Vivemos atualmente na Era da informação, sendo diariamente inundados por
ela... No que ao desenvolvimento infantil diz respeito, bem como às relações
pais-filhos, o Dr. Google, redes sociais com posts a cada minuto que passa sobre comportamento infantil, a relação
pais-filhos e como melhorar essa relação, programas de TV, programas de rádio,
revistas, livros, uma panóplia de informação... Porque é que mesmo assim é tão
difícil pôr em prática aquilo que nos é transmitido?
Na nossa prática clínica com crianças e jovens percebemos que são raros
os pais pouco informados, pelo
contrário. A partir do momento em que se tornam pais lêem tudo o que lhes
aparece pela frente. Assim sendo, porque é que não resulta na prática o que
sabem e, muitas vezes, a informação que tão cuidadosamente procuramos
transmitir-lhes?
No que respeita à relação pais-filhos não existem soluções prontas. Este
é já um “lugar-comum”, mas resta ainda explorar um pouco mais os seus porquês.
Em primeiro lugar porque cada criança é uma criança, cada mãe é uma mãe,
cada pai é um pai, cada casal é um casal e cada família tem as suas
características e particularidades. Em segundo lugar, observamos que nos
momentos críticos toda a teoria, aquilo que se lê e quer aplicar na educação
dos filhos é “esquecida”. Naqueles momentos em que a emoção predomina, a
tendência dos adultos é para duas atitudes opostas: ou a repetição dos comportamentos dos seus próprios pais ou, ao contrário,
a oposição aos mesmos, por medo de cometer os mesmos “erros” que os seus
cuidadores o que, geralmente, também não se traduz em resultados positivos para
a educação dos mais jovens.
Em consulta surgem-nos
assim as seguintes questões:
“Eu fiz exatamente aquilo que estava lá no site
mas não resultou!”, “Eu sei que não se deve bater, gritar, mas ele/ela leva-me
ao desespero!”, “Já andou numa/num psicóloga/o, não deu certo, voltou ao
mesmo...”, “Já tentei de tudo, e não passa do mesmo...”, “Eu também era
assim!”, “O pai dele (a) também era assim!” “A minha mãe diz que eu era igual!”
Explorando um
pouco mais percebemos que o que “era igual” diz respeito ao modo como os pais
lidavam com eles e... o discurso que lhes era dirigido... as palavras que os
seus próprios pais lhes dirigiam.
Tendemos a ter
dificuldades onde também tiveram dificuldades connosco, tendemos a repetir o que
nos disseram a nós também. Quantas vezes damos por nós a pensar, assim que
reagimos de determinada forma ou que nos sai disparado da boca um comentário
infeliz: “Bolas! Eu que tanto me queixei disto... e estou a fazer/dizer o
mesmo?!”
Quando se passa
por alguma mudança, crise familiar, ou quando a criança está num período de
passagem de uma fase de desenvolvimento a outra (o que é gerador de ansiedade na
criança e potencialmente perturbador da harmonia familiar) o que prevalece é a
emoção. Nessas alturas, tendemos a agir
de acordo com aquilo que temos “dentro de nós”.
A falta de
paciência ou, inversamente, a disponibilidade para ouvir e falar, a tendência
para bater ou, pelo contrário, a possibilidade de controlar os próprios
impulsos agressivos, a capacidade para impor limites na medida certa ou, em
oposição, a tendência para impor limites rígidos ou frouxos demais, são modos
de resposta na relação pais-filhos que, mais do que serem “aprendidos”, ficam
gravados emocionalmente e, como mecanismos “automáticos”, são ativados nos
momentos em que são solicitados – quando damos conta “já saiu”.
Em linguagem
“psi”, são ativados “mecanismos inconscientes” que, enquanto não se tornarem
conscientes (ou seja, enquanto não dermos conta do que se passa na nossa mente
nesses momentos), vão predominar sobre aquilo que queremos realmente fazer no
que diz respeito à relação com os filhos e à educação dos mesmos. E é assim que
se dá aquilo que em Psicanálise designamos de “transmissão transgeracional”: a
passagem, de geração em geração, do mesmo modo de estar na relação, de gerir as
emoções, de resolver os problemas, as crises, os conflitos,... para o bem e
para o mal...
