quinta-feira, 2 de março de 2017

A invisibilidade do efeito da palavra...





Notas sobre a Invisibilidade

A psicologia, sofreu – e continua a sofrer - desde o seu nascimento de uma grave crise de identidade. Se se queria teorizar mostrava-se incapaz de estabelecer uma efectiva cisão com a tradição filosófica; propôs-se desenvolver uma filosofia própria, mas pecou pela pobreza teórica e ficou muito aquém das intuições dos primeiros pré-socráticos; achou-se em lugar inteligível, e pensou que cisão significasse cegueira, surdez ou ignorância. Navegando à bolina com a filosofia quis cientificar-se, apregoando o positivismo e sobretudo o materialismo, estabeleceu uma relação fusional com a neurologia, por um lado, e com a psiquiatria por outro. Quanto mais cientifica se queria a psicologia, mais se esbatia a sua essência, confundindo o método experimental com cientificação, e ciência com o modelo biomédico; perdendo-se em alicerces epistemológicos frágeis e de operacionalização duvidosa.

Interessou-se pelas manifestações das funções cognitivas, e fundou uma epistemologia baseada no funcionamento da memória, da atenção e da percepção. Desprezou a importância da filosofia, e mostrou-se ambivalente em relação à descoberta psicanalítica. Se por um lado não se ateve nas críticas, acusando a psicanálise de pansexualismo, de perversão e de generalizações abusivas, tornando-a alvo de chacota, por outro lado era capaz de reconhecer as suas principais contribuições, caindo, no entanto, num reducionismo que a remetia à teoria do desenvolvimento psicossexual e ao conceito do inconsciente.

A psicologia nasceu e desenvolveu-se em processo psicótico, observando-se crises de identidade, telescopagem de papeis e escotomizações. Preferiu as perspectivas que dão primazia ao visual e ao manifesto, fixou-se sobretudo nos Estados Unidos e aliou-se às teorias comportamentais, desenvolvendo-se em torno da sua evolução natural e fundando a sua própria escola psicoterapêutica.

A história da psicologia clínica, como a conhecemos, e de toda a sorte de psicoterapias, devem toda a sua estrutura ao advento da psicanálise, transformando-se, modificando-se e desenvolvendo-se sempre, ora em confronto, ora em derivação.
A psicanálise, em contraste, operou num duplo movimento de oposição a esta crise identitária; não se quis ver confundida com a psiquiatria, recusou os sistemas diagnósticos e suas metodologias e renunciou à noção de hereditariedade-degenerescência vigente no final do século XIX e arrastada para o século XX. A psicanálise nasce da mente de um neurologista judeu, mas rompe rapidamente com o paradigma biomédico, mesmo antes do seu nascimento oficial em 1900; movimento que se observa na recusa à publicação do Projecto para uma Psicologia Cientifica (Freud, 1885) e mais de 40 anos depois na publicação d’A Questão da Análise Leiga (Freud, 1927).

A aventura freudiana não se fechou ao conhecimento filosófico, pelo contrário, abriu-se a ele. Respondeu às críticas dos filosofos e muniu-se da filosofia germânica e inglesa, mais notadamente as filosofias de Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer, Immanuel Kant, John Locke e David Hume. Inaugurou um estilo de enriquecimento teórico, sem nunca colocar em causa a sua integridade, identidade e essência; verificou-se a sua utilidade n-dimensional e teceram-se relações com: a mitologia – e.g. A Interpretação dos Sonhos (Freud, 1900) –, com a literatura – e.g. Gradiva de Jensen (Freud, 1907) – com a filologia – e.g. A Significação Antitética das Palavras Primitivas (Freud, 1910), com a antropologia – e.g. Totem e Tabu (Freud, 1913) –, com a educação – e.g. Educação e Psicanálise (Freud, 1918) –, com a sociologia – e.g. Psicologia de Massas e Análise do Eu (Freud, 1921), e com a religião – e.g. Moisés e o Monoteísmo (Freud, 1937).

Dir-se-ia que existem diversas razões para que a história da psicologia não siga necessariamente o mesmo rumo da história da psicoterapia. Mas muito do que parece explicar esta divergência parece dizer respeito à diferença de olhares, os primeiros, para aquilo que se vê, e os últimos para aquilo que não se vê.
Em 1916, nas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, dizia Freud, perante um auditório de médicos e leigos: 

 ‘Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas. Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química, a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos senhores: os sintomas de suas doenças, as consequências dos processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença isolado. Nos departamentos cirúrgicos, são testemunhas das medidas ativas tomadas para proporcionar socorro aos pacientes, e os senhores mesmos podem tentar pô-las em execução. Na própria psiquiatria, a demonstração de pacientes, com suas expressões faciais alteradas, com seu modo de falar e seu comportamento, propicia aos senhores numerosas observações que lhes deixam profunda impressão. Assim, um professor de curso médico desempenha em elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos mediante a própria percepção de cada um. Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista. O paciente conversa, fala de suas experiências passadas e de suas impressões atuais, queixa-se, reconhece seus desejos e seus impulsos emocionais. O médico escuta, procura orientar os processos de pensamento do paciente, exorta, dirige sua atenção em certas direções, dá-lhe explicações e observa as reações de compreensão ou rejeição que ele, analista, suscita no paciente. Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão ‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente, eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles. Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre o analista e seu paciente. Contudo, nem isso podemos fazer. A conversação em que consiste o tratamento psicanalítico não admite ouvinte algum; não pode ser demonstrada. Um paciente neurastênico ou histérico pode, naturalmente, como qualquer outro, ser apresentado a estudantes em uma conferência psiquiátrica. Ele fará uma descrição de suas queixas e de seus sintomas, porém apenas isso. As informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que ele percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como personalidade homogênea, não admite para si próprio.’ (Freud, 1916)

Para pensarmos; afinal de contas, parafraseando Freud, a ciência moderna, nesta evolução incrível sustentada por bases cientificas, ainda não descobriu um medicamente tão tranquilizador e eficaz quanto  uma boa conversação...



Dr. Fábio Mateus
O Canto da Psicologia




Sem comentários:

Enviar um comentário