“João A…, ao Gabinete
1”
“ Matilde L…, à Sala de
tratamentos”
E assim
sucessivamente se ouviam os “plins” de uma campanha que servia de banda sonora
aquela manhã.
Naquela sala
de espera da urgência de pediatria (do que poderia ser um qualquer Hospital
Nacional), os brinquedos arrumados nas duas caixas ao lado da mesa, estavam
claramente doentes. Coloridos, texturados e exuberantes, apelando
provocadoramente ao “olha para mim” vestiam negro no olhar e cinzento nos
sorrisos. Levianamente muitos diriam: é uma virose! Antes fosse… que entre
mezinhas, pomadas, descanso e recato haveria de passar.
O diagnóstico
parecia claro embora encontrasse o seu contraste nas cores da roupa da boneca
de pano e na musica do orgão de animais, não poderia haver dúvidas de que
aqueles brinquedos padeciam de um mal gravíssimo. O robot espacial, o carrinho
do Noddy, o telefone cor-de-rosa, a boneca de pano, o orgão dos animais e sua
restante comitiva transportavam um ar pesado, um olhar baço e uma inércia que
tão pouco as pilhas alcalinas( já quase a “babar”) tinham potência para
combater. Os brinquedos estavam de luto! Curvados, tortos e amassados se
carregassem ás costas a sua perda, haveria a algures de se ler: Aqui Jaz uma
infância perdida!
A vivacidade
de outrora estava perdida, o sentido no balanço do significante e significado,
perdera o norte e o seu papel há muito parecia enterrado nas memórias
longínquas, de um tempo que parecia já não se voltar a repetir. No meio de todo
o barulho e frenesim daquela sala, batiam corações mudos em sintonia entre os
quatro lados de cada caixa e ao aproximar-me na incredulidade de tamanha
exasperação, juro quase ter ouvido um choro uníssono abafado que só os objectos
outrora amados e agora abandonados conhecem.
Os brinquedos
estavam de luto, pelas enumeras crianças que perderam, pelas imensas
mãos que já não lhes tocavam, pelos apertos que já não levavam e pelos sorrisos
inocentes de novos descobridores que não vislumbravam.
Os brinquedos
estavam de luto e sucumbiam a uma dor, por vezes enganada pelos passos
desleixados em modo de corrida que se dirigiam sobre a caixa, que depois e
sobre o olhar projectado e desvitalizador se desiludiam por nada mais terem
para oferecer que não eles próprios. Os brinquedos estavam de luto pela perda
do amor do objecto. Esse amor talhado na forma de olhar o outro, medido nos
gestos de afecto e amparo, que cria laços tão fortes como cimento que edifica
cada estrutura interna como única…esse amor faltava-lhes agora. Restava
fantasiar sobre as linhas finas de uma constituição subjectiva do que até então
se tinha internalizado mais profundamente que um ou outro parafuso, uma
pelúcia, um botão, peça de plástico ou até mesmo uma bateria.
Imaginei a
boneca de pano em sessão, mergulhada no divã com a caixa de lenços ao colo
murmurando entre lágrimas os seus sentimentos de culpa que lhe atormentam os
sonhos e o olhar sobre a realidade, os sentimentos de não merecimento e de
insuficiência que a deixam letárgica e incapaz de pensar. Até mesmo o Robot
enchendo o Setting com o seu vazio interno e a sua dificuldade em pensar as emoções,
desviando o olhar sobre a janela e mantendo um silêncio tão ensurdecedor que
não dava espaço para interpretar e conter. E o orgão de animais… metia dó mas
já só tocava Ré, desarmonioso sem posição para estar saltitando de um lado para
no sofá, levantando-se e gesticulando sem tom, num registo incontido e lábil,
numa vulnerabilidade tão característica dos que perderam o seu lugar, papel e identificação.
Os brinquedos
estavam de luto por todas as crianças que passaram, passam e permanecem naquela
sala de espera. Choravam a perda dos palmos e meio que naquele mesmo momento
enchiam o espaço, tornando-o cada vez mais vazio de quem o via através das
caixas. Os brinquedos estavam de luto pelo João A. que de chucha na boca e
lágrima ao canto do olho ficou ao colo do pai a ver o Babytv no tablet.
Estavam de luto pela Matilde com 4 anos que sentada ao lado da mãe gargalhava
entre a tosse e o fungar, ao ver a Dora - A Exploradora no youtube.
Estavam de luto por eles e pelas restantes oito crianças que sem sair do lugar
e sem nunca se debruçarem sobre as caixas, “brincavam” escondendo-se da
espontaneidade, do faz-de-conta, da fantasia e da experimentação, atrás dos
ecrãs das tecnologias.
Perguntei a
medo à enfermeira - Isto é sempre assim? - não percebendo a inquietação
inicial da pergunta acabou mais tarde por responder - Sim. No outro dia até
pensei se não seria melhor retirar as caixas dali do fundo e… (enchi-me de
esperança) deixar a extensão mais disponível para os carregadores de
telemóvel e tablets (morri na praia). Mais grave que um infância que se
perde é claramente uma adultez que a corrompe, esmaga e negligencia.
Aqui Jaz uma
Infância que um dia soube brincar, fazer-de-conta, caiu e levantou-se, conheceu
os limites do seu corpo, esfolou os joelhos, explorou, experimentou e foi…e
soube ser CRIANÇA.
Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia
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