O ser humano é um ser
biopsicossocial, integra-se numa multidimensionalidade fascinante que torna
várias vezes complexa e desafiante a sua compreensão. Será contudo consensual
pensar numa espécie de unidade funcional omnipresente nestas várias dimensões -
a unidade relacional.
A relação com os outros é um
processo inato ao ser humano e, não obstante de que esta se desenvolva de forma
instintiva, nem sempre somos capazes de entender as suas particularidades, o
que se está a passar a um nível mais microscópico, mais profundo dentro de cada
relação. Sendo o tecido relacional o mais suscetível de criar sofrimento
psicológico ao Homem, o papel da psicoterapia é aqui muitas vezes necessário
para diagnosticar, tornar legendado o que está a acontecer de desarmónico dentro
de cada “célula” relacional, dentro de cada relação. O psicólogo assume pois um
papel de tradutor de significados por vezes ocultos, inconscientes, das várias
movimentações existentes dentro das relações trazidas ao “laboratório” que é o
espaço e o tempo da consulta psicológica.
Uma das premissas principais da
psicoterapia é que a necessidade de estarmos em relação constitui uma
experiência motivadora primária do comportamento humano, e que o contato
relacional com sintonia afetiva é o meio pelo qual esta necessidade é
satisfeita (Erskine & Trautmann, 1996). O
contato refere-se à qualidade das transações entre duas pessoas: a consciência
tanto do próprio, quanto a do outro, um encontro sensível com o outro, e um
reconhecimento autêntico de si mesmo (Erskine & Trautmann, 1996). O contato ocorre interna e externamente
através de sensações, sentimentos, necessidades, atividade sensoriomotora,
pensamentos e memórias que ocorrem dentro do indivíduo e que são registados por
cada um dos órgãos sensoriais (Erskine & Trautmann, 1996). Por outro lado,
quando o contato de sintonia relacional é interrompido, falho, negligente, as
necessidades não são satisfeitas. Se a experiência da necessidade relacional
emergente não é satisfeita, o sujeito irá procurar um mecanismo artificial para
retirar a atenção do desconforto resultante desta necessidade não satisfeita
(Erskine & Trautmann, 1996) podendo comportar desarmonia psicológica.
Todos nós experienciamos
necessidades relacionais que se manifestam nas relações com os nossos outros
significativos. De facto, nenhuma relação seria possível na ausência destas
necessidades relacionais: se não preciso nem quero nada de ti, nem tu de mim,
então, simplesmente, não iremos estabelecer uma relação!
Entenda-se que as necessidades
relacionais são as necessidades próprias do contato interpessoal (Erskine &
Trautmann, 1996). Não são as necessidades básicas da vida - como o alimento, ar
ou temperatura apropriada - mas os elementos essenciais que ampliam a qualidade
de vida e o sentido de si mesmo na relação. As necessidades relacionais são
componentes de um desejo humano universal pela intimidade relacional (Erskine
& Trautmann, 1996).
Frequentemente as nossas
necessidades relacionais não estão ao alcance do nosso espetro de conhecimento
consciente. Comunicam-se contudo, se não tivermos a capacidade de as tornar
legíveis ao longo do nosso percurso de desenvolvimento, através de uma espécie
de vazio, muitas vezes através de uma angústia sem nome que pode levar-nos à
reatividade, à expressão de frustração e agressividade na relação connosco, com
os outros e com o mundo. Sentirmo-nos amados depende pois, de certa forma, da
satisfação destas necessidades relacionais. Quando tal não acontece, é frequente
termos dificuldades em estarmos bem, avançar nos nossos projetos de vida e
desenvolver o nosso potencial humano. A carência destas necessidades pode pois expressar-se,
explanando de forma mais concreta, através do nosso corpo (tensão, somatizações, etc.), dos nossos comportamentos (dependências,
isolamento, fobias), através dos nossos pensamentos
(obsessões, confusão, etc.) ou de forma emocional
(ansiedade, irritabilidade, tristeza).
Solicitamos também muitas vezes,
de forma inconsciente, que o outro
satisfaça estas necessidades. Se elas não forem satisfeitas, ficamos muitas
vezes com a sensação de que a relação não é satisfatória (“Ela/ele não está
para mim”; “Ele/ela não gosta de mim”; etc.) e experimentamos frustração.
Necessidades passadas não satisfeitas (por exemplo da infância) podem reencenar-se
no presente continuamente.
As relações saudáveis são
relações que promovem o crescimento, tanto o meu como o do outro. A
falta e a falha de uma relação humana satisfatória, sintónica às necessidades
relacionais, pode frequentemente ter mais impacto negativo no ser humano que o
trauma agudo (episódio traumático). Uma relação saudável é pois aquela em que
são reconhecidas as necessidades relacionais e às quais se responde de forma
apropriada, empática.
De maneira a termos a capacidade
de as reconhecer em nós próprios, e também por forma a ser possível darmos uma
resposta (mais) sintónica às necessidades relacionais dos outros, assinalamos
uma das 8 necessidades relacionais
mais importantes (as mais assinaladas na literatura da ciência psicológica):
1.Necessidade
de sentir segurança: a experiência
de ter e sentir proteção para as nossas vulnerabilidades físicas
e emocionais. Significa ter a experiência de que as nossas várias
necessidades e sentimentos são humanos, naturais e que podemos mostrar-nos
vulneráveis e ser, apesar disso, aceites. A segurança é a sensação de
simultaneamente estar vulnerável e em sintonia com outra pessoa. A resposta
adequada é providenciar segurança física e afetiva na qual a vulnerabilidade
do indivíduo é respeitada
2. Necessidade
de sentir-se validado, confirmado e importante numa relação: a
necessidade de que outra pessoa valide a importância e a função dos nossos
vários processos experienciais, os nossos processos de afeto, de fantasia, de
construção de significados e que as nossas emoções são por isso válidas.
