quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Um silêncio ensurdecedor...








Embora o conceito de silêncio se refira à ausência total de som (audível, pelo menos), a “coisa-silêncio” sobre a qual nos propomos sinteticamente pensar, diz respeito à ausência de comunicação verbal no processo comunicacional, este assim bem circunscrito e entendido.
Ora, se a sabedoria popular alude a “silêncios que valem mais do que mil palavras”, o silêncio poderá ser, em tese e no limite, não a ausência de sentido, mas as múltiplas possibilidades do mesmo.
Desde sempre o silêncio foi impregnado por uma nuance de negativismo (Matos, 2001; D’Incão, 2007) e associado a um suposto estatuto proibitivo que apresentaria. Como não é visível, observável, o silêncio reduz-se, num primeiro olhar, à falta da palavra, à falha da linguagem. Pensa-se que o silêncio esconde algo e que se configura, desde logo, como um segredo por revelar. Na verdade, o silêncio contém a multiplicidade do discurso, do que pode vir a ser, do que pode ser dito; e pode ser tido tudo a partir do silêncio. Segundo Tfouni (2008) o silêncio não fala, o silêncio é.  
Sabemos, todavia, que nem todos os sujeitos lidam bem com o silêncio; alguns não o suportam mesmo. O silêncio pode causar ansiedade e ser sentido como desconfortável (Hill et al., 2003; Sabbadini, 2004), pois remexe o interno e o latente e, no limite, desarma o sujeito.
Em psicoterapia e no setting psicoterapêutico, os silêncios (de terapeuta e paciente, note-se) podem ser de vários tipos, géneses e propósitos, motivados consciente e inconscientemente (Arlow, 1961; Green, 2004) e são enquadráveis e interpretáveis em função do momento específico em que se encontra o processo terapêutico (Arlow, 1961; Leal, 2004). Enfim, o silêncio é também comunicação (Janet, 1991; Matos, 2001). Mais ainda, o silêncio é um dos indicadores que permitem estabelecer os laços e a compreensão entre os diversos significados e significantes imbuídos no processo transfero-contratransferencial (terapêutico, entenda-se); e é, também por isso, espaço relacional que potencia e norteia o trabalho do terapeuta. Posto isto, a especificidade e a função do silêncio variam, de igual modo, de acordo com esses laços estabelecidos a priori. Matos (2001) refere que o silêncio pode manifestar, por um lado, investimento amoroso, mas também uma ruptura agressiva; i.e., tanto pode potenciar intervenções ricas e dinamizadores da psicodinâmica (evolução), como pode levar a disrupções, subsidiárias da psicoestática (estagnação e/ou involução). É, por conseguinte, um aspecto multifacetado e que determina e é determinado, sobejamente, pela relação já estabelecida e a estabelecer entre terapeuta e paciente. Em suma: barómetro e futurómetro (passe o neologismo) do estado e devir da relação terapêutica e do expectável horizonte de progresso do processo terapêutico.


