quinta-feira, 28 de junho de 2018

O efeito mágico do "NÃO" ...






São muitos os “nãos” que circulam por entre as interações e relações que se estabelecem ao longo da vida. Hoje debruçamo-nos sobre aqueles nãos que vão dos pais para os filhos, aqueles que tantas vezes causam indignação e revolta nos mais novos mas são tão necessários, tão organizadores. Nãos que podem ser comunicados verbalmente ou podem ser transmitidos através de uma atitude ou decisão, de um limite que é estabelecido, como uma afirmação de um pai ou de uma mãe...

Concordamos, obviamente, com a noção de ineficácia, crueza e inadequação que caracteriza uma educação e as relações cimentadas em nãos, daqueles nãos taxativos, rígidos, frios e distantes; as crianças e adolescentes precisam que lhes sejam apresentadas alternativas, precisam que lhes seja explicado o porquê de determinado não e as consequências de não o aceitar; é importante que tudo faça sentido; uma relação sem nãos é  desorganizadora.
Uma relação sem nãos pode ser descuidada, pode inverter papéis, pode até chegar a ser negligente. Um não muitas vezes mostra que o adulto se importa, que a criança ou adolescente não está sozinho e tem com quem contar. Mostra às vezes que tem que se contentar, que tem que fazer uso dos seus próprios recursos e que é possível ficar bem dessa forma, que fica bem mesmo que com o pai ou mãe um pouquinho mais distantes. Como o caso de uma menina de 7 anos cuja mãe criou uma rotina no momento de adormecer à noite muito agradável e securizante para esta mas com a qual foi perdendo o controlo e foi estendendo até ao ponto de demorar mais de 2 horas, entre massagens, histórias e canções. Às vezes dar demais também pode constituir um problema. Neste caso a mãe começou a ficar exausta, deixou de ser comportável, porque não se foi capaz de dizer que não, de transmitir que há limites ao que ela pode dar e que ela, a criança, também precisa aprender a aquietar-se sozinha. Esta é uma situação mais complexa do aqui se descreve mas  interessa hoje ver nesta perspetiva. Serve para ilustrar que às vezes um não é tão importante como o cuidado e o amor de uma mãe, é este que permite alcançar um relativo equilíbrio.

Mesmo que disso não tenha consciência, um adolescente securiza-se   com um não com o qual, aparentemente, se debate, contesta... É como se se tratasse de duas partes de si que estão em disputa e o pai ou a mãe viessem desempatar. Fica satisfeito (embora não o admitisse aos pais, nem que lhe pagassem) porque sossega... Afinal de contas, o que é da fantasia, pode continuar nesse mundo e pertencer apenas a ele e isso, pode ser imensamente tranquilizante.

Um adolescente precisa de limites e estes são construídos e alicerçados igualmente pelos nãos que vai escutando ao  longo do seu crescimento dando-lhe ferramentas para conseguir gerir, com confiança, os conflitos internos inerentes à etapa da adolescência  permitindo-lhe assim, definir com alguma segurança "o que é meu, o que é do outro, onde pertenço..." Quando este processo falha encontramos um adolescente perdido, desorientado, desorganizado reflectindo-se este comportamento, na maior parte das vezes, em resultados escolares insatisfatórios,  chumbos por faltas, ou em outros aspectos comportamentais nomeadamente, gasto excessivo de dinheiro, pequenos furtos caseiros, mentiras e outros... Existem, naturalmente, outras razões e circunstâncias de vida que o poderão levar a este estado, no entanto, a importância do papel dos nãos  para, entre outros aspectos, aprender a frustrar e consequentemente ajudá-lo a crescer  é absolutamente incontestável

nãos que protegem, há nãos repletos de amor, há nãos que encorajam...


Drª Filipa Rosário




quinta-feira, 21 de junho de 2018

Os psicoterapeutas são seres da ciência ou da arte?






