quarta-feira, 27 de março de 2019

A Rosa branca e o Narciso amarelo...



No comboio que galgava quilómetros ao som de um ritmo próprio , entre Lisboa e  Porto ou, entre o Porto  e Lisboa não interessa , soavam risadas frescas e alegres, ouvidas ao longo das carruagens,  de três flores que nele viajavam: a Rosa, a Tulipa e a Dália.
Frescas, viçosas, a emanar aromas que as distinguiam, quem as visse era levado a acreditar de que teriam sido acabadas de apanhar de um jardim cuidado, tranquilo, sereno, que emanaria ternura, carinho e amor por quem dele  olhava e tratava, protegendo-o de pragas perpetuadas por vírus, fungos ou bactérias que pusessem em risco as suas flores.

Numa dessas carruagens, atentos, não fossem eles “experts” , especialistas e peritos nas questões de segurança, viajavam igualmente três outras flores de um outro jardim, disfarçados de autoridade, vestindo uma farda que os distinguia dos restantes utentes: eram eles  Narciso,  Cravo e  Antúrio.
Curiosos com o aroma e a boa disposição dessas três flores levantaram-se e perspectivando já um fim de semana preenchido de cor, dirigiram-se à carruagem de onde viria esse som contagiante e apresentando-se, entabularam conversa que os levou até ao fim da viagem.

 Ao despedirem-se , cada um seguiu o seu rumo não sem antes trocarem números de telemóvel,  contas do Facebook e Instagram,  sem perceberem a razão disso , a Rosa branca e o Narciso amarelo  prolongaram o “ apertar de mãos”, o despedir;  Narciso não sabia se era o seu reflexo no olhar de Rosa que o encantara se o desejo que crescia ou, se uma vontade enorme de a possuir ; Rosa não sabia se era a farda e tudo o que brilhava por ali que a cegava ou, o  olho azul que a enfeitiçava;
O que é um facto é que durante o fim de semana e a semana que se seguiu, as teclas do telemóvel ficaram gastas e  as pontas dos dedos doridas;  o desejo crescia , a vontade de estar com o outro aumentava de dia para dia contendo-se Rosa para que,  numa impetuosidade desenfreada, não descarrilassem  as suas pétalas  brancas pelos braços grandes, isto é, pelas pétalas amarelas de Narciso.

Até que, de uma maneira aparentemente inocente, afinal as rosas brancas são tidas como a cor da inocência, paz, pureza etc,  Narciso liga a Rosa e diz-lhe que, só por acaso, está perto de sua casa; Rosa treme, não sabe se de desejo , se de medo ou de ansiedade e hesita: convida-o ou não a subir? Só o conhece há uma semana; só alguém muito especial para permitir isso; parece-lhe doce, respeitador e as palavras que lhe escreve soam a honestas e sinceras e tem uns olhos azuis lindos… e para além disso pertence às forças de segurança; quem melhor para respeitar uma Rosa do que um Narciso agente de autoridade ?

E deixa-o subir. 

Abre-lhe a porta e surge Narciso, resplandecente na sua farda, com um sorriso de satisfação a indicar conquista de objectivo  a que se propôs há uma semana; Rosa, por segundos, estranha a postura que lhe parece um tanto ou quanto altiva e arrogante quando lhe pergunta, com a certeza da resposta, "se o vai deixar entrar" e,  mesmo antes desta poder responder, irrompe pela sua casa a dentro e deixa Rosa num misto de surpresa e ao mesmo tempo amedrontada pela invasão inesperada daquele seu espaço sagrado; por instantes, achou que estava a exagerar e ao mesmo tempo que fechava a porta, lembrou-se dos olhos azuis; quando se voltou, viu Narciso endireitar-se, à falta de água para se ver, tornar-se enorme e de um jeito que a fez sentir totalmente desconfortável, retira do coldre a sua arma e pousa-a em cima da mesa, junto ao seu sofá, desafiando-a, como se a casa fosse sua , a sentar-se junto dele.

