Estabelecimento
Prisional X (nome fictício). 12h40
de mais um dia cinzento. O cenário é o habitual: a luz branca, artificial,
ilumina a frieza e dureza do aço e restantes materiais. Enquanto tiro notas
sobre o último paciente da manhã, o telefone toca, ao fundo. O guarda atende e ouço-o
dizer: “Vou falar com o Dr. e já te digo qualquer coisa”. Aproxima-se do
meu gabinete. “Dr., o YZ (número
fictício) cortou-se. O meu colega diz que ele está passado, que já partiu a
cela toda. Diz que só fala com o psicólogo”. “E o Graduado, que diz?”,
pergunto. “Para o Dr. decidir se o recebe ou não”. Penso por alguns
instantes. “Okay. Diga ao Chefe de Ala que pode deixar vir o homem.” Dirijo-me
ao gabinete de Enfermagem e dou conta do sucedido. “Esse? Outra vez? Podia
cortar-se de uma vez!”, diz uma das Enfermeiras. Olho-a com censura. “Estou
a brincar Dr.”. “Será que está?”, penso. Volto ao meu gabinete com a
dúvida: “Será que o transbordamento agressivo se deve, apenas, à possibilidade
do recluso lhe atrasar o serviço? Está apenas farta dele? Pergunto-me se o
cortaria ela mesma, se tal não implicasse qualquer consequência para si?” Pergunto-me,
ainda, se a minha indagação não terá que ver com uma projecção minha. A verdade
é que muitos destes indivíduos são extremamente incorrectos, não só entre eles
e para os guardas, mas também para os técnicos de saúde, sendo os elementos da
equipa de enfermagem, por hábito, os mais visados: desvalorização, ofensas e,
pontualmente, agressões, são alguns dos ataques desferidos ao ritmo das
circunstâncias; e que, por mais vezes do que seria desejável, acabam por ferir-lhes
os narcisismos.
Entretanto,
o pórtico apita. Ouço a voz do DANIEL (nome
fictício). Taciturno, balbucia qualquer coisa. Levanto-me e percorro o
corredor. O guarda pede-lhe que se posicione para a revista. Ele diz que não é
necessário; que traz uma lâmina. O guarda ordena-lhe que a entregue. Nega, com
um meneio de cabeça. Diz-lhe ainda que deve ser assistido pelas Enfermeiras.
Volta a negar, com o mesmo gesto. Aproximo-me. “Boa tarde DANIEL. Vamos
falar um pouco?”. “Já não há mais nada a dizer!! Isto acaba hoje”. “Mais
ainda nem falamos, venha lá. Conversamos lá dentro. Entregue a lâmina ao Sr.
Guarda, para podermos ir.”. “Não entrego! Eles põem-me logo ali”,
aponta para a Secção de Segurança. “Primeiro falamos, depois logo se verá o
que acontece”. (...) Cede, hesitante. É fulcral não garantir-lhe o que quer
que seja. Tal pressuposto representaria meio caminho andado para a eventual manipulação
do setting terapêutico. “Tem a
certeza que não quer tratar os cortes?”. “Não vale a pena, que eu
arranco tudo”, afirma com aparente desdém. “Pois, mas pelo menos deixe a
Sra. Enfermeira colocar-lhe uma compressa. Já sabe como é.”. Dirige-se à
sala de tratamentos, reticente. Sabe que não o irei atender sem que proteja a
ferida. Também já aceitou vir ao gabinete e não irá agora recuar. Feita a
negociação por ordem inversa, esta duraria mais 10 ou 15 minutos.
Enquanto
aguardo, percorro mentalmente a sua história e processo de acompanhamento
psicológico. DANIEL é um trintão, com ar de quadragenário, que tem mais anos de
reclusão e institucionalização do que de liberdade: é o epítome do cadastrado.
Outrora, chegou a dominar pátios e alas, pela força. Hoje, na gíria, é uma piranha,
um mero carocho. Poli-toxicodependente desde a adolescência, a espaços e
consoante as circunstâncias intra e extra-muros, o seu continuum sobrevém: consumos - dívidas - conflitos; desnorte após
desnorte, pena após pena, cadeia após cadeia. Atendi-o pela primeira vez,
também em SOS, há algumas semanas. Após alguma resistência aceitou falar um
pouco. Desde aí, tem estado em processo de acompanhamento psicológico, ao qual
tem aderido de forma pouco investida. Todavia, vai aparecendo; algo que já é significativo,
no seu caso em particular.