Validar não significa que estejamos de acordo com tudo o que a pessoa
partilhar. Validar significa que compreendemos
empaticamente a maneira de viver a experiência (de sofrimento) de cada pessoa
e que estamos genuinamente interessados em conhecê-la sem julgá-la.
3. Necessidade
de aceitação por outra pessoa estável, confiável e protetora: quando
eramos crianças tínhamos a necessidade de admirar e confiar nas nossas
figuras de referência: pais, professores, avós, etc.. Necessitamos muitas
vezes, ainda em adultos, contar com outras pessoas significativas das quais
obtemos proteção, estímulos e informação. É uma necessidade que se relaciona
com uma certa procura de orientação por parte de alguém que admiramos e que,
algumas vezes, idealizamos e de quem, também por por vezes, solicitamos uma
espécie de “carimbo de validade/aprovação” (de que estamos a ir bem no nosso
caminho).
4. Reciprocidade:
a necessidade de ter uma experiência confirmada manifesta-se pelo desejo
de estar na presença de alguém que é similar, que nos entende porque teve uma
vivência parecida e cuja experiência partilhada serve como confirmação da experiência
pessoal. É a procura de mutualidade, uma sensação de “é como eu!”. É a
necessidade de ter alguém que aprecie e valorize a nossa experiência porque
sabe, a nível experiencial, como é essa mesma experiência.
5. Ser eu
próprio: é a necessidade de expressar a nossa própria singularidade identitária
e de receber reconhecimento e aceitação desta expressão por parte do outro. É
a comunicação da identidade através da expressão de preferências, interesses
e ideias, sem humilhação ou rejeição.
6. Necessidade
de ser visto (necessidade de impacto): refere-se a ter uma influência que
afete o outro na forma desejada. A perceção de competência de uma pessoa numa
relação surge da gestão das suas ações e da sua eficácia – atraindo a atenção
e interesse do outro, influenciando no que pode ser de interesse para a outra
pessoa e possibilitando mudanças no seu afeto e comportamento.
7. Necessidade
de que o outro tome a iniciativa: refere-se ao ímpeto de fazer contacto
interpessoal. É o contacto com o outro que reconhece e valida a importância
do próprio na relação. É ter alguém que invista no contacto com o próprio
(“Se ele/ela tomou a iniciativa, gosta de mim”).
8. Necessidade
de expressar amor: expressa-se frequentemente através de uma gratidão silenciosa,
agradecimento, dando afeto ou fazendo algo pela outra pessoa.
|
Fonte: Erskine & Trautmann (1996).
Por excelência, o espaço
psicoterapêutico é um espaço onde, entre outros muitos processos, estas
necessidades são devolvidas à consciência do paciente e onde, através de uma
nova relação, saudável, provedora de nutrientes relacionais em carência e, por
isso, sanígena e desenvolutiva, permitirá ao individuo transformar alguns
outros aspetos relacionais menos saudáveis interiorizados, potenciando uma
transferência ou transposição deste modelo relacional saudável para o seu
quotidiano relacional. Compreende pouco a pouco o que falta e o que falhou na
biografia. Fomenta-se uma resignificação e reconstrução. É uma espécie de
cirurgia da interioridade psíquica. O sujeito passa, paulatinamente, a entender-se
melhor e, por isso, a compreender melhor os outros. Faz as pazes com o passado.
Desvitimiza-se. Projeta-se e
implica-se na construção responsável do seu futuro. É mais presente. Pouco a
pouco ama-se mais e, por isso, melhor ama e é amado. Transforma-se, cresce,
melhor auto-regula as suas necessidades perante a sempre à espreita desarmonia
inevitável da vida. É um processo de metamorfose.
Citando e terminando com António Coimbra de Matos (2017), “O enlace de um novo modelo de relação
interpessoal – a nova relação – determina a retoma do desenvolvimento suspenso
e, no seu percurso, a mudança relacional e identitária, tendo em resultado a
cura imanente. Crescer novamente, crescer de novo, crescer como novidade –
inovado; e não renovado; muito menos, repetido ou em continuidade. Crescer com
novos hábitos, novo modo de regular as emoções próprias, nova maneira de se
relacionar com as outras pessoas – mais direto e menos defensivo, mais
autêntico e mais exigente da autenticidade nos outros, mais livre mas mais responsável,
mais determinado mas mais reflexivo, mais ativo mas mais ponderado, mais
crítico e mais criativo; mais generoso, mais corajoso e mais ousado; fazedor de
novos e melhores mundos, que, se não ele, outros habitarão – porque só assim
cumpre o seu destino, o de construtor do Universo de Cultura.”
Dr. André Viegas
O Canto da Psicologia
Referências
Bibliográficas:
- Erskine & Trautmann (1996):
“Métodos de uma Psicoterapia Integrativa”, in Transactional Analysis Journal,
Volume 26, Número 4, Outubro 1996, pp. 316-328.
- Matos, António Coimbra (2005).
Transferência e nova relação na psicose. Psilogos – Revista do Serviço de
Psiquiatria do Hospital Fernando da Fonseca, nº1, vol. 2, pp. 83-90.
- Matos, António Coimbra (2017): Crescer novamente.
Prefácio. In Azevedo, Maria José (2017): Oficina do Psicanalista – Ensaios
sobre a experiência psicanalítica.
Sem comentários:
Enviar um comentário