Silêncio contentor vs silêncio frustrante.
Bion (in Green, 2004) afirma que o silêncio se distingue entre o pertencente ao vazio e o usado como estratégia para calar (itálicos nossos), mas que ambos devem servir como ponto de origem para a relação terapêutica e a partir da qual se deve iniciar um intenso trabalho de escuta silenciosa. Green (2004) refere que o silêncio do terapeuta funciona como um catalisador invisível, a partir do qual o paciente compreenderia sozinho o significado do que fora verbalizado. D’Incão (2007) refere que o silêncio do terapeuta transporta o paciente, para um espaço onde é possível efectuar-se a transferência e, embora dependa da subjectividade de ambos os envolvidos, carece especialmente de uma dose substancial de tranquilidade interna, por parte do terapeuta. Ademais, o silêncio pode ser introduzido intencionalmente na terapia, mas também pode surgir de forma inesperada.
Contudo, intencional ou não, o silêncio pode também revelar-se, por vezes, como frustração para o paciente e tornar-se, consequentemente, improdutivo para a relação terapêutica e processo terapêutico, porquanto o sujeito compreende como insuficiente aquilo que é dito pelo terapeuta. Não obstante, se tivermos em conta vários estudos empíricos das áreas de Cognição e Memória, sabemos que quanto mais se fala, mais se esquece. Neste sentido, a introdução do silêncio em determinado momento de uma sessão, pode permitir que o paciente “pare” e tenha espaço e tempo para reflectir.
Para Matos (2001), defensivo ou frustrante, o silêncio realça o discurso. O autor enfatiza que são os seus toques e as suas intervenções que modulam a verbalização (ou falta dela) do paciente e lhe garantem a sua individualidade. Em rigor, o silêncio não será, portanto, vazio, mas sim um silêncio preenchido de conteúdos, à espera do seu tempo para eclodirem. O silêncio será, então, rasgado pelo ruído, ruído este que é revelador e potenciador do processo terapêutico.
Não dizer nada nunca será o mesmo de não ter nada para dizer. Estar em silêncio é frequentemente conotado como negativo, mas nem sempre o falar é, necessariamente, positivo. Convoca-se o silêncio e depois fala-se, partilha-se, vive-se, fantasia-se. A palavra reveste-se de significado(s) e torna os silêncios interactivos, enriquecedores. O silêncio regula as verbalizações, as interacções, a nós próprios e aquilo que pensamos, que somos e quem somos. As interpretações que daí advêm permitem estabelecer a lógica e compreender o conteúdo interno de cada um de nós. De resto, também os fantasmas individuais e colectivos pertencem ao universo do silêncio.

“Aqui o silêncio também fala, a quem o escutar.”

Marc de Smedt, in Elogio do Silêncio (2006, p.143).




Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia



quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Lição de ginástica Cueca...






No livramento de um debruçar para Carcavelos, não tínhamos horas. Ou melhor, as horas nós é que as fazíamos e o velho e eu éramos um relógio parado a apontar exatamente para repórter e um quarto - ele era repórter, eu o resto e o que vinha a seguir que viesse quentinho porque tínhamos sede de mar e raiva a copos cheios. O velho contava histórias de Moçambique já embaciadas na janela da sua saudade e eu falava-lhe de mais uma paixão a apagar-se em mim. Numa tarde dessas, enquanto bebíamos umas e outras, ele levantou o sobrolho, deixou a descoberto todo o azul que lhe desenhava as radiais e sentenciou que no dia seguinte seríamos outra vez filhos do areal, mas menos majestáticos. Isto da vida estava para mexer mais e pensar menos e ele fora homem de ação e pouco béu-béu.

Dia a seguir, repórter e um quarto da tarde e outra vez Carcavelos, eu e o velho. Queria espraiar-me no bar e discutir com ele aquele livro do Stanislaw Ponte-Preta e os porquês dos tantos porquês que há numa mulher (matéria inflamável...) a cigarros e cevada quando o velho dispara sobre o areal como um possuído. O espetáculo que foi vê-lo descascar-se e exibir o carcaçame ao sol perseguir-me-á para sempre. Tirou a camisa de caqui com rapidez notável, estufou o peito, atirou calças e sapatos para o ar com desprezo e ficou com uma sunga indízivel, azul-bebé com uma lista amarela a cobrir-lhe as vergonhas. 

"Olha bem para estes restos de uma antiga opulência", sentenciava a ufanar-se dos vestígios de bícepes e das ruínas de peitorais. A malta passava, ria e a situação para mim era ver-me sentado na sanita de uma casa de banho de luz presencial subitamente apagada e a esbracejar em vão no escuro sem me poder mexer. Porreiro...

