terça-feira, 16 de abril de 2013




“ A insustentável leveza de uma pega azul…"

Era uma vez uma pega azul que num dia limpo e de sol escaldante, voava ali para os lados de Palmela! 

Tentada pela ilusão de uma autonomia temporária arriscou e afastou-se do seu bando barulhento. Tranquilamente, enquanto olhava a beleza de uma posição privilegiada, perdeu-se para norte do estuário. A última coisa de que se lembrava, era de um espelho enorme que reflectia o azul da sua cauda e asas, numa paleta de cores em que as nuvens e o céu a confundiram com o brilho de si própria.

E, pum!!!! Estatelou-se contra uma janela gigante, de uma família gigante, não em termos de tamanho mas, de tudo o que ela abarcava: o pai, a mãe, o avô, a avó, dois filhos e no resto da quinta, dois burros, duas cabras anãs, um porquinho, galinhas, 1 gato, 4 cães, um coelho.
Bom, aparentemente tinha caído no sítio certo!

Ainda atordoada com o impacto do choque, de patinhas para o ar, abriu os olhos e, assustada, viu sobre si uns olhos bem maiores que os seus, numa cabeça gigante e um sorriso de orelha a orelha que acompanhava um grito de excitação:

- mãeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!!! Olha um angry birds azul vivo!!!!

Era o António, a criança mais velha daquela família, 5 anos, que adorava desde muito pequenino todos jogos possíveis e impossíveis de serem jogados no iphone ou, ipad do pai. O Angry birds, inquestionavelmente, era o jogo preferido deste menino.

E vieram todos a correr. A mãe primeiro, claro e, com aquele jeito que só mãe tem, pegou na assustada pega azul, levantou-a com jeitinho, aconchegou-a na concha das suas mãos e levou-a para a sala onde toda a família podia ver mas, não tocar. E cuidou dela, como só mãe sabe cuidar. A pega azul, ainda num estado de paralisia total, não recomposta, desfeita pelo impacto mas, viva, continuava sem perceber o que lhe tinha acontecido. No entanto, aquele quente das mãos acalmava-a.

O António, seu fã, insistia: - Mãe, posso segurar ela, posso? Posso?
A mãe, devolvia-lhe: - António, o passarinho está tonto pela queda! Vamos ter que cuidar com muito jeitinho!
E o António, inundado de uma felicidade incontrolável, sem se conseguir conter, insistia:
- Só um diguinho (bocadinho) mamã, só um diguinho! E a mãe deixou…

Com o jeito de um menino de 5 anos feliz, o António, mostrava a toda a família o seu passarinho azul do jogo angry birds! E toda a família sorria e ria, pelo seu entusiasmo e fantasia contagiante. E correu para o avô. O avô, que vivia num mundo dele, solitário, em que o Alzheimer era a sua companhia e que só o António e o irmão de vez em quanto o conseguiam despertar, mas para o colo de quem ele corria sempre que podia, sorriu e sussurrou:
- Cuida dele! Com jeitinho! Ele precisa, como o avô!

E o António cuidou! Mas cuidou tão bem, mas tão bem e abraçou tanto o seu angry bird nas suas mãozinhas pequeninas para que ele não tivesse frio, que a pega azul, frágil como estava, não resistiu ao excesso de zelo do menino e acabou por morrer.
Ao notar que já não se mexia, o António correu para a mãe e disse-lhe:- Mãe, ele não se mexe, porquê? A mãe, percebendo de imediato o que tinha acontecido mas sem saber muito bem o que lhe dizer, respondeu:
- António, como no teu jogo, ele não vai mexer-se mais! Morreu!
E o António insistia:
- Mamã, carrega no “restart”, no “restart” mamã, carrega! Vais ver, o passarinho volta!

Mas, a pega azul que nesse dia se afastou do seu bando, não voltou! E a mãe do António, não conseguiu explicar de forma contentora o que tinha acontecido ali!

Passaram-se os dias. Aparentemente, tudo tinha voltado ao normal após este incidente. Só algo, aos olhos desta mãe, parecia estar diferente. E mais atenta, percebeu que o António ultimamente passava pelo avô, olhava-o, tocava-o de forma leve e rápida mas não ia para o seu colo, nem o abraçava como antigamente.
E uma tarde, quando os meninos chegaram da escola e o irmão do António, o José, correu para o avô e como habitual deu-lhe um beijo, abraçou-o e foi lanchar, a mãe, foi ter com o António que já lanchava e perguntou-lhe:
- Porque não foste dar o teu abracinho ao avô?
E o menino respondeu:- Poque tava com muita fome! E baixou os olhos como se não quisesse que a mãe lhe visse a verdade reflectida no olhar!
A mãe insistiu:
- Mas o avô gosta tanto e precisa!
E o António, que até aí se tinha contido, lançou-se nos braços da mãe e disse-lhe a chorar:
- Não posso, mamã. Não posso abraçar o avô! Eu ainda não sei o que é morrer! E eu gosto tanto do avô, como gostei do angry birds, que se eu o abraçar com muita força como eu gosto, eu acho que ele pode desaparecer e tu não sabes fazer “restart” para ele voltar e eu vou ficar muito triste. O que é isto de morrer, mamã?

E a mãe, silenciou esta sua própria incapacidade de perceber a morte e, não soube o que responder ao seu filho!

O que responder a um filho perante questões em que a temática é a perda, a morte, mesmo que seja só, a de uma simples pega azul?

O Canto da Psicologia
Dr.ª Ana de Ornelas

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