me entendo,
tenho tantos tamanhos, todos diferentes num só dia,
é uma coisa que me confunde muito…”

Lewis Caroll, Alice no País das Maravilhas

Conheci em tempos uma menina que num determinado Carnaval e aquando do momento em que os pais lhe perguntaram do que é que ela se queria mascarar, com o seu enorme desejo de explorar e conhecer mais do mundo, responde:

-Este Carnaval quero ser uma girafa!

A mãe, desesperada e a pensar ao mesmo tempo onde é que ia desencantar um fato de girafa, pergunta-lhe:
-Mas porquê uma girafa? (Questionando-se para si própria porque não outro animal qualquer)
Ao que a criança, genuinamente como todas as crianças, lhe responde:

-Porque eu gostava de ser uma girafa. São os animais mais altos da selva. Conseguem ver tudo o que os outros animais não conseguem… achas que podemos adoptar uma girafa?

É um bocadinho isto o Carnaval… aquele dia em que podemos escolher ser quem quisermos, em que podemos escolher a máscara que queremos usar.
Podemos olhar para este dia ou este conjunto de dias como momentos com imensa potencialidade.
No caso dos adultos, na medida em que eles podem, em certa medida, escolher a máscara ou a faceta que querem usar ou ser… no caso das crianças porque naquele dia podem, na realidade concreta do dia-a-dia escolherem ser o que quiserem – sem as tais máscaras que os pais ou as mães lhes vão vestindo no quotidiano.
As crianças, mais do que os adultos, têm acesso a estes momentos, quando estão a brincar ao faz de conta em que a fantasia lhes permite serem princesas ou príncipes, dragões, tigres ou leões, ou quem sabe, unicórnios…

Nós adultos, temos isto de outra maneira… temos isto naquilo que somos, consciente ou inconscientemente no nosso dia-a-dia. Temos isto quando colocamos as nossas máscaras, porque estamos em contextos diferentes, porque temos diferentes estados de humor, porque temos diferentes papéis, porque nos relacionamos com diferentes pessoas… mas estas máscaras, muitas vezes, surgem-nos pela necessidade (real ou da fantasia) de que temos de ser, ou de que temos de nos proteger, ou que temos de nos defender, ou corresponder, ou qualquer outra coisa… e às vezes, tal como a Alice, ficamos baralhados com os tantos tamanhos que temos ao longo de um mesmo dia.

Podemos olhar para o carnaval como o espaço onde os adultos se libertam de algumas das suas máscaras e o momento em que podem dar uso à fantasia e para as crianças, o momento em que podem aliar a fantasia à realidade…



Drª Inês Lamares
O Canto da Psicologia