“Outro dia sonhei que estávamos de mãos dadas e havia muita confusão e pessoas na sala da consulta...”
“...Não sei se conhece aquele local Dra., já lá foi?”
“...Bom, a Dra. já deve ter ouvido um pouco de tudo, não é...”

Há muitas fantasias associadas à figura do psicoterapeuta que, muitas vezes, criam idealizações ricas que se tornam fundamentais no processo psicoterapêutico, outras expressam-se através de mitos, projeções ou  processos defensivos aos quais não nos conseguimos alhear.
Podíamos a partir daqui iniciar uma reflexão sobre aquilo que, entre psis e numa linguagem mais técnica, designamos como processo de transferência. Mas não! Esta síntese pretende trazer ao palco a pessoa do psicoterapeuta:

Quem ele é?
O que faz?
Que motivações tem?

São especialistas na arte de compreender e aceitar o outro, são empáticos e disponíveis, são simultaneamente provocadores e promotores do desenvolvimento e mudança. 
Um psicoterapeuta é um estudioso incansável e um curioso nato! A sua formação é muito específica e rigorosa que lhe permite ter uma compreensão mais alargada sobre o funcionamento psicológico dos outros e do seu também.

Os psicoterapeutas são capazes de identificar sintomas, angústias e sentimentos profundos. Toleram com maior facilidade a expressão de sentimentos negativos como a tristeza, a raiva, o luto e a agressividade, porque compreendem a sua essência.
O seu conforto é realizado com assertividade e com a certeza que o seu papel é estar ao serviço do outro. Observação, atenção, escuta, paciência e tolerância são palavras de ordem na sua rotina.

O guião escrito neste registo leva-nos a pensar que estamos a falar de seres com superpoderes ou que nos encontramos num filme da Marvel. Mas não! Os psicoterapeutas são filhos, pais, mães, colegas, amigos, namorados, maridos, mulheres, primos, vizinhos, pessoas que na rua passam tão despercebidas como outra qualquer. Têm as suas próprias fragilidades e sensibilidades, as suas manias e contrariedades, são humanos e assim sendo, não são perfeitos. No que diz respeito às suas características há muito a conhecer.  

Os psicoterapeutas são atraídos pelo trabalho em quem a expressão das emoções é notória e real. 

Os psicoterapeutas são motivados pelo desenvolvimento dos seus pacientes e nesse território sentem-se como peixes dentro de água. São facilitadores, contentores e tolerantes perante crises e confronto com o sofrimento. Celebram as conquistas dos seus pacientes e alegram-se com a sua autonomia e evolução. O acompanhamento do paciente no conhecimento das histórias que compõem o filme que é a sua vida, leva-os numa construção conjunta em que os cenários revelam aspetos internos e profundos.

Há quem diga que os psicoterapeutas são mais artistas do que cientistas porque, no seu trabalho, o processo criativo é uma constante que dificilmente atingirá um ponto de vista rígido ou de absoluta certeza. A constante descoberta funciona como catalisador para o exercício da profissão. 


Acredito que nós, psicoterapeutas, trabalhamos todos os dias numa sintonia de ciência com arte.




Dra. Fanisse Craveirinha




quinta-feira, 14 de junho de 2018

Crónicas do tapete: o jogo da memória







- Então, não te sentas no tapete? Já sabes que gosto que te sentes aqui comigo!

Se falasse, este tapete tinha tantas histórias por contar! Com os nossos pacientes mais novos, este simples amontoado de fibras sintéticas serve de cenário a mil e uma viagens ao universo infantil, desde fantasias coloridas e alegres a mergulhos ao que de mais negro pode haver dentro de nós. Quando estamos perante crianças, reina na sala o registo de “faz-de-conta”. É frequente que estas resistam a partilhar as mágoas que as acompanham, seja porque ainda não sabem como o hão de fazer, ou porque lhes é difícil fazê-lo abertamente. É absolutamente essencial calibrarmos os olhos, os ouvidos e o coração até onde os mais pequenos estão, sendo evidente que um diálogo refletido e ponderado não entra na equação. Vamos então brincar!

