terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Antes de a tua vida morrer...







Antes de a tua vida morrer

Antes, muito antes de a tua vida morrer, ajoelhavamo-nos no frescor da tijoleira do quintal e dizíamos um ao outro tudo o que queríamos ser sem saber o que era isso de amanhã. Amanhãs não são coisas de menino. Tu pegavas numa carica amolgada, imaginavas universos dentro dela e juntos partiam pelo meio-fio do passeio em aventuras. Só tu e a carica. Afastavas-te e eras tão mais feliz que eu. Eu, que tinha tanto brinquedo por onde escolher, mas deixava cada castelo por construir.

Bem antes de a tua vida morrer, vi-te com um caderno afivelado à cintura, sem aflições pelo que aí vinha e, a teu lado, galopei vales como se montanhas fossem, porque a pequenez do nosso mundo ainda nos parecia a imensidão do tudo e tínhamos o nosso Kilimanjaro por diante até lhe vencermos o cume em triunfo. Foi numa tarde torrada a prometer verão e nós, debaixo dela, sentimo-nos os senhores de todas as estações.

Antes de a tua vida morrer, tinhas arrebatamentos, aqueles arroubos, e desenhavas heróis, vilões e leviatãs que amarrotavas em insatisfações para eu desamarrotar e guardar na terceira gaveta do armário de contraplacado branco com debrum castanho que me vigiava as noites de asma. Ainda lá estão. Ainda lá estás. 

Um pouco antes de a tua vida morrer, movias-te a lilás num carro feio como o pesadelo de alguém, mas rias de quem zombava e seguias caminho.

Muito pouco antes de a tua vida morrer, despertaste-me de um torpor ao gritares o meu nome do outro lado de um largo algesino e levaste-me para casa na mesma viagem que depois não terminaste. Lembro que rimos e tudo era fácil.

Horas antes de a tua vida morrer, houve um abraço entre nós. 

Quando soube que a tua vida morreu, era Fevereiro e tudo negrejou.

A tua vida morreu a viver. Às vezes, quando andas em mim, sinto que vivo a minha vida a morrer.


Filipe Alexandre Dias
Jornalista



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