quinta-feira, 30 de agosto de 2018

Crónicas do tapete: brincar com bonecas...






- Este é o teu bebé e estes são os meus! Toma, mete por baixo da camisola, ainda não nasceram!

Brincar com bonecas, ou com qualquer objeto que sirva a mesma função, é uma forma absolutamente privilegiada de aceder ao mundo simbólico infantil. Esta atividade desvela um universo de uma complexidade assombrosa, composto por sonhos, memórias, fantasias e experiências de vida de pequenos seres que por vezes ainda nem perderam os dentes de leite! Ao trabalhar com os mais novos, ao tentar vislumbrar o seu mundo interno, é necessário empregar um registo diferente daquele que marca o trabalho com adultos. Assim, o tapete da sala torna-se muitas vezes num componente imprescindível.

Neste tapete, que nada tem de inaudito, deparamo-nos com alguma frequência com movimentos mais agressivos da parte das crianças, que tanto passam por insultar o terapeuta como chegam a ser de agressividade agida, com empurrões e chapadas.  Aquilo a que se pode almejar é a um trabalho elaborativo, de compreensão da função desse mesmo comportamento, o que nos irá permitir olhar humildemente para o que as crianças nos trazem, com verdadeiro interesse, e sem “levar a peito” estes movimentos. Lentamente, pretende-se que as vamos ajudando a transformar a dor, o medo ou a raiva em produtos mais digeríveis, integrados numa vivência complexa.

Durante bastante tempo, uma menina em acompanhamento optava por brincar invariavelmente com bonecas. No decorrer das nossas sessões, ambas assumíamos muitas vezes o papel de mães, pais ou filhos, alternando entre papéis a um ritmo quase selvático. A seu mando, as bonecas que perfilhávamos eram envenenadas, enganadas de forma absolutamente perversa, agredidas de forma gratuita, e não cuidadas ao ponto de falecerem, sem que isso despertasse fosse em quem fosse qualquer tristeza ou mágoa. Ao chegar ao final do nosso tempo, sessão após sessão, mês após mês, esta criança tentava-se esconder dentro da sala ou fugia para se esconder noutras divisões, tentava roubar brinquedos, empurrava-me, fingia urinar para cima de mim, cuspia efetivamente em mim, mas não abandonava o nosso espaço. Lentamente, conseguimos chegar juntas à compreensão de que aquela separação no final das nossas sessões era verdadeiramente dolorosa; aquele espaço seguro e pleno de aceitação, interesse e compreensão fugia-lhe entre os dedos, e a sua reação a tal “perda” era partir para a agressão. A agressão que me era infligida era, no fundo, uma defesa: contra o mal ao qual ela sentia estar frequentemente sujeita, contra o sentimento de vulnerabilidade perante o outro, contra a nossa ligação que, ao ser aceite enquanto real, queria ser mantida a todo o custo, de forma agida e não elaborada. Este repetir da agressão, sessão após sessão, foi, em si, uma oportunidade. Para a interpretação, para a reconstrução e para o crescimento, tanto da menina quanto meu enquanto profissional, que não poucas vezes regressava a estes momentos ao longo da semana e neles procurava significado.

Ao longo deste último ano, o nosso tapete passou a ter bebés que já não são envenenados, ou abandonados à nascença, e agora até o parto é mais humanizado, com cuidados médicos tanto às mães como aos bebés. Os pais interagem de forma mais próxima com os filhos, que por sua vez passaram a estabelecer também relações satisfatórias com outras pessoas, membros da família ou pertencentes a outros contextos. No fundo, vislumbram-se algumas alternativas de funcionamento que envolvem trocas emocionais recíprocas, um investimento genuíno no outro, umas pinceladas de narcisismo saudável e, no geral, uma menina com uma maior tranquilidade.

Neste momento, o final das sessões é na maioria das vezes sereno, e acompanhado de um pequeníssimo pedaço de plasticina bem apertado na sua mão; este ato permite-lhe sentir que a nossa relação se mantém para lá das nossas portas, que não termina quando o ponteiro, implacável, assinala o fim. Estamos a evoluir para uma lista dos objetos necessários para a nossa próxima sessão, que é por ambas assinada; este novo passo brota de uma ainda tímida (mas bastante significativa) maior capacidade de representar internamente a nossa relação. Juntas avançamos, ao seu ritmo, porque tal como os bebés que parimos de novo a cada sessão, também ela tem vindo a renascer, a pouco e pouco.




Drª Carolina Franco
O Canto da Psicologia


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