“ Narciso era um rapaz plenamente
dotado de beleza. Seus pais eram o deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Dias
antes de seu nascimento, seus pais resolveram consultar o oráculo Tirésias para
saber qual seria o destino do menino. E a revelação do oráculo foi que ele
teria uma longa vida, desde que nunca visse seu próprio rosto.
Narciso
cresceu, e se transformou um jovem bonito, que despertava amor, mas era muito
orgulhoso e tinha uma arrogância que ninguém conseguia quebrar. Para dar uma
lição ao rapaz frívolo, a deusa Némesis, o condenou a apaixonar-se pelo seu
próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso
deitou-se no banco do rio e definhou, olhando-se na água e se embelezando”.
Vivemos uma era de obsessão com a perfeição do eu inatingível,
onde não há espaço nem para a falha, nem para o insucesso, temos de ser mais e
melhores na procura de integrarmos um ideal do ego. Quando uma figura pública
entra em septicemia, com risco de perder a vida, derivado à injeção da hormona
Testosterona, faz-nos questionar qual o preço a pagar para atingirmos objetivos
rígidos que retiram toda a genuinidade ao ser humano.
O mito do Narciso retrata, precisamente, essa postura que ao
estar ensimesmado sobre si próprio, pode, subitamente, perde-se de si mesmo. De
tanto olhar para si, afundou-se na sua própria solidão.
O desenvolvimento do narcisismo primário dá-se,
sensivelmente, nos primeiros anos de vida, tempo em que os pais reconhecem o filho e nesse exercício de interação, vão projetando as suas perceções e crenças, sobre bebé. Os pais são como um espelho onde o bebé se pode ver
refletido e, assim, construir a sua incipiente identidade. A qualidade desta
relação precoce irá influenciar a base de amor-próprio que o sujeito irá
carregar para o resto da vida. Contudo, se esta base narcísica não for bem
nutrida, isto é, se o bebé não tiver sido validado, apreciado, amado, irá viver
com um vazio e uma falha narcísica básica que terá consequências no sentimento
que tem por si próprio já em adulto, assim como nas defesas que irá assumir no
seu funcionamento psíquico.
Narciso, era assim um jovem falsamente embevecido com a sua
própria imagem mas, fechado sobre ela, esqueceu-se do mundo ao seu redor pelo
que ficou pobre e despido da sua identidade. Uma vez que é na relação, com o
outro, que nós contruímos a nossa identidade nos primeiros tempos de vida para que, posteriormente, já na fase adulta, possamos estar seguros da qualidade do
nosso amor interno.
Figuras parentais narcísicas irão projetar na criança ideias
ambivalentes de que, por um lado desejam que o filho cumpra com todos os seus
desejos omnipotentes de sucesso, por outro, acreditam, secretamente, que o mesmo
não os conseguirá alcançar; ignorando assim as necessidades afetivas básicas do
seu filho, em desenvolver uma identidade própria e genuína. Neste processo, o
sujeito vai desenvolver feridas narcísicas primárias de difícil tratamento psicoterapêutico.

Assim, cabe-nos a reflexão: - Será que já não há tempo para
amar? Para estimular uma relação intersubjetiva que nasce no berço? As relações
com os pais não são íntimas, subjectivas? Temos de arranjar tempo, para amar,
para brincar, para viver no presente e desfrutar de estarmos com quem mais
amamos, sem julgamentos e criticas.
A alienação é inevitável, quando se procura atingir a imagem
que pensamos que os outros querem de nós, leva à diluição identitária nos
outros, temos de ter a figura perfeita, o pensamento cópia. Assim não estamos a
abraçar a alteridade, a sair do narcisismo primário que apenas concebe o
espelho, o igual. Só na aceitação do diferente é que podemos crescer, complementar
pensamentos, ideias, mudar as perspetivas, ver em outros ângulos. Aceitar que
muitas vezes erramos, que a ciência e a evolução na vida depende de quebrarmos
com pensamentos antigos e deixarmos emergir o novo e o diferente.
Esta posição é uma forma de estar na vida que acaba por ser
transversal a tudo, - posso não pensar igual ao outro, mas aceito a sua diferença
e considero que poderá complementar as minhas ideias, neste exercício do
pensamento, vou criar análises da realidade únicas, repletas significado
partilhado e entendido-. A partir deste posicionamento podemos co-construir e evoluir sem nos esquecermos dos afetos bons, do amor.
Congruência é fundamental na vida, assim como, a aceitação
da diferença. A diferença, a intersubjetividade de cada um de nós, é o que
temos de mais precioso. Sermos únicos e especiais nas nossas idiossincrasias. A
alteridade é a aceitação de que não somos cópias de ninguém, mesmo com a
pressão eventual, devemos manter a nossa genuinidade e deixar emergir,
tão-somente, o nosso true self, consciente e disponível para receber e dar o
melhor nesta vida, em todas as nossas relações.
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