“As palavras são asas que voam
Pássaros negros que não se demoram ao olhar
Escrevo porque o silêncio é uma habitação fria e descarnada
Ao abandono.
Solicitude de folhas em queda na árvore da manhã
Síntese de medo inquieto, de vento gotas.
No traçar do rosto alguma luz queima a pele condescendente.
Escrevo porque só assim sei gritar
E esse grito tem garras e gumes
Mãos que estrangulam, lábios que beijam. “
L. Rosado, Lisboa
Uma vez, ao caminhar pelo Chiado,
cruzei-me com uma senhora que vendia os seus poemas a quem por ali passava.
Folheei o dossier e escolhi este, pareceu-me ressonante do que pode ser o
sofrimento do ser humano, em algum momento ou em determinados contextos
relacionais, e imaginei que traduzia o que aquela senhora aparentava. Pareceu-me
interessante e bem escrito, expressivo de uma experiência de sofrimento
psicológico intenso, mas também da capacidade para o comunicar, de o pôr em
palavras e ilustrar de uma forma que parece quase possível visitar tal
experiência. E este movimento não constitui em si mesmo uma força
transformadora? A solidão e o abandono sentidos não encontrarão alguma espécie
de conforto quando traduzidos desta forma? Estes gritos, ao serem escritos, não
ficarão de alguma forma mais contidos? Não será o suficiente para tratar essa
dor, mas parece corresponder a um movimento salutar e construtivo, consiste no
sublimar desta vivência que se entende tão difícil.
A sublimação é um mecanismo psicológico
que consiste neste processo que enuncio, consiste em transformar impulsos e
sentimentos, derivando-os para um novo objetivo e um novo objeto, socialmente
valorizados.
A arte, nas suas várias formas e
expressões, vive muito deste mecanismo onde as vivências internas e externas
dos artistas encontram uma forma de representação que ao mesmo tempo que as
tornam visíveis aos olhos dos outros também lhe dão uma outra vida, tornam-se
uma outra coisa. Como podemos ver, por exemplo, no teatro, no cinema, na
pintura, na escultura.
No caso da escrita, mesmo que só de
si para si, ou para os seus significativos, existe um valor terapêutico imenso,
poderia descrever a experiência de alguns pacientes como: "escrevo porque só
assim me sei encontrar, escrevo porque só assim me consigo olhar e entender, escrevo
porque só assim sei comunicar…"
Em termos psicológicos este tipo de mecanismo permite integrar na personalidade aspetos fraturantes de uma forma
algo adaptativa e apaziguadora, elementos de alguma forma perturbadores
tornam-se assim mais toleráveis.
Será correspondente à ideia de
reunir as pedras que estão no caminho e construir com elas um castelo, como nos
diz Pessoa. O que causa dificuldade e dor pode ser integrado e fazer parte da
construção de algo uno, sólido e rico.
Drª Filipa Rosário - Alcochete e Lisboa
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