quinta-feira, 14 de junho de 2018

Crónicas do tapete: o jogo da memória







- Então, não te sentas no tapete? Já sabes que gosto que te sentes aqui comigo!

Se falasse, este tapete tinha tantas histórias por contar! Com os nossos pacientes mais novos, este simples amontoado de fibras sintéticas serve de cenário a mil e uma viagens ao universo infantil, desde fantasias coloridas e alegres a mergulhos ao que de mais negro pode haver dentro de nós. Quando estamos perante crianças, reina na sala o registo de “faz-de-conta”. É frequente que estas resistam a partilhar as mágoas que as acompanham, seja porque ainda não sabem como o hão de fazer, ou porque lhes é difícil fazê-lo abertamente. É absolutamente essencial calibrarmos os olhos, os ouvidos e o coração até onde os mais pequenos estão, sendo evidente que um diálogo refletido e ponderado não entra na equação. Vamos então brincar!

Neste dia, o cenário era este: o jogo da memória. Cartões virados ao contrário, dispostos aleatoriamente pelo tapete, e sou eu quem tem de encontrar as duas imagens que compõem o par. Vou acertando umas, falhando outras, mas o foco mantém-se nele, que me quer ajudar e me vai indicando alguns cartões. Metaforicamente podemos ir além dos cartões: ele quer-me ajudar a encontrar nele o que não se vê, o que está escondido sob uma máscara de convencionalidade (ou não fosse o reverso dos cartões igual em todos). É a minha capacidade de olhar o que não está lá, o que está mascarado, a minha persistência face às dificuldades e aos avanços e recuos, que está a ser testada num dos jogos mais simples que existem. Ele quer saber se eu o quero verdadeiramente ver, além dos sorrisos fingidos, das gargalhadas vazias, da falsa normalidade, e se estou disposta a não desistir, mesmo quando ele me indica os cartões errados de propósito, como quem simultaneamente deseja e teme ser, enfim, olhado com todos os tons de negro que o acompanham.

- Tens uma bela memória! – diz ele.
- Sim, talvez tenha. Sabes, lembro-me de muitas coisas, como de algumas das nossas brincadeiras ao longo de todo este tempo que já passámos juntos. Às vezes lembro-me até de algumas coisas das quais não falamos porque tu não gostas assim muito de falar! Como quando digo que algumas brincadeiras quase me parecem reais, como se entre nós fossem um jogo mas lá fora uma realidade talvez um pouquinho assustadora…
Sentado no tapete, fica em silêncio a arrumar os cartões, muito lentamente. Não olha para mim, parece absorto nos seus pensamentos. Ao fim de alguns segundos pousa os cartões.
- Ajudas-me?
- A arrumar os cartões? Ou com estas coisas assustadoras que te ficam na ponta da língua mas das quais não falas, como se me quisesses contar mas depois voltasses atrás? Bem… Seja com o que for, estou aqui para ti. Sabes disso, não sabes?
Mantém o olhar baixo durante mais alguns segundos, até que me olha, sorri com ar triste e estende os cartões na minha direção.

A cada semana que passa conseguimos consolidar um pouco mais a nossa relação, sendo essencial que ele se sinta seguro, aceite, compreendido. Passo a passo, acredito que havemos de lá chegar. O tapete, esse, estará sempre pronto para mais uma viagem.


Drª Carolina Franco




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