E por vezes as noites duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes
ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos
E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
num segundo se evolam tantos anos
David Mourão-Ferreira, in 'Matura Idade'
Recordo-me
com muita saudade de questionar a minha avó sobre a passagem do tempo.
Intrigava-me a sua resposta – “quando tiveres 18 anos vais sentir que o tempo
passa de uma outra maneira”. Penso que sem se aperceber a minha avó falava de
dois tempos, um tempo da infância, onde “nem se dá pelo tempo a passar”, e um
tempo adulto, onde “parece que o tempo nos foge das mãos”. Acho que com a sua
morte, ainda antes dos meus 18 anos, consegui perceber um pouco melhor o que me
queria dizer. Com a sua linguagem própria, e doce, como só os avós conseguem
ter (pelo menos assim era a minha) penso ter tido um primeiro contato com o que
é a memória das coisas, e a sua função no tempo atual (o inconsciente e
o consciente). Os 18 anos ou a
“Matura Idade” leva-nos supostamente para uma outra visão do aqui e do agora, onde
o tempo cronológico e o tempo interno nem sempre andam a par e passo. Na
infância onde parece haver um relógio parado (quem não se lembra das longas
férias grandes?), há também um lugar para a imaginação e criatividade. Em Alice
no País das maravilhas, encontramos de uma forma simbólica o que pode ser a
ingenuidade da mente infantil e como esta compreende as regras e obrigações
sociais de um mundo adulto, representada pela Alice (eternamente criança,
porque paralisada no tempo). Por outro lado, a personagem do Coelho Branco,
sempre apressado, transporta-nos para o universo das responsabilidades adultas,
onde parece nunca “haver tempo para nada”. Curiosamente, esta personagem
“rápida como um coelho”, está sempre a correr para não chegar atrasado.
A
passagem do tempo acaba por ser invariavelmente um dos temas presentes dentro
do espaço psicoterapêutico. Digamos que a passagem do tempo, ou a
vivência de uma continuidade e a experiência de vida (recordações) são
ferramentas essenciais ao trabalho a dois desenvolvido entre paciente e
terapeuta, pois o passado está presente na nossa vida atual. Questões como a
duração de uma sessão de terapia e da própria terapia, fazem-me reativar a
questão “quanto tempo o tempo tem”, e de uma forma mais profunda ainda, do
significado do tempo (e lugar) e da permanência das relações dentro de nós. A
tolerância à espera – quanto tempo vai durar a terapia? Como sei que o que
aqui estamos a fazer vai ficar dentro de mim? – é tanto mais possível
quanto a relação se revela de confiança e segura, e também plena de intimidade
(mental). De certa forma, penso que no início de uma psicoterapia haverá
quase sempre a dúvida de uma “criança”, no sentido da existência de um tempo
que parece não passar, ou que parece andar muito devagar. No fim de contas, o
processo de transformação interna passa também por aí, pela existência
de um tempo e lugar, onde de uma forma simbólica se possa parar o tempo
e fazer as ligações necessárias entre o relógio mental e o cronológico. Estar
ligado ao presente e ao futuro, não significa perder de vista o tempo passado,
mas possivelmente “acertar as horas” e ter um tempo e disponibilidade mental
para estar consigo e com um outro de uma forma verdadeira e genuína. E assim,
fazendo jus às palavras de Fernando Pessoa “Eu era feliz? Não sei, fui-o
outrora agora”.
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