“Queridos pais,
Sei que a vossa
vida não é fácil e que têm de ganhar dinheiro para eu e
a mana termos computador, roupa e brinquedos. Já sei que a mãe
anda cansada e o pai anda muito nervoso… e quando se enerva fica zangado. Sei que a mãe depois fica assustada e começa a chorar. Tenho muita pena
que a mãe comece a
chorar, fico triste porque sei que a culpa é minha…
Porque estava zangado na escola, a professora mandou aquele recado para
casa que aborreceu a mãe.
Porque quando me zango e não
quero fazer os trabalhos de casa o pai fica irritado e começa a ralhar. Eu prometo que não me volto a portar mal. Ontem
fiquei cheio de medo quando o pai chegou a casa tarde e começou a gritar… devia estar também assustado. Quando a mãe começou a ralhar também… Estavam os dois tão zangados e cheguei a pensar que iam fazer mal um ao outro… Não façam mal um ao outro, por favor.
Quando olhei para a mana, ela estava no canto da sala a chorar. Vocês não repararam, estavam muito
nervosos, mas não
faz mal, eu peguei nela, fomos para o quarto fingir que estávamos a brincar. A mana
perguntou se vocês
se iam separar… Eu
disse que não, mas
se se separarem as brigas param? Estas brigas fazem-me ficar com barulho por
dentro… com raiva… Devo ser mau para sentir tanta
raiva. Devo ser mau por querer que se separem…
Pai desde que
nascemos a vida da mãe
é tomar conta de nós, ela está sempre a dizer isto à avó. Não brigues com ela outra vez… Desculpem se tive aquela nota
de matemática baixa… A mãe tentou estudar comigo e eu não dei valor… tomara ela em pequenina que
tivessem estudado com ela e eu não
soube aproveitar… Gostava
tanto que a nossa família
fosse como a do Filipe… estão sempre descansados, a rir… mas o Filipe não deve ser mau como eu. Não se porta mal, não está zangado. Eu queria conseguir
portar-me bem para todas estas brigas passarem. Não consigo. Nem consigo fazer a mãe sorrir.
Gostava de ser um
menino diferente, capaz de ajudar a sua família. Mas estrago sempre tudo. Gosto muito de vocês.
Miguel”
Esta carta, escrita
por um menino de dez anos que vem ao consultório por ter uma série
de medos persistentes, reflete o que sentem, pensam e acreditam muitas crianças nos dias de hoje. A carta
foi encontrada pela mãe no
meio dos seus livros que, na primeira sessão de pais, me entregou. Comovida mas principalmente
surpreendida diz que não
discute assim tanto com o marido mas que ficou preocupada com o que havia lido.
“Eu só espero que estes medos do
Miguel não tenham nada a
haver com algo que eu e o pai possamos estar a fazer”.
Saúde emocional é gostar de si próprio e conseguir adaptar-se de
forma flexível e positiva
ao meio que nos rodeia. Este meio, no ser humano, começa por ser a mãe
e o pai, logo a relação
com estes é fundamental,
desde que nascemos, para que se conquiste a tão desejada saúde
mental. Tudo o que se passa em criança,
desde bebé, é de extrema importância para a formação de uma auto-estima robusta,
para a construção de um
bom “aparelho de pensar e
acalmar os sentimentos e as angústias”, para a formação da personalidade. A criança, pela sua capacidade de
fantasiar, imaginar, brincar, está
preparada para se ir defendendo, com a ajuda dos pais, de uma dose tolerável de angústia, humana, no entanto, como
o seu sistema emocional é frágil e ainda não está totalmente maturado, se os adultos permitem que exista um
aumento de nível de angústia excessivo ou um excesso de
excitação-inquietação a que a criança não consegue dar resposta adequada, o sistema emocional começa a ceder e surgem os sintomas
ou mal estar emocional que pode ter consequências muito negativas no futuro. Assim, a ideia de que as
crianças não percebem, não entendem porque são pequeninas, não ligam, não podia ser mais enganadora. As
crianças percebem os
medos, as tristezas, as tensões,
as desilusões, as
ansiedades dos pais. Percebem e sentem-nas, tornando-se estas suas também, mesmo que com medo de se
confrontarem com estes sentimentos assustadores, com medo de pesarem ou
entristecerem mais os pais, ou com a dificuldade de explicarem o que estão a sentir, continuem
simplesmente a brincar. Na falta de palavras para explicar as aflições, as crianças tentam mostrá-las através dos comportamentos, muitas
vezes mal interpretado pelo adulto.
