quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Um silêncio ensurdecedor...








Embora o conceito de silêncio se refira à ausência total de som (audível, pelo menos), a “coisa-silêncio” sobre a qual nos propomos sinteticamente pensar, diz respeito à ausência de comunicação verbal no processo comunicacional, este assim bem circunscrito e entendido.
Ora, se a sabedoria popular alude a “silêncios que valem mais do que mil palavras”, o silêncio poderá ser, em tese e no limite, não a ausência de sentido, mas as múltiplas possibilidades do mesmo.
Desde sempre o silêncio foi impregnado por uma nuance de negativismo (Matos, 2001; D’Incão, 2007) e associado a um suposto estatuto proibitivo que apresentaria. Como não é visível, observável, o silêncio reduz-se, num primeiro olhar, à falta da palavra, à falha da linguagem. Pensa-se que o silêncio esconde algo e que se configura, desde logo, como um segredo por revelar. Na verdade, o silêncio contém a multiplicidade do discurso, do que pode vir a ser, do que pode ser dito; e pode ser tido tudo a partir do silêncio. Segundo Tfouni (2008) o silêncio não fala, o silêncio é.  
Sabemos, todavia, que nem todos os sujeitos lidam bem com o silêncio; alguns não o suportam mesmo. O silêncio pode causar ansiedade e ser sentido como desconfortável (Hill et al., 2003; Sabbadini, 2004), pois remexe o interno e o latente e, no limite, desarma o sujeito.
Em psicoterapia e no setting psicoterapêutico, os silêncios (de terapeuta e paciente, note-se) podem ser de vários tipos, géneses e propósitos, motivados consciente e inconscientemente (Arlow, 1961; Green, 2004) e são enquadráveis e interpretáveis em função do momento específico em que se encontra o processo terapêutico (Arlow, 1961; Leal, 2004). Enfim, o silêncio é também comunicação (Janet, 1991; Matos, 2001). Mais ainda, o silêncio é um dos indicadores que permitem estabelecer os laços e a compreensão entre os diversos significados e significantes imbuídos no processo transfero-contratransferencial (terapêutico, entenda-se); e é, também por isso, espaço relacional que potencia e norteia o trabalho do terapeuta. Posto isto, a especificidade e a função do silêncio variam, de igual modo, de acordo com esses laços estabelecidos a priori. Matos (2001) refere que o silêncio pode manifestar, por um lado, investimento amoroso, mas também uma ruptura agressiva; i.e., tanto pode potenciar intervenções ricas e dinamizadores da psicodinâmica (evolução), como pode levar a disrupções, subsidiárias da psicoestática (estagnação e/ou involução). É, por conseguinte, um aspecto multifacetado e que determina e é determinado, sobejamente, pela relação já estabelecida e a estabelecer entre terapeuta e paciente. Em suma: barómetro e futurómetro (passe o neologismo) do estado e devir da relação terapêutica e do expectável horizonte de progresso do processo terapêutico.


Silêncio contentor vs silêncio frustrante.
Bion (in Green, 2004) afirma que o silêncio se distingue entre o pertencente ao vazio e o usado como estratégia para calar (itálicos nossos), mas que ambos devem servir como ponto de origem para a relação terapêutica e a partir da qual se deve iniciar um intenso trabalho de escuta silenciosa. Green (2004) refere que o silêncio do terapeuta funciona como um catalisador invisível, a partir do qual o paciente compreenderia sozinho o significado do que fora verbalizado. D’Incão (2007) refere que o silêncio do terapeuta transporta o paciente, para um espaço onde é possível efectuar-se a transferência e, embora dependa da subjectividade de ambos os envolvidos, carece especialmente de uma dose substancial de tranquilidade interna, por parte do terapeuta. Ademais, o silêncio pode ser introduzido intencionalmente na terapia, mas também pode surgir de forma inesperada.
Contudo, intencional ou não, o silêncio pode também revelar-se, por vezes, como frustração para o paciente e tornar-se, consequentemente, improdutivo para a relação terapêutica e processo terapêutico, porquanto o sujeito compreende como insuficiente aquilo que é dito pelo terapeuta. Não obstante, se tivermos em conta vários estudos empíricos das áreas de Cognição e Memória, sabemos que quanto mais se fala, mais se esquece. Neste sentido, a introdução do silêncio em determinado momento de uma sessão, pode permitir que o paciente “pare” e tenha espaço e tempo para reflectir.
Para Matos (2001), defensivo ou frustrante, o silêncio realça o discurso. O autor enfatiza que são os seus toques e as suas intervenções que modulam a verbalização (ou falta dela) do paciente e lhe garantem a sua individualidade. Em rigor, o silêncio não será, portanto, vazio, mas sim um silêncio preenchido de conteúdos, à espera do seu tempo para eclodirem. O silêncio será, então, rasgado pelo ruído, ruído este que é revelador e potenciador do processo terapêutico.
Não dizer nada nunca será o mesmo de não ter nada para dizer. Estar em silêncio é frequentemente conotado como negativo, mas nem sempre o falar é, necessariamente, positivo. Convoca-se o silêncio e depois fala-se, partilha-se, vive-se, fantasia-se. A palavra reveste-se de significado(s) e torna os silêncios interactivos, enriquecedores. O silêncio regula as verbalizações, as interacções, a nós próprios e aquilo que pensamos, que somos e quem somos. As interpretações que daí advêm permitem estabelecer a lógica e compreender o conteúdo interno de cada um de nós. De resto, também os fantasmas individuais e colectivos pertencem ao universo do silêncio.

“Aqui o silêncio também fala, a quem o escutar.”

Marc de Smedt, in Elogio do Silêncio (2006, p.143).




Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia



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