Este é um tema
muito falado entre “psis”, seja no meio profissional seja no meio académico,
mas que habitualmente fica “fechado” nestes círculos. É de nossa opinião que se
trata de um aspecto da dinâmica da relação pais-filhos que deve ser dada a
conhecer “a quem de direito”.
Nas consultas de
psicologia infantil e do adolescente é um aspecto que acaba por surgir
naturalmente. Os pais melhor do que ninguém sabem que repetem ou compensam, por
isso sofrem, porque o difícil é fazer diferente, mudar... Mas entretanto, a
intervenção terapêutica que continua a predominar é com a criança, quando na
maior parte das vezes o que deve mudar é o modo dos pais estarem na relação com
ela.
Hoje, como referimos no início do texto, há um excesso de informação. O
que parece continuar a faltar é um trabalho mais próximo aos pais e educadores
para os ajudar a perceber as suas próprias dificuldades na relação com as
crianças. Acreditamos que falar das suas dificuldades com elas é falar de si
mesmos.
O trabalho que
desenvolvemos com pais e educadores passa assim por iluminar muito para além do
comportamento desajustado/sintoma da criança. Passa por ajudar os pais a
diferenciar, no meio da dificuldade que vivem, o que é seu (faz parte da sua
história enquanto filho/a) e o que é do seu filho.
Dentro desta
perspectiva, quando falamos em qualidade na relação pais-filho referi-mo-nos à capacidade de estar verdadeiramente com a
criança/jovem - disponíveis para conhecê-los verdadeiramente, olhando-os e
escutando-os enquanto seres de desejos próprios, necessidades próprias, o que é
bem diferente de olhá-los e escutá-los à luz do que nós fomos e das nossas
experiências apenas...
Acreditamos que se continua a ouvir pouco as crianças. Ao contrário do
que por vezes se diz, de que estamos atualmente perante uma “hiper-valorização
da infância”, pensamos , ainda assim,que se continua a ouvir pouco as crianças com “ouvidos
de ouvir”, ou seja, disponíveis para conhecê-las verdadeiramente e entendê-las “despidos”
de nós mesmos. Só deste modo poderemos ajudá-los a conhecerem-se a si próprios
também, a identificar e lidar com as suas próprias emoções, habilidades tão
importantes para que possam lidar com as suas dificuldades e responsabilidades
sem angústias incapacitantes.
Assim sendo, devemos
ter em conta a criança (pessoa!) de quem se fala, em primeiro lugar. Por outro
lado, é importante que os pais se orientem para dentro de si mesmos, lancem um
olhar sobre si mesmos, com vista a mudar o que há a mudar em si e no seu modo
de estar na relação com os filhos. Este é um desafio “e pêras”, mas o olhar “de
fora” que concedemos ajuda a clarificar, tranquiliza, ilumina para além do
sintoma, desculpabiliza. Muitas vezes têm que ser pensados os sentimentos de
frustração, de auto-recriminação, de culpabilização dos pais, quando tendem a julgar
que são “maus pais” ou que são eles que não conseguem aplicar as “fórmulas
milagrosas”.
Ao invés de
fornecer soluções padronizadas, há que respeitar a individualidade de cada mãe
e cada pai e conceder-lhes uma compreensão profunda dos aspectos da sua
experiência enquanto filhos que os liberte das correntes do passado e que estão
a impedi-los de fazer
diferente, de sair do ciclo de repetição ou de compensação.
Somos seres de relação, nascemos da relação, vivemos para a relação.
Quando mudamos o nosso modo de nos relacionarmos, a qualidade das nossas
relações aumenta, quando não mudamos percebemos, mais tarde ou mais cedo, que
estamos a repetir tudo o que deu errado em relações anteriores.
Porque aconteceu consigo não quer dizer que aconteça com o seu
filho/sua filha... se o olhar como um Ser diferenciado de si mesmo, com desejos
e necessidades próprias. É importante que lhe fale com respeito e sempre com a
verdade. Pode falar-lhe dos seus erros ou dos erros que outrora cometeram consigo,
mas mostrar-lhes como eles são diferentes, o que têm de diferente, portanto... tudo pode ser diferente.
Dra. Irene Cardoso
O Canto da Psicologia