No embaraço, já a descambar para o "tirem-me daqui que não sei andar nisto", vi o velho galopar para o quebra-mar, o meu nome ecoar à distância e arranquei a ver-lhe as plantas dos pés alternarem pelos ares. "Isto não é ginástica sueca, mas cueca, como dizia o Vasco Santana", ofegava ele, a recomandar os pulmões carcomidos pelo tabaco, como quem volta a impor ritmos perdidos. Foram saltos para lá, calcanhares nas palmas das mãos para cá, a minha vergonha para acolá, os poucos fios de cabelo do velho a esvoaçar por acolí com a devida justaposição de flexões de tronco à frente para acabar a comer areia, agachamentos para o trícep no murete, abdomniais oblíquos (nem sabia que ele sabia o que era, mas é no que dar subestimar a terceira idade) e mais um sem número de merdas a que o velho, sempre de esqueleto a agitar-se se entregava com eletricidade de "personal trainer" quando eu já tinha apagado o maçarico há muito. Bufava sobre a toalha a ver a roupa do velho dispersa na praia e a topar-lhe à distância a careca ser-lhe engolida por uma onda. 


Depois de eu dar uma cacholada para vingança, já o velho estava há muito no WindSurf café, típico bar amadeirado, de pranchas, areia e sal. De um lado ouve-se ska, do outro o rebentamento do mar. Pouso os ossos na cadeira e o gajo raspa-se para a casa de banho. No "entr'acte", descubro na mesa em frente uma morenaça de estalo de cabelo castanho em tons que o sol criou, que tinha assistido à ginástica cueca e, pelo toque do tambor, já tinha entabulado converseta com o velho - um encantador viçoso e nato, mau grado os poucos dentes lhe fazerem a boca num cemitério abandonado. Ela abre o sorriso de promessas muitas, mas levanta-se, pousa-me a mão no ombro num tique compassivo e solta na passada que aponta à saída: "Ai que sorte. Tens um avô tão giro..." Ao voltar, o velho cruza-se com ela na porta e despedem-se com fugaz cumplicidade.

Ele senta-se, pisca-me o olho, faz-me um sorriso de ladrão já com o dia feito, acende um cigarro, prende-o nos beiços, retira-o para a primeira pufadela molhando-o junto ao filtro (o senhor raramente secava as mãos...) e lá rematou em resignação esfuziante pelo triunfo de um momento: "Viste?... Se eu agora não jogasse snooker com uma corda..."  


 Filipe Alexandre Dias
Jornalista



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Ciúme? Nem sei o que é isso...






Li, num dia de sol sem sombra de mau tempo, que o ciúme é como o sal enquanto tempero: na medida certa a relação é degustada com imenso prazer mas, em excesso, torna o relacionamento intragável…

“ O cíume, (…) é considerado uma das emoções potencialmente mais destrutivas nas relações de amor e é definido como uma reacção emocional aversiva desencadeada por uma relação entre um dos parceiros e uma terceira pessoa.” (Narciso  e Ribeiro, 2009)
As mesmas autoras referem ainda de que o ciúme pode também ser desencadeado pelo envolvimento do outro, num interesse ou actividade que compita com a atenção do parceiro.


- Tenho uma amiga que diz que , por mais que  tente relativizar a reacção que lhe provoca o afecto e o cuidado, quanto a si excessivo, que o  marido dedica às suas cadelas, não consegue deixar de ver nisso  um sinal de uma certa irritação  desmesurada pela atenção despendida por ele a elas e não a si… enfim, ninguém é perfeito… -


Mas, continuando, parece que , de acordo com estas mesmas autoras, " o ciúme incluí três componentes": cognitivo, medo da potencial perda do parceiro, operacionalizada em pensamentos obsessivos; afectivo, traduzido em sentimentos tais como: zanga, ressentimentos, medo, insegurança, tristeza, etc.; e comportamental, expresso de uma forma mais crua e descontrolada em tentativas de controlar ou punir o parceiro.


- Não me parece que essa minha amiga tenha sido contaminada por algum destes componentes mas, segundo ela, há um lado seu que, às vezes, ainda acha que o olhar de uma delas é, no mínimo, desafiador, quando a fixa perante o seu gesto afectivo para com o seu marido… - 


Bom, adiante. O ciúme, em doses mínimas de tempero, não significa que se esteja necessariamente perante algo mais patológico e disfuncional;  o problema surge e aí  o desgaste da relação pode instalar-se, quando reacções intensas deste sentimento afectam negativa e profundamente o relacionamento afectivo.

