quarta-feira, 29 de março de 2017

Um cigarrinho com o Luís Filipe no Tie-Break...







Ter sido estúpido, insolente, inquieto e inconveniente é a prova total e suada de que fui visceralmente adolescente. É-se menino para umas regras, rapaz para outros ditames e já homem para aqueloutras doutrinas, mas no fundo não se é nenhuma dessas coisas e a indefinição caracteriza-nos com a mesma certeza com que o amanhã está-nos cravado no coração a ponta de faca. Ah, a idade do hoje... Tal como o pintor tem a tela em branco para desafiar e o músico o silêncio para romper, o adolescente tem hoje como a maior das promessas e não há um nanosegundo a deixar cair. O mal que fazemos só está na retina das interpretações alheias.


Quando me deu para fumar, ainda acordava cedo, tinha as manhãs gris para cobrir de fumo, os AC/DC e o Luís Filipe Gomes. Não por essa ordem. Fui irmão de todos. Ainda sou. Enquanto encasaco os pulmões, ainda me sobra um solo do Angus para replicar e o Filipe do outro lado do rio para me abrigar das tempestades deste sarilho dos crescimentos que não me largam e me fazem brotar pêlos no orelhame. O Filipe e eu sacamos sempre o miolo do que foi e deixamos umas côdeas do presente do que nos tornámos para depois quando metemos a conversa no tabuleiro. Ele era moreno e vivaz. Eu tinha um tirante a azul debaixo da testa. Ainda temos vestígios de tudo isso, mas interessa-nos sempre o dantes. Sacámos alguma coisa do mundo como dupla de tratantes e isso está nos livros que trazemos cá dentro.

Pisávamos as ruas a correr, jurávamos que isto de sermos eu e ele era um nó de marinheiro indesatável, gostávamos da primavera e de humedecer as excursões escolares com elas. As segundas só nos mordiam quando os leões se esqueciam de deixar uma vitória a nossos pés no dia anterior e o resto era sempre baunilha. A pretexto de desporto, o nosso desprezo pelo mesmo viva no vale do Jamor, sobranceiro ao qual crescemos. Descíamos de raquete na mão. Eu tinha sido mesa-tenista, ele lesa-tenista. Melhor eu tinha feito parte fugaz da Escola de Ténis do Jamor da qual fui expulso por encher a mão pela frente à Maggy Fontelas e o Filipe, surfista dourado, refazia-se de ter abusado da Lúcia numa festa de garagem por, após o beijo, querer enfiar o filete onde não ainda era suposto. Frescuras...

Para curar a falta de ação da cintura para baixo, acalmámos ereções solitárias a descer para o Jamor a brandir raquetes e desembainhadas que vinha aí chanfalho do grosso. Passámos pela mata onde o Filipe tinha enfaixado o bólide do Rui Pedro uns meses antes contra uma árvore que se meteu no caminho (ele ainda não sabia conduzir e fugiu); cruzámos a junção da estrada onde dois anos depois a polícia me obrigou a soprar no balão depois de aspirar um oceano de cerveja (eu ainda não sabia beber mas safei-me porque ser filho do Israel dá jeito) e entrámos no court (sem pagar, escusado dizer) e acendemos cada um o seu cacilho. Primeiro servi de cigarro na boca. Não me saiu mal e o Filipe ficou majestático a vê-la passar. 15-0 cá para o bijou e o primeiro jogo foi meu a cinco passas. Ele empatou quando passou a servir e impressionou-me a refinagem de não cravar o cigarro na beiçola e executar o serviço - gesto técnico dificílimo de dominar – sem o desprender dos dedos indicador e médio da mão direita. Com a terra barrenta do court a ganhar beatas como se fossem gafanhotos mortos de cu laranja SG, a coisa pegou e o primeiro set em 6-6 careceu um esfumaçante tie-break a pulmão aberto. Entre a neblina tabagística, executei uma esquerda perfeita mas com um estalido de diferença: a morder o “naite”. Nem o Lucky Luke disparava mais rápido que a própria sombra até o Morris o desintoxicar e passar a desenhar de outra forma e lhe levar à boca um salubérrimo fio de feno e lhe retirar o estoura-peito. Nisto, achava eu que tinha o Filipe e o “match” no bolso onde só já morava meio maço e assomou pelo court um dos professores da escola de ténis, de todos o mais temido. Como aluno expulso, já antes lhe tinha tirado as medidas. Era filho de puta da parte do pai e um sarrabeco da parte da mãe. Sem pedir licença (no ténis a etiqueta é tão essencial quanto água) resfolegou por estarem “dois cabrõezinhos a fumar no court”. Bradou dois sonoros “o que é esta merda”, expulsou os dois hereges do santuário e, calculámos nós pela sua pinta de conquistador de urinol, que tenha depois tentado seduzir dois cabritinhos da equipa de sub-14. Eu e o Filipe ainda hoje desejamos que ele tenha acabado na pildra por assédio, de preferência coberto por um daqueles negões de roça, dotados de um sarrafo tão grande que poderia até usar relógio.

Um amigo comum topou-me a ser enxotado do nobre complexo do Jamor com o Filipe como quem larga maus hábitos e contou ao “dótór”. Pouco dado ao asneiral, o meu pai rosnou lá por casa, soube da fumarada em sã área desportiva e sentenciou: “Se fazer merda fosse uma cadeira lá na escola, tinhas 20.” Mentira. Perto de muito pirata que conheci, era dez cêntimos de gente e esfolava-me para ter dez. Lá está, depende da retina alheia e a do papá é só para nós.

Como ao lado do Filipe tenho todo o alcoóleo açucarado do que fui e parece voltar num arroubo de energias que julgava perdidas, vou ligar-lhe e é agora que daqui a pouco já não conta. É quase cedo, apetece-me fumar e já sei onde deixei a raquete.
Essa do artista que escreveu “todo o gesto é um sonho morto” e que “não há saudades mais dolorosas do que as coisas que nunca foram” não jogou ténis, jamais se molhou em beijos a Guidas e Lúcias e, de tudo o mais vital, nunca fez merda.

Tristes os que chegam a poetas sem terem sido jovens.

Filipe Dias

Jornalista

O Canto da Psicologia

 
 


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