Rosa senta-se. E de  repente percebe que  no seu chão, na sua terra, no seu jardim, não escutou o jardineiro que tanto a avisou e, abriu a porta a um vírus perigosíssimo, envolto em uma imagem falsa de segurança que inebriava com o seu aroma de pétalas amarelas e que, claramente, a colocou em situação de perigo . E ela permitiu isso! E Narciso, no alto da sua arma muito bem posicionada, despiu-a,  tirando-lhe pétala a pétala, a inocência, a tranquilidade, a pureza e a paz do seu coração. Rosa branca foi ficando nua, refém do medo, sem conseguir balbuciar o não, desejando que tudo acabasse rapidamente;  a raiva, o nojo, o asco de si própria, a vergonha e culpa, muita culpa foram-na  invadindo; no fim, satisfeito Narciso, este levantou-se, reposicionou a sua arma no coldre e saiu para nunca mais ser lido nem visto. 

Ficou Rosa,sem aroma, desfeita, afundada em culpa: afinal de contas ela tinha permitido tudo e tinha ficado sem nada , completamente tragada pela responsabilidade e vergonha.

Rosa branca escondeu tudo isto do mundo. A culpa não a deixavasossegar e acompanhava-a fosse para onde fosse. A relação com o mundo mudou; mudou com os pares; mudou com as pessoas; deixou de se sentir segura e cada vez mais foi ficando desconfiada e pouco crente em tudo o que a rodeava; via uma farda e depressa fugia desacreditada do significado de representantes das  forças de segurança do seu país; o seu jardim nunca mais foi o mesmo; e quando se apaixonou , quando verdadeiramente se apaixonou, sucumbiu à culpa, à vergonha , ao medo de uma nova arma que não a do Narciso amarelo, que surgia aos seus olhos sempre que uma nova flor se aproximava de si. E não aguentou.

Até que alguém lhe falou da existência de um jardineiro e  de um outro jardim; um jardineiro que  mostra e  ensina a respeitar todos os arbustos que por esse jardim  proliferam sem que tenham que ser necessariamente eliminados mas sim integrados na paisagem por onde habitam e crescem; um jardineiro que ensina a aceitar que as ervas daninhas não são fáceis de desaparecerem mas que, ao alimentar e cuidar  todas as flores que por lá crescem e brilham sem perigarem , estas abafam todo o resto;  e que as rosas podem co-habitar com todos os narcisos , antúrios, cravos ou flores do mundo sem que estas sejam o seu inimigo e que a sua violação, sim porque a Rosa branca foi violada pelo Narciso amarelo, não foi de todo responsabilidade sua só porque se encantou por uns olhos azuis e permitiu que ele entrasse no seu mundo. 

E a Rosa branca pacificou-se com o seu sentir e começou lentamente a acreditar de que era capaz de voltar a sentir-se livre da culpa e da vergonha que a atraiçoava só porque se encantou com os olhos azuis do Narciso Amarelo até que, encontrou o seu Narciso Branco que a olhava com uns lindíssimos olhos castanhos...



Drª Ana de Ornelas
O Canto da Psicologia




quinta-feira, 21 de março de 2019

“Como se”, uma via de acesso ao mundo simbólico






Em psicoterapia recorre-se muitas vezes ao “como se...”, é uma expressão que abre caminho a olhar a fantasia, a imaginação, o simbólico, que facilita o acesso ao mundo interno.“Como se” ajuda a pensar, a elaborar o que é sentido, a trazer à consciência conteúdos mais ou menos inconscientes, tornando-os, dessa forma, manejáveis pelo aparelho pensante.

Utiliza-se sobretudo com adultos e adolescentes, uma vez que as crianças vivem constantemente nesse modo, encontram-se naquela idade mágica em que a linguagem “como se” é instantânea e automática, está implícita. As brincadeiras que transformam uma almofada num escudo, um utensílio de médico de brincar usado como pistola, as bruxas que não se vêem mas que integram o elenco de várias aventuras, que perseguem a criança mas cuja casa, co-construída entre objetos e imaginação da criança e psicoterapeuta, lhe oferece guarida e proteção... São inúmeros os exemplos de imagens e cenas criadas no jogo simbólico da criança que dão voz e forma a diversos sentimentos e conteúdos mentais desta. O movimento que se faz é o da ligação deste mundo simbólico ao mundo real, à própria criança e às suas vivências.

No adulto, ou ao aproximar-se dessa fase, o movimento é o oposto, habitualmente o raciocínio lógico é o grande aliado e a realidade concreta a maior referência, por isso faz-se a ligação desses dados aos conteúdos da realidade interna, trabalha-se a capacidade de imaginar e de simbolizar de forma a potenciar o encontro do próprio consigo mesmo, com aspetos mais profundos e menos conscientes que constituem a sua verdade, que traçam o alcance que as suas vivências tiveram em si e as marcas que lhe deixaram.