Dizem os entendidos destas coisas do amor de que padrões de vinculação inseguros, baixa auto-estima, níveis elevados de ansiedade, experiências passadas traumáticas ( abandonos inesperados de parceiros/as) podem provocar medo, angústia e  insegurança em relacionamentos futuros.

E que "... os homens ciumentos tendem mais a reagir de modo a aumentar a sua auto-estima, o que frequentemente se traduz por comportamentos negativos, enquanto as mulheres ciumentas tendem principalmente a realizar esforços para enriquecer a relação, tais como tornarem--se mais atractivas, falar sobre o assunto e aprender algo com a situação " 

  • Qual é o tamanho do meu sofrimento?
  • Consigo funcionar no meu dia a dia sem deixar que o ciúme me assalte o pensamento e me deixe incapaz de prosseguir as tarefas ficando absorto por este sentir?
  • De que/quem desconfio? Essa desconfiança é minimamente credível?
  • Será que tenho mesmo motivos para desconfiar do meu parceiro/a?
  • Este constante ciúme atrapalha a minha relação?


Coloque a si estas questões; reflita sobre elas; quem sabe não o/a ajudam a mudar o seu olhar sobre estas coisas “maléficas” do amor e  finalmente consiga perceber se o que sente, é só um tempero saudável ou se, pelo contrário, é algo disfuncional que deixa a sua relação intragável…


- Recomendei à minha amiga que fizesse também ela este exercício e parece que afinal descobriu  de que as suas cadelas, não são  mais de que uma forma afectiva e comum do casal partilhar estas coisas simples e bonitas do amor… -


Deixo-vos com uma frase de Camilo Castelo Branco ( sim, porque isto do ciúme não é uma coisa dos tempos modernos é algo absolutamente intemporal…)

É espantoso como o ciúme, que passa o tempo a fazer pequenas suposições em falso, tem pouca imaginação quando se trata de descobrir a verdade”





Ana de Ornelas
O Canto da Psicologia




quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Os dias e os tempos em 160 km...







O melhor de ser da cidade é ter terra. Melhor ainda que o melhor: ir à terra. Superior até ao melhor que o melhor: arrancar dos subúrbios, esventrar a cidade num Ford Granada e ir até à terra quando já havia ponte sobre o Tejo, mas as autoestradas morriam em Vila Franca. Era onde um novo mundo pastoril começava. Tinha 160 km de comprido, mas muita palavra de largura.

Antes de lançar os seus impantes 3.000 de cilindrada ao asfalto, o Ford Granada verde oliva abria portas a todos os credos, preferências e tiques dos Dias e parentes por afinidade. Havia guerras de PCP a CDS e jogavam-se dérbis do pendura ao banco de trás. Até fazia eco como se fosse em hóquei de pavilhão, tamanha o espaço do bólide. Foram tantas, mas ficou uma particular, que se calhar é amálgama de várias. 1982, o Granada dos Dias ainda não meteu a quarta e a coisa já ressuda a disputa em estreias absolutas nos meus ouvidos. Uns não olham para aquele campo com galinha granítica de asas estendidas à porta, na fronteira entre Carnide e Benfica, e outros desdenham do recinto detonado com vidraças partidas a condizer mais adiante, onde o Lumiar pede licença para continuar Lisboa ao Campo Grande - a Susana vai aos pés da mãe no banco do pendura. Exatamente aí, acaba o dérbi e a fricção política entra de supetão. O pai e o tio saudosos do tempo da outra senhora condoem-se a perguntar porque é que o pedestal de mármore rosácea do venerável Marechal Carmona já só tinha a armação. O padrinho enamorado do 25 de abril e mal refeito da pancada do PREC acha que até fica melhor assim - a Susana já se recosta no colo do tio.




