O senhor Cunha
começava por Luiz (com zê e sem acento, a todo o sabor de outros séculos) e foi
um homem irrepetível. Existia das quatro da tarde até quando calhasse, tinha cabelo a refulgir de brilhantina e era
“dandy” até à ponta dos sapatos. Dizia que tinha sido casado sete ou oito vezes
– ele também tinha dificuldade em lembrar-se... -, era pai de gente alta da
representação e teve morada fixa no Parque Mayer, entre revistas e coristas.
Bebeu pouco, fumou muito, viveu mais. A boémia de Lisboa chegou a ter o seu
nome tatuado no corpo e Luiz só não entrou em palco num arroubo artístico
porque as mulheres e o Sporting lhe sorviam o tempo. Nunca trabalhou e isso
deu-lhe algum trabalho. Era falarmos de um ator e logo vinha uma história da
maior intimidade do sr. Cunha com o ilustre que figurara na questão. Era
perguntar sobre uma parte do mundo e o sr. Cunha soltava qualquer coisa que o
tornava parente próximo da paragem indagada.
Trazia consigo uma foto da Ivone
Silva na carteira. Acho que a trocou pela irmã Linda Silva depois de a segunda
ficar a tomar conta do “Luizinho” a pedido da primeira, que fora com uma
companhia de teatro para o Brasil. Se calhar foi ao contrário, mas estou seguro
que o sr. Cunha não ficou a apanhar frio e rendeu uma mana por outra no seu
vale rotativo de lençóis. Não se gabava das conquistas. Contava-as e gozava com
isto que é por aqui andar. Nunca se zangou com nenhuma das suas incontáveis
mulheres e isso também é, em si, de artista.
O sr. Cunha encheu
de histórias a minha casa, o meu mundo de menino, que mais não tinha do que 160
quilómetros (o caminho de Lisboa à terra). Quando se batia a porta a desoras lá
em casa, eu ardia de esperança para que fosse o sr. Cunha a salvar-me da noite.
Lembro-me de lhe
ser apresentado. Estava ele sentado num banco rotativo de balcão. Metido num
fato muito acima da baiúca onde nos calhámos conhecer e com lenço na lapela, à
laia de fadista esperando vez. Piscou-me o olho e antes de qualquer espécie de
olá, rodopiou na direção da minha pequenez, abriu a camisa de seda - como o
Clark Kent a despachar-se para ser Super-Homem – e estufou-me o peito coberto
por uma interior leonina camisola listada a verde e branco. “Ó filho, um homem
só é grande quando se descasca”, foi a primeira coisa que ele me disse para
logo depois se abotoar e pensar no que dizer a seguir para provocar os amigos
encarnados. Varámos muitos anos juntos depois a falar de futebol, das suas
aventuras fora de campo com os Cinco Violinos, com o seu amigo-irmão Eusébio,
com atores e atrizes, tudo a contornos indizíveis, mas falámos muito mais sobre
crescer, sobre o perigo inescapável que é tentar perceber uma mulher e da nobre
arte de não trabalhar, a qual miseravelmente nunca aprendi.
Luiz Cunha foi um homem
irrepetível, tenho de o repetir, e estou aqui a escrever a arder de esperança
que seja ele na sua indumentária “dandy” a bater-me à porta daqui nada.
Preciso de uma
história para me salvar desta noite.
FILIPE ALEXANDRE
DIAS
Jornalista
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