quinta-feira, 26 de abril de 2018

De geração em geração...







Vivemos atualmente na Era da informação, sendo diariamente inundados por ela... No que ao desenvolvimento infantil diz respeito, bem como às relações pais-filhos, o Dr. Google, redes sociais com posts a cada minuto que passa sobre comportamento infantil, a relação pais-filhos e como melhorar essa relação, programas de TV, programas de rádio, revistas, livros, uma panóplia de informação... Porque é que mesmo assim é tão difícil pôr em prática aquilo que nos é transmitido?
Na nossa prática clínica com crianças e jovens percebemos que são raros os pais pouco  informados, pelo contrário. A partir do momento em que se tornam pais lêem tudo o que lhes aparece pela frente. Assim sendo, porque é que não resulta na prática o que sabem e, muitas vezes, a informação que tão cuidadosamente procuramos transmitir-lhes?

No que respeita à relação pais-filhos não existem soluções prontas. Este é já um “lugar-comum”, mas resta ainda explorar um pouco mais os seus porquês.
Em primeiro lugar porque cada criança é uma criança, cada mãe é uma mãe, cada pai é um pai, cada casal é um casal e cada família tem as suas características e particularidades. Em segundo lugar, observamos que nos momentos críticos toda a teoria, aquilo que se lê e quer aplicar na educação dos filhos é “esquecida”. Naqueles momentos em que a emoção predomina, a tendência dos adultos é para duas atitudes opostas: ou a repetição dos comportamentos dos seus próprios pais ou, ao contrário, a oposição aos mesmos, por medo de cometer os mesmos “erros” que os seus cuidadores o que, geralmente, também não se traduz em resultados positivos para a educação dos mais jovens.

Em consulta surgem-nos assim as seguintes questões:
 “Eu fiz exatamente aquilo que estava lá no site mas não resultou!”, “Eu sei que não se deve bater, gritar, mas ele/ela leva-me ao desespero!”, “Já andou numa/num psicóloga/o, não deu certo, voltou ao mesmo...”, “Já tentei de tudo, e não passa do mesmo...”, “Eu também era assim!”, “O pai dele (a) também era assim!” “A minha mãe diz que eu era igual!”

Explorando um pouco mais percebemos que o que “era igual” diz respeito ao modo como os pais lidavam com eles e... o discurso que lhes era dirigido... as palavras que os seus próprios pais lhes dirigiam.
Tendemos a ter dificuldades onde também tiveram dificuldades connosco, tendemos a repetir o que nos disseram a nós também. Quantas vezes damos por nós a pensar, assim que reagimos de determinada forma ou que nos sai disparado da boca um comentário infeliz: “Bolas! Eu que tanto me queixei disto... e estou a fazer/dizer o mesmo?!”
Quando se passa por alguma mudança, crise familiar, ou quando a criança está num período de passagem de uma fase de desenvolvimento a outra (o que é gerador de ansiedade na criança e potencialmente perturbador da harmonia familiar) o que prevalece é a emoção.  Nessas alturas, tendemos a agir de acordo com aquilo que temos “dentro de nós”.
A falta de paciência ou, inversamente, a disponibilidade para ouvir e falar, a tendência para bater ou, pelo contrário, a possibilidade de controlar os próprios impulsos agressivos, a capacidade para impor limites na medida certa ou, em oposição, a tendência para impor limites rígidos ou frouxos demais, são modos de resposta na relação pais-filhos que, mais do que serem “aprendidos”, ficam gravados emocionalmente e, como mecanismos “automáticos”, são ativados nos momentos em que são solicitados – quando damos conta “já saiu”.

