quinta-feira, 7 de junho de 2018

Contratos familiares implícitos – “cláusulas relacionais” patogénicas.








Uma paciente com o sonho de ser profissional de música pergunta-me certa vez:

- “Doutor, acha que eu tenho capacidades psicológicas para ir estudar Direito ou Arquitetura?

Respondo-lhe:
-“Lúcia, às vezes questiono-me que implicações pode sentir que pode haver na sua vida se puser em prática todas as suas capacidades na área da Música, a área que me diz com frequência sentir que é a sua vida! Será que a sua verdadeira pergunta é se eu acho que tem capacidades psicológicas para lidar com as consequências que poderão haver na sua vida familiar se decidir dar um lugar privilegiado à Música?”

Vários são os panos de fundo que remetem para as relações humanas, para aquilo que une, desune, para o que agrada e desagrada, para o que dói e para o que dá prazer, para o que aprisiona e também para o que liberta.
A família é o grupo humano matriz do individuo e faz-se constituir, como em qualquer grupo humano, por lógicas conscientes e inconscientes de funcionamento que visam determinada organização e coesão. Afamília é – ou deverá ser - o ponto de partida para a construção de um passaporte identitário que possibilite a cada individuo o embarque noutras viagens, viagens de expansão e diferenciação, de enriquecimento identitário para além daquilo que foi “doado” na e pela família.
Às vezes, contudo, devido a componentes de funcionamento familiar que não são (tão) conscientes- uma espécie de “genética psicológica familiar” que muitas vezes passa de geração em geração, mandatos transgeracionais - é comum surgir na clínica psicológica indivíduos com lógicas individuais desarmónicas, descontínuas, despersonalizadas e desvitalizadas que se repercutem constantemente em momentos de sofrimento psicológico que levam ao bloqueio do estar bem. Estas mesmas lógicas fazem-se por isso acompanhar muitas vezes de sintomatologia com múltiplos fenótipos, nomeadamente sintomatologia depressiva.
Na viagem da psicoterapia, entre psicólogo e paciente, uma viagem investigativa mas também de expansão, transformativa e reparadora, muitas vezes deparamo-nos com “lugares” onde, implicitamente, o sujeito “assinou”, porque também, em nome de uma suposta homeostasia familiar lhe foi dado a assinar, um “contrato” cujas “cláusulas relacionais implícitas” remeteram para a importância de ficar perto (demais), para não se ausentar, para cumprir o esperado, para ocupar o lugar de um outro elemento que possa ter estado de forma insuficientemente.
 Surgem na clínica psicológica muitas histórias de” lugares” que foram ocupados mas que são muitos desconfortáveis para o próprio e em nada potenciadores do seu crescimento, da sua autonomia, da sua liberdade. São uma espécie de “lugares-prisão” onde é importante o sujeito ganhar consciência e ir ficando gradualmente munido de ferramentas narcísicas, de valor próprio percecionado, para se desacorrentar sem culpa.  
Há realmente muitos filhos e filhas que ocuparam o lugar de um pai ou de uma mãe quando estes, por diversos motivos, não souberam ocupar tal lugar. Há filhos e filhas que sentem que têm de cumprir com as expectativas implicitamente e muitas vezes explicitamente neles depositados. Percursos académicos e profissionais escolhidos em nome individual transportam muitas vezes um mandato familiar que é sentido como imprescindível para não beliscar o narcisismo da escultura familiar. Há tantas Lúcias que querem ser músicas mas que sentem que poderão estar a trair o pacto familiar. Optam muitas vezes depois pela arquitetura ou pelo direito. Foi-lhes arquitetado um caminho “sem direitos”. Há tantas Lúcias que querem trabalhar fora da empresa da família mas sentem tal querer como proibido, tantas Lúcias que querem permitir-se ser isto ou aquilo, gostar disto ou daquilo, deste ou desta, há tantas Lúcias que quererem ser, tantas Lúcias que sentem que ao viajar na vida abandonam quem lhes deu vida.
Às vezes parece haver um interdito na concretização de aspirações do próprio por, de certa forma, este sentir que tal concretização poderá ser sentida como uma traição, um ataque a quem se ama. Há uma espécie de sentimento generalizado de não gratidão, uma espécie de hemorragia interna que bloqueia a expansão do próprio. Teme-se a perda do lugar, teme-se a perda do amor de um sujeito relacional que faz-se (querer) amar pelo cumprimento de determinadas cláusulas relacionais patogénicas que fazem adoecer. Fica-se numa espécie de um lugar tanto faz, um lugar onde tanto faz quem se é e onde tanto se faz e se é sem gratificação. Fica-se num lugar condicional à espera da incondicionalidade do amor.
A família nunca deveria ser um lugar de aprisionamento do desenvolvimento do indivíduo. Muitas vezes é sem saber. É como se houvesse uma espécie de ferida familiar que se traduz em determinados movimentos não conscientes dos seus elementos e onde algumas vezes a suposta felicidade de alguém depende da infelicidade de outrem.
A viagem psicoterapêutica, individual ou familiar, tem um papel imprescindível em tornar estes lugares mais conscientes. Ao ritmo do sujeito, há uma condução acompanhada a estes lugares e onde se estimula a construção de um novo lugar – o lugar do próprio dentro de si. Estimula-se a procura de um lugar onde o próprio se possa firmar com segurança, desta vez com a sua assinatura, com a sua marca, a sua identidade.

André Viegas
Psicólogo Clínico
Canto da Psicologia







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