A estação muda a crepitar do Paulo Alexandre para a Tonicha e na Reta do Cabo surge uma acalmia na forma de consenso sobre os dias melhores que já viu a futura carcomida Estalagem do Gado Bravo. Dá-se continuidade ao tema ao passar o Porto Alto, admiram-se os arrozais de Benavente e há a paragem em Salvaterra para apanhar a tia chata que não está para ir no seu Morris e aproveita a espaçosa boleia. Se se diz que é para a direita ela diz que é para a esquerda e seguimos todos com a sua insuportabilidade inescapável - a Susana nem olha para a tia e encosta-se a mim. Os cavalos olham de soslaio para Marinhais, apontam a Muge, trespassam Benfica do Ribatejo e há uma trégua em Almeirim a Sopa da Pedra - a mesma que a Susaninha vomita em Vale de Cavalos quando a conversa já desagua em Sá Carneiro mártir que o padrinho garante ter sido uma grande perda para... os reaccionários. O pai embirra com o sobrinho e acusa-o de comunagem desavergonhada que aprendeu lá com a maralha da EDP. O primeiro defende que defendeu a Guiné e que o segundo nem pôs os calcantes no Ultramar. O segundo ri-se e diz que esteve no Largo do Carmo com o Salgueiro Maia e se o primeiro pudesse tinha ido buscar o professor Marcello ao Brasil. A mãe e a tia (irmãs desavindas) adormecem ao som de um golo do Jordão no barbante do Espinho - o que considero uma afronta - e o meu tio volta, 21 anos volvidos, a asseverar que o Eusébio foi gamado aos leões numa jogada súcia que não interessava nem ao pirata. O meu padrinho faz descaso e garante que o Espinho ainda vai dar a volta ao marcador - a Susana vai ao colo do pai, a fazer-se ao volante e há quase um fim do mundo em cuecas dentro do Granada. Há um azedo cortar de relações que vai da Chamusca até Vila Nova da Barquinha depois que o vira e mexe tocou as ex-colónias, o passado de armas e a família Dias só reassume contornos de clã em Rio de Moinhos, à volta de copos cheios num café com aroma de adega. A mãe e a tia dormem no carro - a Susana desaparece por instantes, há um desespero hediondo em segundos e ela reaparece com um cachorro pulguento nos braços. O meu pai cumpre à risca o que comigo combinou, compra-me o último Recruta Zero e duas saquetas do Mundial de Espanha - edição da Panini, naturalmente. Abrantes já era e Alferrarede também até que todos se aguentam à tortura medieval da estrada das curvas e contra curvas até ao mourisquense destino. Há sacos de serapilheira e garrafões revestidos de verga a sair da bagageira e um "até à volta" - a Susana chama qualquer coisa à tia depois de tentar sair do carro em andamento.

Acaba a viagem. Pior: acaba a discussão. 

Percebi depois que o jornalista em mim vem desses ribatejanos 160 km. Entre duas opiniões, pode haver uma a mais, mas estou cá para todas. Ah, se estou. E podem vir dos Cinco Violinos que se finaram, passar pelo Nené que não sujava os calções, até à nossa crónica incúria governamental. Eu aguento-me ao biscoito. 


Filipe Alexandre Dias
Jornalista



P.S.: Nas autoestradas nada se aprende. Vão por mim.
P.S.S: A Susana é minha irmã e ainda deve andar a mudar de posição enquanto vos escrevo.



terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Plantas da nossa horta...









Hoje fica esta tabela simples, mas eficaz com propriedades várias de alguma plantas interessantíssimas e à disposição na natureza. Muitas destas plantas encontram-se facilmente em lojas da especialidade, supermercados e lojas de produtos biológicos.






Retirado de Revista “Saúde Actual” de Setembro/Outubro 2016

Uma nota para a soja que não é válida para a largar maioria das pessoas e para o chá verde que está contra-indicado em hipertensos.

Todas estas plantas podem ter contra-indicações e/ou interações negativas com fármacos, dependente e/ou independentemente da dose.

Júlio de Castro Soares
Nutricionista
Tlm.: 962524966



quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

A insustentável leveza de um gesto sem retorno...