Ouço
passos. “Está aqui o homem Dr.”, diz o guarda. “Entre DANIEL...
sente-se, por favor.”. Senta-se, suspira e lança o olhar ao chão. Assim
fica durante algum tempo. Agito-me internamente, pois conheço o seu registo
dramático. Tento controlar-me para não me mexer sobremaneira, mostrar-lhe-ia
que exaspero. Espero serená-lo, pelo contrário. Foi a leitura psicanalítica da
situação clínica, que me permitiu pensar esta contra-transferência de
impaciência, mesmo de alguma perturbação, que me impelia a questioná-lo, amiúde,
nestas situações, correndo o risco de ir ao encontro das suas expectativas transferenciais
de teor anaclítico, que sempre procuram criar no outro, de forma passivo-agressiva,
manipuladora, a ideia de que este outro tem o seu destino nas mãos e é seu
responsável último, desresponsabilizando-o a ele do que quer que seja. No fundo,
eis a comunicação subliminar: “vê como me permites sujeitar-me à minha própria
violência e te tornas cúmplice dela”. Ainda
assim, o seu registo caracterial é mais forte, mais imperativo; o funcionamento
narcísico-limite impõe-lhe que teste o setting
continuamente. Sussurra: “Estou farto disto. Já nem você me pode ajudar. Nem
sei para que vim falar consigo”. Numa outra sessão perguntar-lhe-ia porque
continua a vir, quando é chamado, se julga que não o posso ajudar. Já hoje... “deixe-me
primeiro perceber o que se passa, para saber como o posso ajudar”. Fica
perdido, pois esperava a primeira hipótese. Também por isso, não resiste: “Sabe
porque entreguei a lâmina? (...) Na boa... tenho outra.”. Tira uma lâmina
da boca e aproxima-a do braço. “Se eles não me resolverem a vida, desta vez
corto as veias”. Olha-me, provocador, à espera de uma reacção. O tempo pára…
No Estabelecimento Prisional X, onde
as várias dimensões da degradação humana estão presentes, a frequência destas
situações entranha na nossa prática clínica uma frieza por vezes assustadora. Do
Canto Terceiro da Divina Comédia, um dos mais antigos reclusos do Sistema
Prisional costuma vociferar para os recém-chegados: “Ó, Vós que aqui entrais.
Abandonai toda a esperança”.
Avalio o risco. Meço a distância
entre ambos e pergunto-lhe: “DANIEL, não acha que é melhor pousar a lâmina,
para podermos conversar?”. Revolve-se na poltrona, nunca afastando a lâmina
do braço. “Não pouso lâmina nenhuma, enquanto eles não me resolverem a vida”.
Arrisco e levanto-me. Pego num pouco de papel, coloco-o próximo dele. “DANIEL,
coloque aí a lâmina. Se não o fizer, vou lhe pedir para sair. Como vai ser?”.
Olha-me por algum tempo, imóvel. Finalmente, cede e pousa a lâmina, que recolho.
“Diga lá!”, exclama. “Diga-me você. Afinal o que se passa?” Conta
que está desesperado, que não aguenta mais. Que já não dá. Que tem de ser
transferido. Que neste EP já não pode ficar. Está de novo atolado em dívidas. Consumidor
ávido de heroína, acumulou calotes nos dois pavilhões onde esteve
anteriormente. No que se encontra agora - onde acabou de chegar - tem as contas
ainda controladas. Pouco importa. Não falta aí quem queira cobrar as dívidas de
outros, que esteja disposto a tudo para fazê-lo. Na prisão é assim: nenhuma
dívida se esquece e, se necessário, será cobrada em liberdade. São esses que o
atazanam: os cobradores. A dinâmica é simples: quem cobra fica com uma parte da
dívida; dívidas que dobram de semana para semana, de data para data. Aqui, a
conta do juro mais o spread é fácil
de fazer: 100%. Como é frequente, DANIEL está fechado a seu pedido. Para evitar
problemas. Para sua protecção, a bem dizer. Isso significa que está confinado à
sua cela de habitação durante todo o dia, à excepção da hora a céu aberto
preconizada por lei; e que, nestes casos, se transforma muitas vezes em 20min.,
que servem para pouco mais do que tomar um banho e dar algumas voltas entre gradões.
