quarta-feira, 22 de março de 2017

Renhaunhau... e os braços de Violete...







Antes deste agora, pelo abandono dos dias a escrever debaixo de luas cheias e quartos minguantes, eu tinha os braços da Violete para me afastar dos sustos do mar de sargaço que é dar por nós a viver e sem saber como isso se faz. O mundo começava-me num quarto de paredes laranja, roçava pela alcatifa coçada e acabava na varanda onde me assombrava a claridade e os cata-ventos da vizinhança com ornatos de galo em lata. Nesses despertares a ouvir flautas de amolador, tinha um cavalito de pau, um boneco esponjoso que gostava de esbofetear e um quadro onde a Cristina me ensinaria a ler sem dar por ela. Devo ter dado pela minha mãe e mais tarde pelo meu pai, mas tudo me faz palpitar que esse freguês cá do borracho apareceu mais tarde. Fizemos carreira juntos depois, até porque não lhe dar a mão em tempo útil seria como o Sinatra ter ido assentar ladrilho antes de cantar o “My Way”. Pela Susana, só dei por aparecer quando a senti pontapear-me convictamente no meio das pernas e puxar da ranhoca para me afastar. Acabámos todos grandes amigos: eu, o velhadas, a Susana, as músicas do Frank e até as expectorações.

Mas como íamos por anteriormentes, antes de tudo isto só me lembro da Violete, que fazia da lida lá de casa uma coisa refulgente, me pegar a cada malho, limpar a cada indolente cagada (um especial da casa!) e dar-me todo o remanso do seu colo a cada vez que o menino começava com a farfalheira da bronquite asmática, a que ela chamava o “renhaunhau dos gatos”, numa promessa de que o ar me voltaria em livramento a evitar um inconvenientíssimo lerpanço precoce. Como o maçarico não se me apagou, toca a enfiar uma bata cá no malandréu e quando dei por mim estava numa casebre a passar-se por externato, onde me sentia qualquer coisa de estranho por já saber ler. No primeiro dia, berrava eu a dar cabriolas por um regresso redentor da Violete que me livrasse daquele penico que me prendia e do qual não podia tirar a pandeireta, enquanto a Suzy abria descontraidamente a cabeça com um tacão de soca à filha de uma empregada do colégio – a Cândida, uma sopeira de Queijas... com os modos que eram de esperar numa sopeira de Queijas. A melhor parte era ir com a Violete e, sobre as coisas todas, voltar com a Violete, como quem saía da imensa negritude de um túnel para, ao alumiar da saída, encontrar o melhor amigo. O colégio no meio das viagens a dar aos calcantes cortava-me a alma em fiapos. Essa merda do pânico acho que me deitou a luva pela primeira vez quando a Violete me enganou a dizer que ficava lá à nossa espera quando nos deixou no cadafalso do portão ferrugento da entrada. A Suzy estava-se olimpicamente a borrifar e a estudar mais outra cabeçorra para abrir com um tamanco e eu agarrado ao regaço da Violete, a rogar-lhe para que ali se mantivesse majestática à espera que o tormento me acabasse. Claro que quando se vararam dez minutos e voltei à porta para vê-la esfíngica e de guarita, dei com um vazio que me fez borbulhar as lágrimas todas que tinha. Depois, deu-me para arrebites, para andar à solha, jogar à bola e fazer os trabalhos de casa do Hélder, que se fosse um bocadinho mais esperto era asno todos os dias. Até meti no bolso uns amigos que continuam bem guardados. Hoje, acho que era a fingir. Fazia-me de forte, mas só porque sabia de mim para mim que a Violete ia aparecer no final para me safar daquela porra toda.

No outro dia visitei a Violete, que vive com a velhice e mora a passos de onde venho. Falei-lhe de como isto vai e vai bem, obrigado. Escrevo alarvidades em jornais e até já me toparam a dizer cavalidades na televisão. Ela parece-me muito contente e ralou-se com os meus disparates. Reluzimos quando nos vemos. Procurá-la e encontrá-la continua a ser o melhor caminho para voltar a casa. Cair nos braços da Violete é sentir o mundo inteiro segurar-me.
E se os gatos me voltam em mais um renhaunhau e ela não está onde me disse que ia estar?...

FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalisa

(Que outro tonto ia estar aqui a escrever sob luas cheias e quartos minguante?...)



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