Neste dia, o cenário era este: o jogo da memória. Cartões virados ao contrário, dispostos aleatoriamente pelo tapete, e sou eu quem tem de encontrar as duas imagens que compõem o par. Vou acertando umas, falhando outras, mas o foco mantém-se nele, que me quer ajudar e me vai indicando alguns cartões. Metaforicamente podemos ir além dos cartões: ele quer-me ajudar a encontrar nele o que não se vê, o que está escondido sob uma máscara de convencionalidade (ou não fosse o reverso dos cartões igual em todos). É a minha capacidade de olhar o que não está lá, o que está mascarado, a minha persistência face às dificuldades e aos avanços e recuos, que está a ser testada num dos jogos mais simples que existem. Ele quer saber se eu o quero verdadeiramente ver, além dos sorrisos fingidos, das gargalhadas vazias, da falsa normalidade, e se estou disposta a não desistir, mesmo quando ele me indica os cartões errados de propósito, como quem simultaneamente deseja e teme ser, enfim, olhado com todos os tons de negro que o acompanham.

- Tens uma bela memória! – diz ele.
- Sim, talvez tenha. Sabes, lembro-me de muitas coisas, como de algumas das nossas brincadeiras ao longo de todo este tempo que já passámos juntos. Às vezes lembro-me até de algumas coisas das quais não falamos porque tu não gostas assim muito de falar! Como quando digo que algumas brincadeiras quase me parecem reais, como se entre nós fossem um jogo mas lá fora uma realidade talvez um pouquinho assustadora…
Sentado no tapete, fica em silêncio a arrumar os cartões, muito lentamente. Não olha para mim, parece absorto nos seus pensamentos. Ao fim de alguns segundos pousa os cartões.
- Ajudas-me?
- A arrumar os cartões? Ou com estas coisas assustadoras que te ficam na ponta da língua mas das quais não falas, como se me quisesses contar mas depois voltasses atrás? Bem… Seja com o que for, estou aqui para ti. Sabes disso, não sabes?
Mantém o olhar baixo durante mais alguns segundos, até que me olha, sorri com ar triste e estende os cartões na minha direção.

A cada semana que passa conseguimos consolidar um pouco mais a nossa relação, sendo essencial que ele se sinta seguro, aceite, compreendido. Passo a passo, acredito que havemos de lá chegar. O tapete, esse, estará sempre pronto para mais uma viagem.


Drª Carolina Franco




quinta-feira, 7 de junho de 2018

Contratos familiares implícitos – “cláusulas relacionais” patogénicas.








Uma paciente com o sonho de ser profissional de música pergunta-me certa vez:

- “Doutor, acha que eu tenho capacidades psicológicas para ir estudar Direito ou Arquitetura?

Respondo-lhe:
-“Lúcia, às vezes questiono-me que implicações pode sentir que pode haver na sua vida se puser em prática todas as suas capacidades na área da Música, a área que me diz com frequência sentir que é a sua vida! Será que a sua verdadeira pergunta é se eu acho que tem capacidades psicológicas para lidar com as consequências que poderão haver na sua vida familiar se decidir dar um lugar privilegiado à Música?”

