Em
tempos, na minha consulta de psicologia, veio uma senhora trazer a sua filha
“adotiva” de 15 anos que andava muito perdida e com comportamentos de risco na
escola. A menina era muito bonita, tinha um sorriso encantador e puro, dava a
impressão que tinha amor na sua vida. A “mãe” descreveu a menina com alguma
ternura, ainda que timidamente, porém recriminava os maus comportamentos
dela.
Expressava
que a adolescente estava a desiludir a família pois tinha sido “buscada”
(“adotada”) e devia ser muito grata uma vez que teve o privilégio de ter acesso
a uma realidade que jamais teria em condições normais. A história da querida
menina foi muito dura, nasceu numa família de toxicodependentes, pai violento e
alcoólico e mãe igualmente dependente e depressiva. É a terceira filha e a mais
nova de três irmãos; um rapaz e uma mais velha. A adolescente foi retirada à
família ainda com poucos meses de vida, a família era recorrentemente agressiva
e negligente, deixavam as crianças sozinhas em casa, sem comida durante dias, o
pai batia e maltratava principalmente a irmã mais velha. Este foi o contexto
central, desta menina, quando nasceu e teve sim, talvez a sorte, de ser
retirada ainda com meses para um centro de acolhimento.
Contudo
este bebé não foi adotado, foi um bebé, digamos que “emprestado”, isto é, são
as famílias de “acolhimento” que acolhem as crianças mas não lhes dão o seu
nome, que dizem para estas mesmas crianças para as tratarem como tios, apesar
de serem pais, no fundo. Enfim são as famílias mais ou menos. Pode ser
questionável - mas não será melhor estar numa destas famílias de “acolhimento”
do que num centro de acolhimento? Aqui está a grande questão, estas famílias
são, de facto, muito prestáveis, porém podem estar a provocar mais estragos e
mazelas psicológicas, a estas crianças que já carregam um início de vida tão
sofrido, marcado pela rejeição e pela falta de amor.
Esta
adolescente nem bilhete de identidade tinha, pois não tinha de facto família (último
nome) apesar de a ter na prática. Podemos deduzir que estas situações geram
tremendas confusões na mente destes jovens que, por vezes, poderão recorrer a
práticas perigosas, drogas, comportamentos sexuais de risco, porque na
realidade sentem que não pertencem a nada (tal é a ansiedade e a dor
interior). Esta é uma verdade indubitável para quase todos nós que nos
enquadramos na “norma”, uma vez que podemos afirmar que pertencemos a esta
família, o nosso último nome é o tal, é uma certeza garantida (nem pensamos
muito no assunto). Mas estas crianças pensam e muito neste tema, vivem ora
ansiosas ora tristes com esta situação da não assumida pertença. O processo de
vinculação, a representação cognitiva que temos da forma como os mais significativos
(pais ou outras figuras de referência) nos trataram ao longo da nossa infância,
fica totalmente comprometida de forma negativa e vai influenciar todas as
experiências relacionais futuras. Uma criança de Centro de acolhimento tem,
necessariamente, esta representação danificada, as figuras de vinculação
primárias foram negligentes, mal tratantes e abandónicas, pelo que provocaram, no
bebé, uma construção de uma vinculação insegura que é muito difícil de reparar.
O
ser humano necessita de pertencer a algo como necessita de se alimentar e de
respirar. Precisa de pertencer a uma família em primeiro lugar e depois, de
pertencer a um grupo de amigos, a um namoro, a uma escola, a um trabalho. Esta
necessidade de pertença é fundamental, pois precisa de sentir que é especial,
no seu trabalho, na sua família em tudo em que está envolvido de corpo e alma.
Deste modo é muito violento afetivamente não ser verdadeiramente e
concretamente adotado pela nova família. O não ser é uma rejeição “mascarada” que
estas crianças não precisam muito pelo contrário.
A adoção ou é concretizada após minuciosa
análise dos pais e das crianças ou então, penso que estas famílias de
acolhimento ou as do fim-de-semana, para os meninos de lar, não são uma solução
viável que respeite o seu interesse superior. Os encontros escassos, com
famílias em alguns fim-de-semanas também, só irão aumentar a frustração e a
certeza, de que não pertencem a nada. É urgente perceber que as famílias “mais
ou menos” são nefastas para estas crianças! Porque não merecem elas o melhor
que podem ter? Porque não merecem elas uma família por inteiro? São crianças
como todas e precisam de ter o mesmo que outras que nasceram numa família que
as teve por inteiro. Só assim faz sentido que estas meninas e estes meninos, do
mundo, tenham acesso a boas experiências, depois das contrariedades do início
da vida. A sociedade deve lhes isso e não podemos fazer, se não o nosso melhor,
para lhes proporcionarmos o mínimo: que é ter uma identidade, que é pertencer.
Mafalda
Leite Borges
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