quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Gostava de ser um menino diferente...








“Queridos pais,

Sei que a vossa vida não é fácil e que têm de ganhar dinheiro para eu e a mana termos computador, roupa e brinquedos. Já sei que a mãe anda cansada e o pai anda muito nervoso… e quando se enerva fica zangado. Sei que a mãe depois fica assustada e começa a chorar. Tenho muita pena que a mãe comece a chorar, fico triste porque sei que a culpa é minha… Porque estava zangado na escola, a professora mandou aquele recado para casa que aborreceu a mãe. Porque quando me zango e não quero fazer os trabalhos de casa o pai fica irritado e começa a ralhar. Eu prometo que não me volto a portar mal. Ontem fiquei cheio de medo quando o pai chegou a casa tarde e começou a gritar… devia estar também assustado. Quando a mãe começou a ralhar também… Estavam os dois tão zangados e cheguei a pensar que iam fazer mal um ao outro… Não façam mal um ao outro, por favor. Quando olhei para a mana, ela estava no canto da sala a chorar. Vocês não repararam, estavam muito nervosos, mas não faz mal, eu peguei nela, fomos para o quarto fingir que estávamos a brincar. A mana perguntou se vocês se iam separar… Eu disse que não, mas se se separarem as brigas param? Estas brigas fazem-me ficar com barulho por dentro… com raiva… Devo ser mau para sentir tanta raiva. Devo ser mau por querer que se separem
Pai desde que nascemos a vida da mãe é tomar conta de nós, ela está sempre a dizer isto à avó. Não brigues com ela outra vez… Desculpem se tive aquela nota de matemática baixa… A mãe tentou estudar comigo e eu não dei valor… tomara ela em pequenina que tivessem estudado com ela e eu não soube aproveitar… Gostava tanto que a nossa família fosse como a do Filipe… estão sempre descansados, a rir… mas o Filipe não deve ser mau como eu. Não se porta mal, não está zangado. Eu queria conseguir portar-me bem para todas estas brigas passarem. Não consigo. Nem consigo fazer a mãe sorrir.
Gostava de ser um menino diferente, capaz de ajudar a sua família. Mas estrago sempre tudo. Gosto muito de vocês.
Miguel

Esta carta, escrita por um menino de dez anos que vem ao consultório por ter uma série de medos persistentes, reflete o que sentem, pensam e acreditam muitas crianças nos dias de hoje. A carta foi encontrada pela mãe no meio dos seus livros que, na primeira sessão de pais, me entregou. Comovida mas principalmente surpreendida diz que não discute assim tanto com o marido mas que ficou preocupada com o que havia lido. “Eu só espero que estes medos do Miguel não tenham nada a haver com algo que eu e o pai possamos estar a fazer”.

Saúde emocional é gostar de si próprio e conseguir adaptar-se de forma flexível e positiva ao meio que nos rodeia. Este meio, no ser humano, começa por ser a mãe e o pai, logo a relação com estes é fundamental, desde que nascemos, para que se conquiste a tão desejada saúde mental. Tudo o que se passa em criança, desde bebé, é de extrema importância para a formação de uma auto-estima robusta, para a construção de um bom “aparelho de pensar e acalmar os sentimentos e as angústias”, para a formação da personalidade. A criança, pela sua capacidade de fantasiar, imaginar, brincar, está preparada para se ir defendendo, com a ajuda dos pais, de uma dose tolerável de angústia, humana, no entanto, como o seu sistema emocional é frágil e ainda não está totalmente maturado, se os adultos permitem que exista um aumento de nível de angústia excessivo ou um excesso de excitação-inquietação a que a criança não consegue dar resposta adequada, o sistema emocional começa a ceder e surgem os sintomas ou mal estar emocional que pode ter consequências muito negativas no futuro. Assim, a ideia de que as crianças não percebem, não entendem porque são pequeninas, não ligam, não podia ser mais enganadora. As crianças percebem os medos, as tristezas, as tensões, as desilusões, as ansiedades dos pais. Percebem e sentem-nas, tornando-se estas suas também, mesmo que com medo de se confrontarem com estes sentimentos assustadores, com medo de pesarem ou entristecerem mais os pais, ou com a dificuldade de explicarem o que estão a sentir, continuem simplesmente a brincar. Na falta de palavras para explicar as aflições, as crianças tentam mostrá-las através dos comportamentos, muitas vezes mal interpretado pelo adulto.