O “como se” cria imagens, como uma metáfora (também muitas vezes usada) que permite trazer ao olhar consciente uma informação que doutra forma estaria inacessível e inominável. São estas imagens, partilhadas entre paciente e psicoterapeuta, exploradas e pensadas em conjunto, que permitem dar nome ao que se sente (e muitas vezes se recusa por se julgar disparatado ou sem sentido)  e que conduzem ao conhecimento e compreensão de si próprio.

Daqui se entende o papel fundamental das ligações entre mundo real e mundo simbólico, entre realidade externa e interna, entre acontecimentos e sentir(es) no trabalho psicoterapêutico. E pensar “como se” é uma ferramenta imprescindível neste trabalho.



Drª Filipa Rosário




quinta-feira, 14 de março de 2019

Crianças e Jogos online: o mundo mágico (im)perfeito







É cada vez mais natural para as novas gerações, preferirem o consumo de produtos digitais e, quanto a isso, sabemos hoje, não adianta fugir. Todos nós... pais, educadores, avós, professores e até terapeutas usufruímos dos benefícios da era virtual e já nos rendemos à realidade do log in vs logo existo. 
Contudo, na era das selfies e das redes sociais, há um tema que pouco conhecemos e temos receio de aprofundar, até porque, às vezes dá muito jeito que haja sossego e silêncio por um certo período de tempo…

- "Para vê-lo sossegado Dra., só quando está a jogar."

Mas afinal porque são os jogos online atrativos para as crianças e como conseguem mantê-los tão concentrados e focados?

Já ousou sentar-se ao lado de uma criança e atrever-se a entender o que está a jogar? FortniteGTALeague of LegendsCounter StrikeDOTAWorld of WarcraftAPEXAssassin's CreedFinal Fantasy, entre outros, apresentam-se numa lista infindável dos designados online games que se dividem em algumas categorias e que podem ser jogados em grupo ou individualmente.

Os gráficos e os cenários são mágicos, com cores e características visuais muito apelativas. Alguns jogos retratam cidades modernas, outros tempos medievais, arenas de batalha ou simplesmente locais abandonados onde a facilidade para entrar em combate com inimigos é contextualizada. Na maioria dos enredos está aliada a sobrevivência do personagem ou da sua equipa e a conquista de alguma terra ou de um objectivo comum. A criação do personagem implica personificar um terrorista, polícia, traficante, templário ou um estratega com determinadas habilidades e competências. Para dar maior capacidade e realismo é atribuído numa fase inicial, um conjunto de recursos como por exemplo armas, que vão possibilitar o desempenho mais eficaz da missão.

- "Dra. sempre que é hora de ir para a cama e lhe peço para parar de jogar há gritaria lá em casa".


Há três factores principais que ajudam a explicar o fenómeno e a adesão de crianças cada vez mais novas à realidade dos jogos online, com este tipo de características. A percepção de competência e o reconhecimento conseguido através das conquistas e do objetivo alcançado dá às crianças um autoconceito positivo naquela missão. Por outro lado, a possibilidade que é permitida nos jogos para pensar com autonomia e independência é fundamental no estímulo da capacidade criativa e muito desejada por qualquer criança. Finalmente, os jogos online também são peritos, quando exploram a dimensão interpessoal e relacional, porque criam o sentimento de pertença e atribuem um status social de acordo com a performance e o número de vitórias obtidas.

Pode então parecer que estamos diante de uma combinação perfeita e encantada sem precedente, mas na verdade, nenhum jogo se aproxima da satisfação profunda que a vida real e as ligações humanas produzem nas crianças
A competência obtida na execução de uma tarefa difícil ou da aprendizagem de uma nova habilidade por conta própria é muito mais rica. A autonomia resultante do jogo não consegue competir com a alegria da exploração da realidade, onde a criança é livre para desvendar os mistérios do mundo e, o sentimento de pertença experienciado nas equipas online não se equipara à segurança, ao afecto e ao amor de um adulto que realmente a ama e se preocupa com ela independentemente do modo como é.

Não podendo fugir da era da realidade virtual, podem os educadores estar atentos a este fenómeno, limitando o tempo de jogo, criando regras em conjunto, partilhando ideias sobre outros interessses, vigiando as horas de sono e de descanso, prevenindo assim situações graves de dependência.  
É indispensável privilegiar actividades que impliquem criatividade, autonomia, descoberta, aquisição de novas habilidades onde o reconhecimento, o fazer em conjunto e a cooperação são palavras de ordem.