Na sociedade atual
parece haver uma espécie
de demissão do estatuto do
adulto e um esquecimento do que é
ser criança,
anulando-se muitas vezes a importante diferença de gerações.
Frequentemente chegam ao consultório
crianças que dormem com os
pais (no meio dos pais ou no lugar de um dos pais, que por sua vez é retirado da sua cama),
perdendo-se a privacidade do casal, da criança e, principalmente, a noção de limites. Por outro lado os conflitos do casal
resolvem-se muitas vezes na presença
dos filhos, o que pela natureza dos assuntos debatidos e pela intensidade das
emoções sentidas é desadequado e angustia
fortemente a criança. A “pele” emocional da criança
é muito mais frágil que a de um adulto e o que
pode parecer uma simples discussão
para os pais é um susto,
uma agitação, um momento
traumático para a criança. Para além destas questões não se pode esquecer a exigência constante da escola a que, como por magia, todas as
crianças devem
corresponder, como se tivessem o dever de mais nada sentir a não ser o desejo de estudar e de
tirar boas notas.
Os pais têm a responsabilidade, e uma
influência em primeira
instância, no
desenvolvimento e organização
do EU da criança. Têm o dever de perceber, acalmar,
apaziguar, tolerar, ajudar a criança
a digerir as suas ansiedades, medos e raivas. São estes que devem receber as emoções difíceis
dos filhos e ajudá-los a
aprender a lidar com elas. No fundo, são
estes que as têm de
proteger. Mas, quando os próprios
adultos não se controlam,
como pode a criança
conseguir fazê-lo?
Ser criança é ser uma pessoa pequenina que tem o direito e a necessidade
de ser respeitada, acalmada, cuidada, considerada. O poder do adulto é muito maior que o da criança. Contra o que um adulto quer, diz ou faz pouco pode
esta fazer. Frases como “És
igual ao teu pai, um preguiçoso”; ou “a tua mãe
não quer saber de nós” são tóxicas e muito destrutivas para
a saúde mental de uma
criança. Muitas vezes são ditas como expressão de raiva pelo conflito
existente entre o casal, mas tem um grande impacto na criança que acredita e integra esta
imagem de si, ferindo gravemente a sua auto-confiança e a sua auto-estima. Naquele momento não está a haver respeito pelo criança, embora haja afeto dos pais por esta. Mas, naquele momento
não está a ser considerada, vista.
Para que as condições de vida sejam garantidas em
qualidade existem quatro pontos essenciais a que todas as crianças devem ter direito:
1.
Direito de ser desejado (e de se sentir desejado
quando nascer) por ambos os pais
2.
Direito a uma mãe capaz e disponível
3.
Direito a um pai presente e adequado
4.
Direito a um espaço - quarto da criança
na sua habitação, ou seja,
à sua intimidade e
privacidade.
Ser criança não é tarefa
fácil… quando os adultos também estão perdidos.
No meio de tanta
aflição e confusão o Miguel teve a sorte de
poder expressar o que sentia, ser ouvido, visto e ver reconhecidos os seus
direitos. Teve a sorte de poder ser tranquilizado e de alterar a imagem que
estava a construir de si próprio.
Mas, quantas crianças não têm essa possibilidade, sentem que não têm
essa importância,
consideração, cuidado por
parte dos adultos que as rodeiam. Quantas crianças estão
apenas a tentar sobrevier, não
vendo reconhecidos os seus direitos, o direito de ser criança, pequenino, com espaço e calma para crescer. E em
que adultos estas crianças
se poderão tornar?
Drª Dina Cardoso
O Canto da Psicologia
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