quinta-feira, 20 de maio de 2021

Avó, quanto tempo o tempo tem?

 



 

E por vezes as noites duram meses

E por vezes os meses oceanos

E por vezes os braços que apertamos

nunca mais são os mesmos    E por vezes

 

encontramos de nós em poucos meses

o que a noite nos fez em muitos anos

E por vezes fingimos que lembramos

E por vezes lembramos que por vezes

 

ao tomarmos o gosto aos oceanos

só o sarro das noites      não dos meses

lá no fundo dos copos encontramos

 

E por vezes sorrimos ou choramos

E por vezes por vezes ah por vezes

num segundo se evolam tantos anos

 

David Mourão-Ferreira, in 'Matura Idade'

 

 

Recordo-me com muita saudade de questionar a minha avó sobre a passagem do tempo. Intrigava-me a sua resposta – “quando tiveres 18 anos vais sentir que o tempo passa de uma outra maneira”. Penso que sem se aperceber a minha avó falava de dois tempos, um tempo da infância, onde “nem se dá pelo tempo a passar”, e um tempo adulto, onde “parece que o tempo nos foge das mãos”. Acho que com a sua morte, ainda antes dos meus 18 anos, consegui perceber um pouco melhor o que me queria dizer. Com a sua linguagem própria, e doce, como só os avós conseguem ter (pelo menos assim era a minha) penso ter tido um primeiro contato com o que é a memória das coisas, e a sua função no tempo atual (o inconsciente e o consciente).  Os 18 anos ou a “Matura Idade” leva-nos supostamente para uma outra visão do aqui e do agora, onde o tempo cronológico e o tempo interno nem sempre andam a par e passo. Na infância onde parece haver um relógio parado (quem não se lembra das longas férias grandes?), há também um lugar para a imaginação e criatividade. Em Alice no País das maravilhas, encontramos de uma forma simbólica o que pode ser a ingenuidade da mente infantil e como esta compreende as regras e obrigações sociais de um mundo adulto, representada pela Alice (eternamente criança, porque paralisada no tempo). Por outro lado, a personagem do Coelho Branco, sempre apressado, transporta-nos para o universo das responsabilidades adultas, onde parece nunca “haver tempo para nada”. Curiosamente, esta personagem “rápida como um coelho”, está sempre a correr para não chegar atrasado.

 


A passagem do tempo acaba por ser invariavelmente um dos temas presentes dentro do espaço psicoterapêutico. Digamos que a passagem do tempo, ou a vivência de uma continuidade e a experiência de vida (recordações) são ferramentas essenciais ao trabalho a dois desenvolvido entre paciente e terapeuta, pois o passado está presente na nossa vida atual. Questões como a duração de uma sessão de terapia e da própria terapia, fazem-me reativar a questão “quanto tempo o tempo tem”, e de uma forma mais profunda ainda, do significado do tempo (e lugar) e da permanência das relações dentro de nós. A tolerância à espera – quanto tempo vai durar a terapia? Como sei que o que aqui estamos a fazer vai ficar dentro de mim? – é tanto mais possível quanto a relação se revela de confiança e segura, e também plena de intimidade (mental). De certa forma, penso que no início de uma psicoterapia haverá quase sempre a dúvida de uma “criança”, no sentido da existência de um tempo que parece não passar, ou que parece andar muito devagar. No fim de contas, o processo de transformação interna passa também por aí, pela existência de um tempo e lugar, onde de uma forma simbólica se possa parar o tempo e fazer as ligações necessárias entre o relógio mental e o cronológico. Estar ligado ao presente e ao futuro, não significa perder de vista o tempo passado, mas possivelmente “acertar as horas” e ter um tempo e disponibilidade mental para estar consigo e com um outro de uma forma verdadeira e genuína. E assim, fazendo jus às palavras de Fernando Pessoa “Eu era feliz? Não sei, fui-o outrora agora”.


Drª Ana Cordeiro - Braga

O Canto da Psicologia


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