- Oh Drª. eu sei que devo vir e falar…mas tenho de lhe dizer que nem sempre me
apetece! Quero estar no meu canto…não quero sair…não quero chatear ninguém e não
quero que ninguém me chateie. Eu peço desculpa por estar a dizer isto as…tinha de
dizer porque é o que sinto Drª.
- E fez bem em dizer e o que sente é compreensível! É normal perante tudo
o que aconteceu e face à dor que se sinta sempre menos mal no seu
“canto” do que em qualquer outro lugar…
- Sim eu fico ali com as minhas coisas, durmo quando quero dormir, como quando
quero comer, se não quiser tirar o pijama não tiro…e pronto estou ali. As minhas
filhas não entendem…estão sempre a ligar - Oh mãe tem de sair!! Oh mãe já comeu? -
Oh mãe isto e oh mãe aquilo…ás vezes até lhes respondo assim mais…olhe mais bruta!
Fico mesmo irritada, mas que coisa deixem-me quieta! Chega a um ponto que já nem
as consigo ouvir…mas são as minhas filhas coitadas, já não sabem o que me hão-de
fazer! Olhe Drª. não façam nada era o que elas deviam fazer…só quero que me
deixem e se possível que a minha hora chegue o mais depressa possível! Já não aguento
esta dor sempre aqui…sempre aqui…sempre aqui! Já chega! O que é que ando cá a
fazer também?? A sofrer…
E como era impossível não compreender a D. Lurdes, falando com o punho fechado sobre o peito,
num lamento tão perturbador e cru que nos arrepiava de cima para baixo quando sentíamos
perder o sangue para os pés. Quem a poderia censurar?
As mãos encarquilhadas pelo peso de 79 primaveras, nem sempre floridas, simulavam gestos de
uma dor que esmagava sem piedade um coração que ainda teimava em bater ao compasso do
sofrimento. As mesmas mãos que ao longo de 60 anos passearam pela pequena vila
enconchadas nas mãos do esposo, conheciam agora todo um vazio dilacerante no qual nada
cabe e já mais nada se pretende agarrar…nem mesmo a vida.
Essa vida que terá resistido à perda de um filho e que agora se vergava sob a perda do seu
companheiro de vida. Não seria então legitimo sentir uma vontade avassaladora de desistir, de
dizer Não, de se encolerizar para com a possibilidade de continuar a ter que viver?
Para quem está ao redor, que também viveu a perda e o seu próprio sofrimento num outro registo,
torna-se muitas vezes difícil gerir o conflito entre a preocupação e a compreensão. A irritabilidade
e a frustração dão as mãos puxando para lados opostos as diferentes formas de viver e sentir a
perda.
O Sr. Manel desapareceu tanto da vida da D. Lurdes como da dos seus 4 filhos, porém cada
elemento verá no espaço vazio deixado por ele uma imagem diferente, que reflectirá a forma
como um elabora o seu processo de luto no seu espaço interno. Desta forma, será tão natural a D.
Lurdes ter dificuldade em confrontar-se com a gradual “normalidade e reorganização emocional”
dos filhos (sobretudo nos almoços de família e eventos), como estes enfrentarão desafios
exigentes em perceber o registo mais depressivo e negativo da sua mãe.
- E quer saber Drª. quando o conheci não lhe achava piadinha nenhuma. É
verdade! Ali andava ele…de vez em quando falava comigo mas…coitadito não
tinha piadinha. E depois olhe…lá me deu a volta. Fez-se bom. Um belo homem!
O meu Manel…
O seu “Manel” que não tinha piadinha nenhuma trazia dentro de si o estandarte de quem
consegue domar uma fera, que não se lhe queria render, mas que porém acabará ao seu lado por
mais de meio século. Essa fera agora ferida recolhia-se em zanga e protesto para com a vida, à
sua toca onde apenas as cinzas e as memórias ainda não lhe tinham sido roubadas. E muito
embora já pouco houvesse pelo que lutar, a D. Lurdes passava vigia à noite não fosse o Diabo
tecê-las e deixar o Alzheimer entrar com pés de lã, e instalar-se na poltrona de veludo de frente
para as cinzas meticulosamente arrumadas sob o oratório. As insónias (essas “animigas” ) que
mantinham tanto as memórias a rodar em cassete contínua como os olhos bem abertos, eram já
parte da rotina vestindo camisa de noite e deixando estender o negro pano do ecrã de cinema
sobre a luz de uma estrutura emocional já frágil e fragmentada. Dormitava-se nos intervalos que
não eram preenchidos de anúncios mas de curtas-metragens agora a preto e branco de terrores
oníricos dignos de Stephen King, com o patrocínio do Brotizolam.
- Drª. ás vezes não sei quantas vezes acordo. Deixei de olhar para o relógio para
não ver como as noites são tão longas…assim..pelo menos não sei quanto
tempo demora a noite ainda a passar.
Ás vezes dou comigo sobressaltada por um som que julgo ainda ser a
respiração do meu Manel ali a dormir ao lado mas olho e…não há nada…fico a
recordar coisas, a chorar e a pedir para ir ver o meu Manel o mais depressa
possível.
A perda ilumina espaços vazios que estão muito para lá daquele lugar na cama, no sofá ou na
grande mesa dos almoços de domingo. A perda obriga-nos a acender uma lanterna interna que
encandeará, em alguns momentos, cantos obscuros e onde o medo, o abandono, a solidão e a
angústia (entre outros) coabitam nas suas formas mais primárias e, por vezes, naifes. Esse
escuro, que infelizmente não é o de uma sala de cinema (embora muitas vezes remeta para
cenários de terror), torna-nos tão frágeis como a criança que um dia fomos que se encolhia na
cama a meio da noite e amarfanhava sobre as mãos os lençóis dos ursinhos, deixando apenas os
olhos à espreita sobre um quarto escuro que parece não ter fim face à imaginação e aos
fantasmas.
A D. Lurdes já foi criança lá longe e hoje, como em todos os dias desde aquele fatídico dia, só
desejava ter o colo do seu Manel que não tinha piada nenhuma mas que conferia sentido à sua
vida, lhe acalentava os medos, afastava os fantasmas, preenchia os espaços vazios, enconchava
a sua mão na dela e…não deixava perceber o quão longas eram as noites!
Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia
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