- Então,
não te sentas no tapete? Já sabes que gosto que te sentes aqui comigo!
Se
falasse, este tapete tinha tantas histórias por contar! Com os nossos pacientes mais novos, este simples amontoado de fibras sintéticas serve de cenário a mil
e uma viagens ao universo infantil, desde fantasias coloridas e alegres a
mergulhos ao que de mais negro pode haver dentro de nós. Quando estamos perante crianças, reina na sala o registo de “faz-de-conta”. É frequente que estas resistam
a partilhar as mágoas que as acompanham, seja porque ainda não sabem como o hão
de fazer, ou porque lhes é difícil fazê-lo abertamente. É absolutamente
essencial calibrarmos os olhos, os ouvidos e o coração até onde os mais
pequenos estão, sendo evidente que um diálogo refletido e ponderado não entra
na equação. Vamos então brincar!
Neste
dia, o cenário era este: o jogo da memória. Cartões virados ao contrário, dispostos
aleatoriamente pelo tapete, e sou eu quem tem de encontrar as duas imagens que compõem
o par. Vou acertando umas, falhando outras, mas o foco mantém-se nele, que me
quer ajudar e me vai indicando alguns cartões. Metaforicamente podemos ir além
dos cartões: ele quer-me ajudar a encontrar nele o que não se vê, o que está
escondido sob uma máscara de convencionalidade (ou não fosse o reverso dos
cartões igual em todos). É a minha capacidade de olhar o que não está lá, o que
está mascarado, a minha persistência face às dificuldades e aos avanços e
recuos, que está a ser testada num dos jogos mais simples que existem. Ele quer
saber se eu o quero verdadeiramente ver, além dos sorrisos fingidos, das gargalhadas
vazias, da falsa normalidade, e se estou disposta a não desistir, mesmo quando
ele me indica os cartões errados de propósito, como quem simultaneamente deseja
e teme ser, enfim, olhado com todos os tons de negro que o acompanham.
- Tens
uma bela memória! –
diz ele.
- Sim,
talvez tenha. Sabes, lembro-me de muitas coisas, como de algumas das nossas
brincadeiras ao longo de todo este tempo que já passámos juntos. Às vezes
lembro-me até de algumas coisas das quais não falamos porque tu não gostas assim
muito de falar! Como quando digo que algumas brincadeiras quase me parecem
reais, como se entre nós fossem um jogo mas lá fora uma realidade talvez um
pouquinho assustadora…
Sentado
no tapete, fica em silêncio a arrumar os cartões, muito lentamente. Não olha
para mim, parece absorto nos seus pensamentos. Ao fim de alguns segundos pousa
os cartões.
-
Ajudas-me?
- A
arrumar os cartões? Ou com estas coisas assustadoras que te ficam na ponta da
língua mas das quais não falas, como se me quisesses contar mas depois voltasses
atrás? Bem… Seja com o que for, estou aqui para ti. Sabes disso, não sabes?
Mantém
o olhar baixo durante mais alguns segundos, até que me olha, sorri com ar
triste e estende os cartões na minha direção.
A
cada semana que passa conseguimos consolidar um pouco mais a nossa relação,
sendo essencial que ele se sinta seguro, aceite, compreendido. Passo a passo, acredito
que havemos de lá chegar. O tapete, esse, estará sempre pronto para mais uma
viagem.
Drª Carolina Franco
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