terça-feira, 10 de outubro de 2017

Um homem só é grande quando se descasca...





O senhor Cunha começava por Luiz (com zê e sem acento, a todo o sabor de outros séculos) e foi um homem irrepetível. Existia das quatro da tarde até quando calhasse,  tinha cabelo a refulgir de brilhantina e era “dandy” até à ponta dos sapatos. Dizia que tinha sido casado sete ou oito vezes – ele também tinha dificuldade em lembrar-se... -, era pai de gente alta da representação e teve morada fixa no Parque Mayer, entre revistas e coristas. Bebeu pouco, fumou muito, viveu mais. A boémia de Lisboa chegou a ter o seu nome tatuado no corpo e Luiz só não entrou em palco num arroubo artístico porque as mulheres e o Sporting lhe sorviam o tempo. Nunca trabalhou e isso deu-lhe algum trabalho. Era falarmos de um ator e logo vinha uma história da maior intimidade do sr. Cunha com o ilustre que figurara na questão. Era perguntar sobre uma parte do mundo e o sr. Cunha soltava qualquer coisa que o tornava parente próximo da paragem indagada. 

Trazia consigo uma foto da Ivone Silva na carteira. Acho que a trocou pela irmã Linda Silva depois de a segunda ficar a tomar conta do “Luizinho” a pedido da primeira, que fora com uma companhia de teatro para o Brasil. Se calhar foi ao contrário, mas estou seguro que o sr. Cunha não ficou a apanhar frio e rendeu uma mana por outra no seu vale rotativo de lençóis. Não se gabava das conquistas. Contava-as e gozava com isto que é por aqui andar. Nunca se zangou com nenhuma das suas incontáveis mulheres e isso também é, em si, de artista.

O sr. Cunha encheu de histórias a minha casa, o meu mundo de menino, que mais não tinha do que 160 quilómetros (o caminho de Lisboa à terra). Quando se batia a porta a desoras lá em casa, eu ardia de esperança para que fosse o sr. Cunha a salvar-me da noite.

Lembro-me de lhe ser apresentado. Estava ele sentado num banco rotativo de balcão. Metido num fato muito acima da baiúca onde nos calhámos conhecer e com lenço na lapela, à laia de fadista esperando vez. Piscou-me o olho e antes de qualquer espécie de olá, rodopiou na direção da minha pequenez, abriu a camisa de seda - como o Clark Kent a despachar-se para ser Super-Homem – e estufou-me o peito coberto por uma interior leonina camisola listada a verde e branco. “Ó filho, um homem só é grande quando se descasca”, foi a primeira coisa que ele me disse para logo depois se abotoar e pensar no que dizer a seguir para provocar os amigos encarnados. Varámos muitos anos juntos depois a falar de futebol, das suas aventuras fora de campo com os Cinco Violinos, com o seu amigo-irmão Eusébio, com atores e atrizes, tudo a contornos indizíveis, mas falámos muito mais sobre crescer, sobre o perigo inescapável que é tentar perceber uma mulher e da nobre arte de não trabalhar, a qual miseravelmente nunca aprendi.

Luiz Cunha foi um homem irrepetível, tenho de o repetir, e estou aqui a escrever a arder de esperança que seja ele na sua indumentária “dandy” a bater-me à porta daqui nada.
Preciso de uma história para me salvar desta noite.


FILIPE ALEXANDRE DIAS 

Jornalista



Sem comentários:

Enviar um comentário