Não o fiz porque sim…era mesmo o que queria fazer. Foi mesmo a vontade que tive ali. Já andava dentro de mim esta coisa…essa ideia e acho que pensei mais do que uma vez nisso mas foi ali…foi naquele dia. Era mesmo aquilo.
(…) Agora continua tudo dentro da minha cabeça! A diferença é que a minha mãe está sempre preocupada com aquele dia. Com aquilo que fiz…ás vezes parece uma coruja como se tivesse a tentar olhar para dentro da minha cabeça. Já o meu pai não sei…acho que parece igual…não sei  (Alexandre 12 anos)      

Nunca pensei…ele??Porquê ele?? O que lhe passou pela cabeça?? Sempre foi uma criança impecável! Nunca deu muito trabalho, comparando com os irmãos…foi o mais fácil embora sendo o primeiro de todos os filhos.  Foi um choque…uma surpresa horrível e inimaginável.(…) Agora…dou comigo a tentar ver-lhe palavras escritas na cabeça que me digam alguma coisa…sei lá. Morro de preocupação…parece que estou sempre em alerta! (Mãe do Alexandre)

O Alexandre entre lágrimas que não corriam pelo rosto, falava no encolher de um sofrimento que há muito habitava o seu T0 (e mais uns tantos anexos construídos no então) interno. Contava de olhar fixo no chão e com o rosto sobre as mãos, aquele que achava ser o único momento em que alguém gritara o seu nome de forma diferente. Momento no qual o seu desespero falara mais alto e o impelira a um desprendimento abrupto e precoce de uma realidade que parecia demasiadamente insuportável e pungente. Com um bilhete estampado no fundo de um frasco de comprimidos religiosamente arrumado no pechiché da avó, o Alexandre parecia ter encontrado uma saída para o seu sofrimento que culminara naquela véspera…”curiosamente” véspera de natal.

Nem olhei pá porcaria do espelho ali mesmo à frente! Olhei pó fundo do frasco e… tive vontade de poder ver lá a minha cara! Que estupidez isto mas…foi isto mesmo que pensei!

Entre as várias conversas com o Alexandre e entre tantas palavras, choros mudos e coisas não ditas mas expressas, ficava latente a forma como o registo depressivo se vinha instalando e descolorindo as paredes do seu T0, outrora pintalgadas de mil e uma cores que só a infância catalogara. Rasgavam-se momentos como posters desinteressantes na parede, de jogos de futebol sem público, de histórias de aventuras empolgantes de recreio interrompidas por chamadas sempre urgentes e teimosas, de cadeiras vazias nas festas da escola, de “porque sim” a porquês que apenas serviam para ficar ali no carro só os dois só mais um pouco, e de sorrisos e cavalitas em terras distantes em tempos em que o mundo ainda conhecia heróis, dragões e guerreiros. O Alexandre falava de uma infância tão longínqua que parecia já velha, fragmentada em memórias a longo prazo recuperadas a custo e em esforço. Faltara-lhe um colo vindo de dentro, suspenso em braços fortes por fora, suficientemente bom que perdurasse, fizesse crescer, cair e levantar. Um colo que amanhecesse e anoitecesse sobre um olhar de amor, expectativas e sonhos que como se de uma mão se tratasse e segurasse sempre na sua a cada desafio, tropeção e conquista.
Parecia ter havido sim uma espécie de colo amputado de um braço, e nesse espaço tinha desaparecido a exclusividade, a espontaneidade e força para cinco minutos de recatez no quarto das mil e uma cores. Cinco minutos que já não se contavam e não faziam a cova de outros tempos na borda cama, aquando de um adormecer que já não precisava de um conto mas um sim um ponto apertado de afecto sobre um vínculo enlaçado ao primeiro choro. Esse cólo quase…quase inquestionável…fazia o que podia…e tinha gritado naquela noite o nome do Alexandre mais do que o que as cordas vocais permitiam. O grito tinha ainda hoje um eco atroador naqueles ouvidos de mãe, que tornara o coração pequeno e excessivamente apertado para tanto desespero, ancorando em fateixa pesada uma culpa esmagadora. Inquestionável e legítimo eram os desejos desta mãe: que seus ouvidos tivessem ouvido os pezinhos de lã de uma tristeza demasiado longa a persistente, por detrás do silêncio que carregava uma mochila de livros e cadernos; que os seus olhos tivessem traduzido o olhar funesto escondido atrás do telémovel agarrado às mãos nos “serões” de sofá; que o seu nariz tivesse cheirado o esturro das dores de cabeça e barriga nos jantares de família…que todos os sentidos e mais alguns lhe tivessem mostrado que no sapatinho nº 36 do Alexandre havia um enorme desejo de ser novamente importante, engraçado, ouvido…de ser amado.