Em linguagem “psi”, são ativados “mecanismos inconscientes” que, enquanto não se tornarem conscientes (ou seja, enquanto não dermos conta do que se passa na nossa mente nesses momentos), vão predominar sobre aquilo que queremos realmente fazer no que diz respeito à relação com os filhos e à educação dos mesmos. E é assim que se dá aquilo que em Psicanálise designamos de “transmissão transgeracional”: a passagem, de geração em geração, do mesmo modo de estar na relação, de gerir as emoções, de resolver os problemas, as crises, os conflitos,... para o bem e para o mal...
Este é um tema muito falado entre “psis”, seja no meio profissional seja no meio académico, mas que habitualmente fica “fechado” nestes círculos. É de nossa opinião que se trata de um aspecto da dinâmica da relação pais-filhos que deve ser dada a conhecer “a quem de direito”.
Nas consultas de psicologia infantil e do adolescente é um aspecto que acaba por surgir naturalmente. Os pais melhor do que ninguém sabem que repetem ou compensam, por isso sofrem, porque o difícil é fazer diferente, mudar... Mas entretanto, a intervenção terapêutica que continua a predominar é com a criança, quando na maior parte das vezes o que deve mudar é o modo dos pais estarem na relação com ela.

Hoje, como referimos no início do texto, há um excesso de informação. O que parece continuar a faltar é um trabalho mais próximo aos pais e educadores para os ajudar a perceber as suas próprias dificuldades na relação com as crianças. Acreditamos que falar das suas dificuldades com elas é falar de si mesmos.
O trabalho que desenvolvemos com pais e educadores passa assim por iluminar muito para além do comportamento desajustado/sintoma da criança. Passa por ajudar os pais a diferenciar, no meio da dificuldade que vivem, o que é seu (faz parte da sua história enquanto filho/a) e o que é do seu filho.
Dentro desta perspectiva, quando falamos em qualidade na relação pais-filho referi-mo-nos à capacidade de estar verdadeiramente com a criança/jovem - disponíveis para conhecê-los verdadeiramente, olhando-os e escutando-os enquanto seres de desejos próprios, necessidades próprias, o que é bem diferente de olhá-los e escutá-los à luz do que nós fomos e das nossas experiências apenas...

Acreditamos que se continua a ouvir pouco as crianças. Ao contrário do que por vezes se diz, de que estamos atualmente perante uma “hiper-valorização da infância”, pensamos , ainda assim,que se continua a ouvir pouco as crianças com “ouvidos de ouvir”, ou seja, disponíveis para conhecê-las verdadeiramente e entendê-las “despidos” de nós mesmos. Só deste modo poderemos ajudá-los a conhecerem-se a si próprios também, a identificar e lidar com as suas próprias emoções, habilidades tão importantes para que possam lidar com as suas dificuldades e responsabilidades sem angústias incapacitantes.

Assim sendo, devemos ter em conta a criança (pessoa!) de quem se fala, em primeiro lugar. Por outro lado, é importante que os pais se orientem para dentro de si mesmos, lancem um olhar sobre si mesmos, com vista a mudar o que há a mudar em si e no seu modo de estar na relação com os filhos. Este é um desafio “e pêras”, mas o olhar “de fora” que concedemos ajuda a clarificar, tranquiliza, ilumina para além do sintoma, desculpabiliza. Muitas vezes têm que ser pensados os sentimentos de frustração, de auto-recriminação, de culpabilização dos pais, quando tendem a julgar que são “maus pais” ou que são eles que não conseguem aplicar as “fórmulas milagrosas”.

Ao invés de fornecer soluções padronizadas, há que respeitar a individualidade de cada mãe e cada pai e conceder-lhes uma compreensão profunda dos aspectos da sua experiência enquanto filhos que os liberte das correntes do passado e que estão a impedi-los de fazer diferente, de sair do ciclo de repetição ou de compensação.
Somos seres de relação, nascemos da relação, vivemos para a relação. Quando mudamos o nosso modo de nos relacionarmos, a qualidade das nossas relações aumenta, quando não mudamos percebemos, mais tarde ou mais cedo, que estamos a repetir tudo o que deu errado em relações anteriores.

Porque aconteceu consigo não quer dizer que aconteça com o seu filho/sua filha... se o olhar como um Ser diferenciado de si mesmo, com desejos e necessidades próprias. É importante que lhe fale com respeito e sempre com a verdade. Pode falar-lhe dos seus erros ou dos erros que outrora cometeram consigo, mas mostrar-lhes como eles são diferentes, o que têm de diferente, portanto...  tudo pode ser diferente.


Dra. Irene Cardoso
O Canto da Psicologia



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