Tomou esta decisão já depois do nível de pressão, de violência, se tornar
insuportável. Quer isso dizer que já foi avisado, ameaçado, coagido, ofendido,
agredido, torturado... não necessariamente por esta ordem e de diversas e
reiteradas formas. Porém, ficar fechado não significa, per si, a eliminação dos riscos, muito menos a não sujeição à acção
dos que o atormentam. As vozes que entram pela janela que dá para o pátio, ou
pelo postigo da sua porta, ditam sempre a mesma sentença, a pior que um recluso
pode ouvir dos seus pares numa cadeia: “chibo!!”. Os bilhetes que entram por
baixo da porta... todos lhe indicam o mesmo: ameaças de sevícias e morte, com
expressões e requintes de malvadez impronunciáveis. E tudo isto é vivenciado
todo o dia, durante dias, semanas, meses por vezes, num espaço que permite
pouco mais de um par de passos em cada direcção. Um espaço onde, no seu caso -
visto até a televisão já estar no prego - a privação neuro-sensorial atinge um
nível desumano e desumanizante. A violência mantém-se; é portanto transversal,
apenas a sua face muda. Para a psicodinâmica individual do DANIEL, onde o
controlo de impulsos é quase inexistente e a passagem ao acto a defesa por
excelência, está então sempre composto o cenário para o descalabro. A ideação
agressiva é assim uma constante, atravessando todo o seu discurso... e esta sessão.
Já a gradação e direcção da mesma são variáveis. Auto-dirigida: da
imperatividade das auto-mutilações, até à ideação suicida semi-estruturada,
expressa em ameaças veladas de teor apelativo-manipulatório; ou hetero-dirigida:
começando na agressão e culminado no homicídio dos seus carrascos. “Olho para as paredes e só me apetece dar
lagartadas nos braços... mas às vezes apetece-me é acabar com isto tudo... pôr
a corda de uma vez...”, recosta-se por uns breves segundos, “também já
não quero saber... já disse o que tinha a dizer, vou é abrir-me e apanhar um
com um ferro, pode ser que os outros pensem duas vezes.. se não chegar pego num
aço... eles que venham, pelo menos um levo comigo, se é para alguém chorar, vai
chorar a mãe dele, não chora a minha.”
Recordo o que Freud referiu na
quarta das suas novas conferências, a propósito da então denominada pulsão de
destruição. Para Freud, esta conheceria três etapas distintas e a sua expressão
violenta teria diversas orientações. Num primeiro momento esta pulsão
dirigir-se-ia para o exterior; num segundo momento, a pulsão, por força de encontrar
obstáculos, retornaria para o interior do indivíduo e transformar-se-ia em
atitudes de auto-destruição; sobre a última etapa afirmou: “tudo se passaria
como se fossemos forçados, para evitar a nossa própria destruição, a destruir
outros”. E se esta dinâmica está particularmente patente do discurso do DANIEL,
é de igual forma generalizável ao modus
vivendis na instituição prisão - aqui, a máxima “ou eu ou o outro” assume
importância major.
Entre desesperança e desalento,
vai ainda projectando todas as responsabilidades da situação em que se encontra;
Director, Chefe de Guardas, TSR, Psiquiatra, Clínico Geral - ninguém escapa.
Sobre a sua própria atitude e comportamentos nem uma palavra. Foi outrem que se
endividou, afinal. Ouço tudo isto circunspecto, fazendo meros e pontuais
apontamentos, que servem para o confrontar com algumas incoerências e tentar esbater
a pretensa ideação suicida - por precaução -, recordando-lhe que não está farto
de viver, que está é farto da situação em que se encontra; o que, no seu caso (cujo
horizonte há décadas não ultrapassa os muros), passa por relembrar-lhe como nos
períodos em que consegue estar abstinente, o seu quotidiano é bem mais calmo. Aparentemente, DANIEL vai serenando um pouco.
Parece sempre que esta atitude pouco flexível e directiva lhe provoca alguma
constrição da agitação e sobretudo da impulsividade mais limite. Com efeito,
parece que cada vez que lança ameaças agressivas auto e/ou hetero-dirigidas e
tendo a não valorizá-las, destituo-as do seu
valor simbólico, enquanto expressões de uma destrutividade imanente, ao mesmo
tempo que lhes invalido um eventual valor prático, enquanto ganho terapêutico secundário.