Vários são os panos de fundo que remetem para as relações humanas, para aquilo que une, desune, para o que agrada e desagrada, para o que dói e para o que dá prazer, para o que aprisiona e também para o que liberta.
A família é o grupo humano matriz do individuo e faz-se constituir, como em qualquer grupo humano, por lógicas conscientes e inconscientes de funcionamento que visam determinada organização e coesão. Afamília é – ou deverá ser - o ponto de partida para a construção de um passaporte identitário que possibilite a cada individuo o embarque noutras viagens, viagens de expansão e diferenciação, de enriquecimento identitário para além daquilo que foi “doado” na e pela família.
Às vezes, contudo, devido a componentes de funcionamento familiar que não são (tão) conscientes- uma espécie de “genética psicológica familiar” que muitas vezes passa de geração em geração, mandatos transgeracionais - é comum surgir na clínica psicológica indivíduos com lógicas individuais desarmónicas, descontínuas, despersonalizadas e desvitalizadas que se repercutem constantemente em momentos de sofrimento psicológico que levam ao bloqueio do estar bem. Estas mesmas lógicas fazem-se por isso acompanhar muitas vezes de sintomatologia com múltiplos fenótipos, nomeadamente sintomatologia depressiva.
Na viagem da psicoterapia, entre psicólogo e paciente, uma viagem investigativa mas também de expansão, transformativa e reparadora, muitas vezes deparamo-nos com “lugares” onde, implicitamente, o sujeito “assinou”, porque também, em nome de uma suposta homeostasia familiar lhe foi dado a assinar, um “contrato” cujas “cláusulas relacionais implícitas” remeteram para a importância de ficar perto (demais), para não se ausentar, para cumprir o esperado, para ocupar o lugar de um outro elemento que possa ter estado de forma insuficientemente.
 Surgem na clínica psicológica muitas histórias de” lugares” que foram ocupados mas que são muitos desconfortáveis para o próprio e em nada potenciadores do seu crescimento, da sua autonomia, da sua liberdade. São uma espécie de “lugares-prisão” onde é importante o sujeito ganhar consciência e ir ficando gradualmente munido de ferramentas narcísicas, de valor próprio percecionado, para se desacorrentar sem culpa.  
Há realmente muitos filhos e filhas que ocuparam o lugar de um pai ou de uma mãe quando estes, por diversos motivos, não souberam ocupar tal lugar. Há filhos e filhas que sentem que têm de cumprir com as expectativas implicitamente e muitas vezes explicitamente neles depositados. Percursos académicos e profissionais escolhidos em nome individual transportam muitas vezes um mandato familiar que é sentido como imprescindível para não beliscar o narcisismo da escultura familiar. Há tantas Lúcias que querem ser músicas mas que sentem que poderão estar a trair o pacto familiar. Optam muitas vezes depois pela arquitetura ou pelo direito. Foi-lhes arquitetado um caminho “sem direitos”. Há tantas Lúcias que querem trabalhar fora da empresa da família mas sentem tal querer como proibido, tantas Lúcias que querem permitir-se ser isto ou aquilo, gostar disto ou daquilo, deste ou desta, há tantas Lúcias que quererem ser, tantas Lúcias que sentem que ao viajar na vida abandonam quem lhes deu vida.
Às vezes parece haver um interdito na concretização de aspirações do próprio por, de certa forma, este sentir que tal concretização poderá ser sentida como uma traição, um ataque a quem se ama. Há uma espécie de sentimento generalizado de não gratidão, uma espécie de hemorragia interna que bloqueia a expansão do próprio. Teme-se a perda do lugar, teme-se a perda do amor de um sujeito relacional que faz-se (querer) amar pelo cumprimento de determinadas cláusulas relacionais patogénicas que fazem adoecer. Fica-se numa espécie de um lugar tanto faz, um lugar onde tanto faz quem se é e onde tanto se faz e se é sem gratificação. Fica-se num lugar condicional à espera da incondicionalidade do amor.
A família nunca deveria ser um lugar de aprisionamento do desenvolvimento do indivíduo. Muitas vezes é sem saber. É como se houvesse uma espécie de ferida familiar que se traduz em determinados movimentos não conscientes dos seus elementos e onde algumas vezes a suposta felicidade de alguém depende da infelicidade de outrem.
A viagem psicoterapêutica, individual ou familiar, tem um papel imprescindível em tornar estes lugares mais conscientes. Ao ritmo do sujeito, há uma condução acompanhada a estes lugares e onde se estimula a construção de um novo lugar – o lugar do próprio dentro de si. Estimula-se a procura de um lugar onde o próprio se possa firmar com segurança, desta vez com a sua assinatura, com a sua marca, a sua identidade.

André Viegas
Psicólogo Clínico
Canto da Psicologia