O João não
tinha medo… rugia aos monstros debaixo da cama com a mesma fúria com que batia
com as portas lá de casa, aquando de um limite. Era exactamente a mesma forma
como gritava o “NÂO!” salpicando com perdigotos de raiva o rosto da irmã
mais velha.
O João não
tinha medo…tratava por “tu” o escuro, que era sempre bom aliado para escurecer
os disparates, e cumprimentava o dia que iluminava a sua força quando atirava a
cadeira ao chão à frente dos colegas e da professora.
O João não
tinha medo que o mundo fosse demasiado pequeno para todo o seu tamanho e
espaço, que enchia a casa e fazia encolher pais e avós porque…o João “tinha
uma personalidade forte”!
O João não
tinha medo…embora fugisse ao silêncio, até a dormir, e parece-se petrificado
aquando de um abraço, surgido do imprevisto cruzamento entre a ternura e o
desespero da monitora do ATL.
O João não
tinha medo…mas vivia apavorado com a “incontinência” do seu mundo interno, com
a falsa infinidade do seu eu e com a inconsistência dos seus imagos parentais.
Os medos
fazem parte integrante da construção interna e, consequentemente, de uma
relação com o mundo e os outros mais saudável e sustentável. Porque o mundo é
feito de pontes, sinais de STOP, vermelhos e verdes, gargalhadas e choros,
muros e caminhos…e se enquanto crescermos não internalizarmos em nós essas
mesmas pontes, vermelhos, muros e etc. como é que poderemos entender o mundo e
os que estão à nossa volta?
Se não
integrarmos um “não” como uma espera que dá a vez a um gesto que deverá anteceder
aquele desejo\impulso, como poderemos respeitar o STOP que dá a prioridade a
quem circula e se cruza à nossa frente?
O Dr. Eduardo
de Sá dizia - As famílias têm o direito a alimentar os medos das crianças -
claramente referindo-se aos medos saudáveis, não poderia estar mais de acordo.
Perder o medo no sentido mais invasivo e
extremo, tenderá a significar perder a noção de si e do outro, porque não só
coloca o sujeito numa procura incessante e desesperada de limites, como , o
coloca à mercê de um desconhecido sem fim que alimentará um self omnipotente.
E porque
também o nosso corpo tem o seu limite contentor último na pele, também a nossa
mente só poderá sobreviver sã com limites que vamos construindo, redefinindo e
avaliando ao longo da nossa existência. E entenda-se de forma muito clara que
os limites não advém dos “nãos” ditos enfurecidos e castradoramente evocados
nas relações entre pais e filhos. Os limites e regras advém mais eficazmente
dos “nãos” que se vêem, sentem e experimentam implicitamente no nosso dia-a-dia, e confirmam
e consolidam-se ainda mais a cada “sim” de um abraço, olhar e mimo que integram
as interacções de miúdos e graúdos.
Uma criança
sem limites será um adulto ao estilo de uma bola saltitona lançada de um
primeiro andar para o meio de uma multidão numa loja de loiças, no fundo a
aguardar ser travada e contida para minimizar o caos.
Tal como
dizia o Dr. Eduardo de Sá a coragem não passará por não termos medos, mas
por podermos não fugir deles, crescendo quando ousamos conhecê-los.
O João não
tinha medo…mas vivia aterrorizado com a sua imensidão interna, na qual
realidade e fantasia tantas vezes se confundiam e abraçavam. O João não tinha
medo…e não tinha uma “personalidade forte”. Não existem personalidades fortes ou
fracas, existem personalidades todas elas com as suas características mais
frágeis e mais robustas. O João não tinha medo…e tinha todo um tempo para construir
a sua personalidade com pontes, muros, gargalhadas, risos e choros, com medos e
conquistas…tal como uma personalidade deve ser!
Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia
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