Neste particular, esse ganho poderia passar pelo agendamento de uma avaliação
de urgência no Hospital Prisional e o eventual internamento subsequente, se DANIEL
se revelasse hábil, o suficiente, para convencer o médico psiquiatra que
estivesse de chamada, da validade e risco da sua ideação agressiva - no fundo,
alguns dias de descanso, longe de todas as suas problemáticas. Esta
directividade, noutros contextos tecnicamente pecaminosa, aqui é pedra basilar
da nossa prática, sobretudo pela fraca capacidade reflexiva, que a larga
maioria dos nossos sujeitos apresenta. Neste caso, por sentir que DANIEL não
tem insight suficiente para pensar a
sua própria destrutividade, raramente lho solicito. Tento apenas afastá-lo das
vicissitudes limites da mesma. Concomitantemente, privo-o da possibilidade de
sequer inferir - consciente ou inconscientemente -, que os reflexos mais ou
menos directos desta, possam condicionar as minhas decisões clínicas e, mais que
isso, os meus pareceres técnicos. No limite, também a nossa prática clínica
conhece, em parte, uma dimensão violenta; ainda que elaborada. Esta asserção é
particularmente fundada no fenómeno contra-transferencial; sobretudo, pelas
implicações que o acting-out e postura apelativo-manipulatória destes sujeitos
provocam na nossa abordagem. Este aspecto, reforçado pela relativização e
banalização diária da violência e coadjuvado pela necessidade última de evitar
homicídios e suicídios entre a população que atendemos, conduz, por vezes, a um
registo hiper-pragmático e focado no controlo do sujeito, condicionando-o. É também neste limbo constante, que se constrói a
relação e se desenrola o processo terapêutico com as personalidades narcísico-limites,
funcionamento mental mais representado no contexto prisional e no qual, talvez,
a dimensão destrutiva e violenta da existência psíquica seja mais norteadora.
Entretanto, a compressa já não é
capaz de conter o efeito da impetuosidade do DANIEL... e o sangue escorre até
ao pulso, do pulso para até ao indicador, do indicador para o chão do gabinete.
Conduzo a sessão para o seu término,
dando-lhe conta do que irá ocorrer. Será conduzido à Secção de Segurança, onde
irá ficar em medidas cautelares, na pendência do processo disciplinar que lhe será
instaurado, pelos danos causados na sua cela. No fundo e ainda que não o diga,
sei que tal resultado não lhe desagrada de todo. É apenas mais uma violência
necessária. Um mal menor. Quando lho transmito, tenta encenar uma reacção negativa,
mas que pouco condiz com o que dirá pouco depois. “Fechado e sem televisão
já eu estou, ao menos ali ninguém me chateia”. Enquanto abandona o gabinete diz-me: “Obrigado
Dr. Depois vá lá à Secção, se não começo a bater mal e… ”. “Quando puder DANIEL.
Já sabe que não me esqueço de si.”.
...
Esta sessão... o caso de DANIEL,
como tantos outros que compõem o quotidiano do sistema prisional, é
paradigmático da perversão desse mesmo sistema, suas premissas e agentes. Já tendo
sido ultrapassada, há longas décadas, a visão exclusivamente punitiva deste
dipositivo de controlo, o sistema almeja, actualmente aos três “rs” -
regenerar, reeducar e reintegrar. Porém, o paradoxo é gritante: privamos da
liberdade homens, mulheres, rapazes, raparigas, por violências impostas à
sociedade (aos seus membros e leis) e depositamo-los num local onde, raramente,
há lugar para outro homem, que não o homo
violentus - expressão cunhada por Roger Dadoun. Um espaço que solicita e
incita o irromper das condutas mais agressivas e destrutivas do ser humano, num
contexto de sobrevivência limite. Fazemo-lo, arrumando-os e escondendo-os,
longe da nossa vista, da nossa percepção, em clara recusa de uma parte da
realidade, ao bom e requintado estilo perverso; esquecendo-nos que, mais tarde
ou mais cedo, voltarão a estar entre nós. Um contexto no qual a violência
impera, é lei; física ou nas suas outras diversas formas, define a vida da e na
prisão.
Aqui,
mais do que em qualquer outro local, a violência ecoa num fundo de
destrutividade.
Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia
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