quinta-feira, 17 de maio de 2018

Famílias Mais ou Menos... Acolher ou Adotar?







Em tempos, na minha consulta de psicologia, veio uma senhora trazer a sua filha “adotiva” de 15 anos que andava muito perdida e com comportamentos de risco na escola. A menina era muito bonita, tinha um sorriso encantador e puro, dava a impressão que tinha amor na sua vida. A “mãe” descreveu a menina com alguma ternura, ainda que timidamente, porém recriminava os maus comportamentos dela. 

Expressava que a adolescente estava a desiludir a família pois tinha sido “buscada” (“adotada”) e devia ser muito grata uma vez que teve o privilégio de ter acesso a uma realidade que jamais teria em condições normais. A história da querida menina foi muito dura, nasceu numa família de toxicodependentes, pai violento e alcoólico e mãe igualmente dependente e depressiva. É a terceira filha e a mais nova de três irmãos; um rapaz e uma mais velha. A adolescente foi retirada à família ainda com poucos meses de vida, a família era recorrentemente agressiva e negligente, deixavam as crianças sozinhas em casa, sem comida durante dias, o pai batia e maltratava principalmente a irmã mais velha. Este foi o contexto central, desta menina, quando nasceu e teve sim, talvez a sorte, de ser retirada ainda com meses para um centro de acolhimento. 

Contudo este bebé não foi adotado, foi um bebé, digamos que “emprestado”, isto é, são as famílias de “acolhimento” que acolhem as crianças mas não lhes dão o seu nome, que dizem para estas mesmas crianças para as tratarem como tios, apesar de serem pais, no fundo. Enfim são as famílias mais ou menos. Pode ser questionável - mas não será melhor estar numa destas famílias de “acolhimento” do que num centro de acolhimento? Aqui está a grande questão, estas famílias são, de facto, muito prestáveis, porém podem estar a provocar mais estragos e mazelas psicológicas, a estas crianças que já carregam um início de vida tão sofrido, marcado pela rejeição e pela falta de amor.


Esta adolescente nem bilhete de identidade tinha, pois não tinha de facto família (último nome) apesar de a ter na prática. Podemos deduzir que estas situações geram tremendas confusões na mente destes jovens que, por vezes, poderão recorrer a práticas perigosas, drogas, comportamentos sexuais de risco, porque na realidade sentem que não pertencem a nada (tal é a ansiedade e a dor interior). Esta é uma verdade indubitável para quase todos nós que nos enquadramos na “norma”, uma vez que podemos afirmar que pertencemos a esta família, o nosso último nome é o tal, é uma certeza garantida (nem pensamos muito no assunto). Mas estas crianças pensam e muito neste tema, vivem ora ansiosas ora tristes com esta situação da não assumida pertença. O processo de vinculação, a representação cognitiva que temos da forma como os mais significativos (pais ou outras figuras de referência) nos trataram ao longo da nossa infância, fica totalmente comprometida de forma negativa e vai influenciar todas as experiências relacionais futuras. Uma criança de Centro de acolhimento tem, necessariamente, esta representação danificada, as figuras de vinculação primárias foram negligentes, mal tratantes e abandónicas, pelo que provocaram, no bebé, uma construção de uma vinculação insegura que é muito difícil de reparar.

O ser humano necessita de pertencer a algo como necessita de se alimentar e de respirar. Precisa de pertencer a uma família em primeiro lugar e depois, de pertencer a um grupo de amigos, a um namoro, a uma escola, a um trabalho. Esta necessidade de pertença é fundamental, pois precisa de sentir que é especial, no seu trabalho, na sua família em tudo em que está envolvido de corpo e alma. Deste modo é muito violento afetivamente não ser verdadeiramente e concretamente adotado pela nova família. O não ser é uma rejeição “mascarada” que estas crianças não precisam muito pelo contrário.
 A adoção ou é concretizada após minuciosa análise dos pais e das crianças ou então, penso que estas famílias de acolhimento ou as do fim-de-semana, para os meninos de lar, não são uma solução viável que respeite o seu interesse superior. Os encontros escassos, com famílias em alguns fim-de-semanas também, só irão aumentar a frustração e a certeza, de que não pertencem a nada. É urgente perceber que as famílias “mais ou menos” são nefastas para estas crianças! Porque não merecem elas o melhor que podem ter? Porque não merecem elas uma família por inteiro? São crianças como todas e precisam de ter o mesmo que outras que nasceram numa família que as teve por inteiro. Só assim faz sentido que estas meninas e estes meninos, do mundo, tenham acesso a boas experiências, depois das contrariedades do início da vida. A sociedade deve lhes isso e não podemos fazer, se não o nosso melhor, para lhes proporcionarmos o mínimo: que é ter uma identidade, que é pertencer.

Mafalda Leite Borges



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