quinta-feira, 3 de outubro de 2013





A hiperatividade e o Déficit de Atenção 
- Medicação vs. Psicoterapia?

Começa hoje no Porto e o Canto da Psicologia congratula-se com isso pela importância e pertinência de todos os temas ligados à infância, o 14º Congresso Nacional de Pediatria onde o principal objectivo passa por proporcionar o encontro de académicos, cientistas, profissionais de saúde (psicólogos incluídos ) organizações não-governamentais, de instituições públicas, de empresas, da comunicação social enfim, como referem no site “ … e de todos os que se dedicam e empenham em transformar e manter um mundo melhor para as crianças”.
Concordamos inteiramente e aplaudimos de pé.

No entanto, e lendo o programa, pelo menos de acordo com os temas que estão previstos para as comunicações orais e outras, lamentamos que a temática hiperatividade e Déficit de Atenção não esteja incluída no rol dos temas propostos a serem pensados entre as várias especialidades e profissionais presentes, tendo em conta o aumento diário do número de crianças medicadas para fazerem frente a esta "patologia".
E a Equipa do Canto da Psicologia sabe disso. Todos os dias, em qualquer um dos nossos espaços de atendimento, Lisboa, Alcochete e Setúbal, chegam-nos casos, altamente medicados, há anos medicados com as tais de “vitaminas mágicas”. E cada vez mais vamos sendo confrontados com resultados de Avaliações Psicológicas e respectivos acompanhamentos terapêuticos que nos levam a questionar sobre a pertinência e relevância do uso de medicação naqueles casos específicos.

"A hiperatividade e o Déficit de Atenção
- Medicação vs. Psicoterapia?"

Resta-nos, enquanto profissionais de saúde mental continuar de forma sistemática a apelar e sensibilizar, pelo menos aqui pelo Canto da Psicologia, reflexões sobre este tema.

Deixamos-lhe um texto, escrito pela Drª Joana Alves Ferreira, sobre esta problemática.
Convidamo-lo(a) a ler, reflectir e a dar-nos a sua opinião.
Ana de Ornelas
Directora Técnica


“Miúdos de Joelhos no Chão e de Cabeça no Ar”

A hiperatividade e o Déficit de Atenção - Medicação vs. Psicoterapia?

Vamos apresentar-vos a história da Carolina-cabeça-de-vento. A Carolina é uma menina de olhos espevitados, corpo irrequieto e sardas na ponta do nariz, onde habitualmente leva a curiosidade pelos assuntos do meio ambiente e das mais diversas espécies do seu habitat. Esta Carolina tem uma saia rodada, que rodopia com verdadeira destreza na tarefa de ouvir o que não é necessário. É daí, presumimos, que vem o apelido com que o pai carinhosamente chama “Ó Carolina cabeça-de-vento! Vamos lá concentrar-nos e fazer os trabalhos de casa!”.

Este é o momento do dia em que a Carolina estremece. E tenta, usando da sua mestria, para convencer os pais de que há outras coisas mais valiosas para fazer. Depois da escola, o lanche é ingerido vagarosamente e, entre cada trinca que é dada no pão, há um role de perguntas à mãe, um beliscão ao irmão, umas migalhas para agrupar em jeito de desenho ou de letra, porque de tudo se vale a Carolina para adiar o temido momento dos trabalhos de casa!
O que ainda não sabe, mas talvez suspeite, é que a Carolina, enquanto faz as suas investigações durante as aulas, vai deixando para trás os exercícios que os colegas, teimosos, insistem em fazer. E quando a professora a chama a atenção, quando os pais lhe perguntam se prefere vir sobrecarregada ou mesmo quando se aborrecem com ela, o que a Carolina é capaz de responder é que nada sabe sobre o porquê de fazer as coisas desta maneira!

A Carolina-cabeça-de-vento é uma fiel representante de tantos miúdos e graúdos para os quais o processo de adaptação à escola trouxe um conjunto acrescido de dificuldades, muitas vezes, com prejuízo no rendimento escolar, na adaptação ao grupo de pares e na capacidade de entenderem que aprender é, de facto, a melhor coisa do mundo. Para estas crianças, pelo contrário, aprender é uma espécie de bicho-papão da noite, transformado nas letras e nos números que a professora escreve no quadro durante o dia: é que há medida que essas letras e números ganham forma, há uma certeza no seu íntimo de que são grandes demais para caberem lá dentro, onde há tantas outras coisas a acontecer! Há, por isso, um inegável sofrimento para estas crianças, que ora os adultos interpretam como uma birra ou teimosia, ora como um desafio permanente à sua tolerância, mas sempre, sempre vestidos de uma capa de real estranheza, a que os pais dão nome quando perguntam “mas será que o meu filho tem algum problema?”.

E quando a questão se ergue, leva-se os miúdos ao médico. Sim, porque os médicos conseguem resolver estas coisas da cabeça e da desatenção e, no limite, até prescrevem umas “vitaminas mágicas”, que torna mais suportável a ideia de que se está a fazer uma medicação. E, entretanto, também há o Manel, o António e a Beatriz, todos colegas de turma, que agora tomam vitaminas e que até melhoraram o comportamento na aula. Dão menos trabalho e, veja-se, tiram melhores notas!

Esta “nova-onda” com que se diagnostica e medica dá que pensar.

É que miúdos desatentos e irrequietos sempre houve, mas efectivamente não se chamavam hiperactivos. Eram apenas crianças traquinas, cuja inexistência de rótulos obrigava os pais a dar a volta aos bichos-carpinteiros que tinham nas almofadas da cadeira da cozinha, sem recorrerem a vitaminas mágicas. Naturalmente, que os diagnósticos, se existem, é pelo valor real com que se manifestam numa determinada população, mas, importa dizê-lo: apenas em algumas circunstâncias. É importante perceber-se porque é que, repentinamente, numa turma de alunos, metade ou quase metade estão medicados, porque é que tantas vezes se confunde a “cabeça-no-ar” das crianças com o diagnóstico de Déficit de Atenção ou porque é que se faz uso destes conceitos para retratar comportamentos que são uma outra coisa, que não Hiperactividade.

Mais importante do que tudo isso, parece-nos que será compreender o que é que vai dentro dessas crianças e que lugar é esse para onde fogem no momento de aprender. Dar-lhes um espaço onde possam deixar as irrequietudes da mente, que tão bem se espelham nos joelhos no chão, nas conversas com o vizinho da carteira ao lado, mas que serão sempre o espelho do que lhes vai na alma. Talvez assim consigamos preservar a maior riqueza das nossas crianças – a sua espontaneidade. Essa, que vai ficando perdida no terreno onde actuam as vitaminas mágicas, que as anestesiam e as impedem muitas vezes de pensar e de sentir.

Deixo-vos com uma frase que jamais me esquecerei, de alguém que no alto da sua infância compreendeu que não queria mais vitaminas mas sim, “um espaço para deixar mais leve a cabeça”…

O Canto da Psicologia,
Dr.ª Joana Alves Ferreira



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