quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sublimar – a arte de transformar...

 



 

“As palavras são asas que voam

Pássaros negros que não se demoram ao olhar

Escrevo porque o silêncio é uma habitação fria e descarnada

Ao abandono.

Solicitude de folhas em queda na árvore da manhã

Síntese de medo inquieto, de vento gotas.

No traçar do rosto alguma luz queima a pele condescendente.

Escrevo porque só assim sei gritar

E esse grito tem garras e gumes

Mãos que estrangulam, lábios que beijam. “

L. Rosado, Lisboa

 

Uma vez, ao caminhar pelo Chiado, cruzei-me com uma senhora que vendia os seus poemas a quem por ali passava. Folheei o dossier e escolhi este, pareceu-me ressonante do que pode ser o sofrimento do ser humano, em algum momento ou em determinados contextos relacionais, e imaginei que traduzia o que aquela senhora aparentava. Pareceu-me interessante e bem escrito, expressivo de uma experiência de sofrimento psicológico intenso, mas também da capacidade para o comunicar, de o pôr em palavras e ilustrar de uma forma que parece quase possível visitar tal experiência. E este movimento não constitui em si mesmo uma força transformadora? A solidão e o abandono sentidos não encontrarão alguma espécie de conforto quando traduzidos desta forma? Estes gritos, ao serem escritos, não ficarão de alguma forma mais contidos? Não será o suficiente para tratar essa dor, mas parece corresponder a um movimento salutar e construtivo, consiste no sublimar desta vivência que se entende tão difícil.
A sublimação é um mecanismo psicológico que consiste neste processo que enuncio, consiste em transformar impulsos e sentimentos, derivando-os para um novo objetivo e um novo objeto, socialmente valorizados.


A arte, nas suas várias formas e expressões, vive muito deste mecanismo onde as vivências internas e externas dos artistas encontram uma forma de representação que ao mesmo tempo que as tornam visíveis aos olhos dos outros também lhe dão uma outra vida, tornam-se uma outra coisa. Como podemos ver, por exemplo, no teatro, no cinema, na pintura, na escultura.


No caso da escrita, mesmo que só de si para si, ou para os seus significativos, existe um valor terapêutico imenso, poderia descrever a experiência de alguns pacientes como: "escrevo porque só assim me sei encontrar, escrevo porque só assim me consigo olhar e entender, escrevo porque só assim sei comunicar…"


Em termos psicológicos este tipo de mecanismo permite integrar na personalidade aspetos fraturantes de uma forma algo adaptativa e apaziguadora, elementos de alguma forma perturbadores tornam-se assim mais toleráveis.


Será correspondente à ideia de reunir as pedras que estão no caminho e construir com elas um castelo, como nos diz Pessoa. O que causa dificuldade e dor pode ser integrado e fazer parte da construção de algo uno, sólido e rico.



Drª Filipa Rosário - Alcochete e Lisboa

O Canto da Psicologia



 


Sem comentários:

Enviar um comentário