Não tivesse o Alexandre nome de guerreiro e poderíamos quase acreditar que esta poderia ser apenas uma estória triste…mas…
 

Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia


quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Judí e as coisas que não são bem assim...









Quando o Boneca passou por mim como um foguete de três estalos e a meteu direitinha de canhota junto ao poste mais distante, eu só queria que o alcatrão me engolisse. Ficámos miseravelmente fora do campeonato da escola e a Judí era a pior testemunha da minha desgraça. Logo naquela tarde de sol a pino, em que estreei as minhas luvas pretas adornadas a vermelho-fúria e levei umas galdinas acolchoadas para me dar a requintes felinos entre os postes e arrancar "bruás" de todas aquelas gargantas em idade de mudança de voz. A baliza era a minha casa e ali só entrava quem eu queria, mas o Boneca levou-me a melhor. Podia ser pior. Podia ter engolido um frango dos bojudos se ela me passasse por entre o pername, mas ver o Boneca partir para a festa e levar o 9º7ª em frente na prova encheu-me da mais adolescente vergonha. E a Judí a virar costas...

A Judí era a causa maior de todos os meus frémitos. Por ela engasgava e tremia. A Judí tinha rosto trigueiro, sorriso de cinco mil paus, que era para mim todo o dinheiro do mundo. Fazia-a rir logo pela fresca, antes de subirmos a ladeira até à escola. Ir ao lado da Judí era flanquear realeza e ser dono de todos os ciúmes. Conhecemo-nos a tirar o horário na paredão da cantina. Apontámo-lo nas costas um do outro por graça e marcámos encontros regulares entre todos os toques. A minha devoção atingiu proporções de meliante, ou não tivesse aliviado umas notas azulecas da carteira do papá para impressionar a Judí a gomas, matinés no Palmeiras e incursões pela cidade que parecia tão longe dos nossos insulares subúrbios. Não apanhar a Judí no autocarro - angústia de horror. Fins de semana tão longos - faziam-me sentiar crescer o buço com a facada da espera porque eu era do outro lado do vale. Férias - era não sentir o sabor da brisa, não entender o sol e renegar o mar. Regresso - promessa de Judí e do beijo que esperava soltar-se. A Judí perdoou-me perder o desafio com o Boneca, que a cobiçava debaixo do meu buço. A derrota morreu ali, o futebol voltava a ser reduzido a um jogo. Passámos a ser eu e a Judí atrás do pavilhão de mecanotecnia e até a professora Auzenda, uma megera do pior, me parecia a mais encantadora visão depois de cada bate-pé em que só valia a Judí e eu.



Perdi a Judí depois, pelas incontáveis vezes que a deixei à minha espera por aí e sem porquê. Sei que a encarei com vergonha maior quando a escola já não nos juntava. Nada para dizer e cada um a crescer para seu lado.

Os anos vararam e, ao atravessar da rua da cidade outrora distante, tive os olhos da Judí por cima do mesmo sorriso, a meio lábio, a olhar para mim do outro lado de um espelho que passou. Agora sou eu que me prendo a um instante, na esperança que ela volte a passar a cada vez que um lado me separa do outro. Se ela reaparece e pára, vou perder-me em elipses porque ela tem rosto de trigo, mas confessar-lhe-ei tudo o que aprendi que mais não é que as coisas não são bem assim. 

Aposto que ela volta a rir só para mim quando lhe abrir a boca. Lá dentro, tenho uma goma.


Filipe Alexandre Dias
Jornalista