Na sociedade atual parece haver uma espécie de demissão do estatuto do adulto e um esquecimento do que é ser criança, anulando-se muitas vezes a importante diferença de gerações. Frequentemente chegam ao consultório crianças que dormem com os pais (no meio dos pais ou no lugar de um dos pais, que por sua vez é retirado da sua cama), perdendo-se a privacidade do casal, da criança e, principalmente, a noção de limites. Por outro lado os conflitos do casal resolvem-se muitas vezes na presença dos filhos, o que pela natureza dos assuntos debatidos e pela intensidade das emoções sentidas é desadequado e angustia fortemente a criança. A “pele” emocional da criança é muito mais frágil que a de um adulto e o que pode parecer uma simples discussão para os pais é um susto, uma agitação, um momento traumático para a criança. Para além destas questões não se pode esquecer a exigência constante da escola a que, como por magia, todas as crianças devem corresponder, como se tivessem o dever de mais nada sentir a não ser o desejo de estudar e de tirar boas notas.

Os pais têm a responsabilidade, e uma influência em primeira instância, no desenvolvimento e organização do EU da criança. Têm o dever de perceber, acalmar, apaziguar, tolerar, ajudar a criança a digerir as suas ansiedades, medos e raivas. São estes que devem receber as emoções difíceis dos filhos e ajudá-los a aprender a lidar com elas. No fundo, são estes que as têm de proteger. Mas, quando os próprios adultos não se controlam, como pode a criança conseguir fazê-lo?

Ser criança é ser uma pessoa pequenina que tem o direito e a necessidade de ser respeitada, acalmada, cuidada, considerada. O poder do adulto é muito maior que o da criança. Contra  o que um adulto quer, diz ou faz pouco pode esta fazer. Frases como “És igual ao teu pai, um preguiçoso”; ou “a tua mãe não quer saber de nós” são tóxicas e muito destrutivas para a saúde mental de uma criança. Muitas vezes são ditas como expressão de raiva pelo conflito existente entre o casal, mas tem um grande impacto na criança que acredita e integra esta imagem de si, ferindo gravemente a sua auto-confiança e a sua auto-estima. Naquele momento não está a haver respeito pelo criança, embora haja afeto dos pais por esta. Mas, naquele momento não está a ser considerada, vista.

Para que as condições de vida sejam garantidas em qualidade existem quatro pontos essenciais a que todas as crianças devem ter direito:
1.    Direito de ser desejado (e de se sentir desejado quando nascer) por ambos os pais
2.    Direito a uma mãe capaz e disponível
3.    Direito a um pai presente e adequado
4.    Direito a um espaço - quarto da criança na sua habitação, ou seja, à sua intimidade e privacidade.


Ser criança não é tarefa fácil… quando os adultos também estão perdidos.


No meio de tanta aflição e confusão o Miguel teve a sorte de poder expressar o que sentia, ser ouvido, visto e ver reconhecidos os seus direitos. Teve a sorte de poder ser tranquilizado e de alterar a imagem que estava a construir de si próprio. Mas, quantas crianças não têm essa possibilidade, sentem que não têm essa importância, consideração, cuidado por parte dos adultos que as rodeiam. Quantas crianças estão apenas a tentar sobrevier, não vendo reconhecidos os seus direitos, o direito de ser criança, pequenino, com espaço e calma para crescer. E em que adultos estas crianças se poderão tornar?


Drª Dina Cardoso
O Canto da Psicologia


Sem comentários:

Enviar um comentário