Os jogos simulam e tentam recriar a realidade, mas não podem substituir nem ter a relevância do experienciar necessário que a vida impõe a qualquer criança. 
A vida real não é um jogo… 










terça-feira, 12 de março de 2019

Flexões para um coração mais forte? Pois, parece que sim!







A evidência científica hoje em dia já é consensual que a força, nas suas variadas formas de expressão, é um indicador de longevidade, saúde e qualidade de vida.


Um estudo recente, saído no início do ano, verificou que homens com idade médias de 40 anos, com capacidade para executar 40 ou mais flexões, apresentavam de forma significativa um risco menor de sofrer problemas cardiovasculares. Verificaram ainda que, a capacidade de executar bastantes flexões estava correlacionada com menor risco cardiovascular, comparativamente com testes de esforço sub-máximo em passadeira, ou seja, esforços aeróbios. Este teste foi conduzido durante 10 anos, apresentando resultados bem sustentados.

Já sabe, se quer melhorar a sua qualidade de vida e longevidade, procure integrar sempre o treino de força nos seus treinos. O treino cardiovascular feito de forma isolada, gera poucos benefícios para a saúde.

Bons treinos



Instagram: hugo_silva_coach
-Licenciatura Educação Física/Especialização Treino Personalizado
-Pós-Graduação em Marketing do Fitness 
-Pós-Graduando em Strength and Conditioning
-Director Técnico ginásio Lisboa Racket Centre



quinta-feira, 7 de março de 2019

Completar ou complementar?






Na cultura popular, diz-se com frequência que, para se ser feliz, há que encontrar a metade da nossa laranja. Que cada panela tem a sua tampa. À primeira vista, isto poderia significar que, a sós, somos “apenas” metade de algo. Será que isto é mesmo assim, ou será um pouco mais complexo? De que material é feita esta teia que nos enlaça?

Não é novidade alguma que as relações perfeitas e livres de mácula não existem. Sejam elas breves ou duradouras, quase todas as relações serão feitas de momentos de encontro, plenitude e prazer, assim como de desentendimentos, desencontros, lágrimas e mágoa. Talvez as pessoas possam ser adeptas de clubes rivais, ter amigos diferentes, interesses sem qualquer semelhança, mas acreditamos que seria por ter o coração partido que Rui Veloso cantava “não se ama alguém que não ouve a mesma canção”. Porque não se há de amar quem é diferente de nós? Estaremos destinados a ficar com alguém com quem simplesmente “encaixemos”?

Na realidade, podemos olhar para uma relação como algo que tem mais a oferecer do que a completude. Completar é colmatar uma falha, é encerrar em si mesmo, é não almejar a algo mais, é ficar “só” satisfeito; não será por acaso que na depressão, por vezes, se parece estar num estado constante de fome afetiva, que custa a satisfazer porque, no fundo, é manifestação de uma carência que já vem de trás. Por outro lado, o espaço de sonho e projeto, como tão bem o coloca Coimbra de Matos, encontra-se na relação de complementaridade. Aqui sim, assiste-se ao crescimento significativo e à expansão do amor, do conhecimento. O que haverá para além de mim? Do que já sei, do que já tenho, do que já conheço? Quando estão reunidas as condições necessárias para tal, este movimento de afastamento do que é tido como certo e sabido não se torna assustador nem angustiante, mas sim profundamente desejado e fascinante.

Este olhar curioso e sedento pelo incógnito, que, paralelamente, nos torna disponíveis para um outro-distinto com o qual explorar novos horizontes, só poderá florescer de um amor-semente, tão antigo quanto a nossa própria existência. Plantado num colo contentor e regado por um olhar potenciador de novos voos, este amor-semente permite abraçar o novo, o diferente, o desafio, e com isso crescer e, mais importante ainda, criar. A criação é sempre obra da relação, do encontro dos afetos que permitem a multiplicação e a extensão dos fios que nos conectam uns aos outros. Recuperando a questão inicial, esta teia que nos enlaça é então, só e apenas, amor. Amor genuíno, que oferece em simultâneo raízes e asas, para que saibamos o que temos mas, ainda assim, também arrisquemos olhar para lá dessas certezas, e, com isso, sair enriquecidos.

Drª Carolina Franco