quinta-feira, 4 de julho de 2019

Um dia qualquer...







                Estabelecimento Prisional X (nome fictício). 12h40 de mais um dia cinzento. O cenário é o habitual: a luz branca, artificial, ilumina a frieza e dureza do aço e restantes materiais. Enquanto tiro notas sobre o último paciente da manhã, o telefone toca, ao fundo. O guarda atende e ouço-o dizer: “Vou falar com o Dr. e já te digo qualquer coisa”. Aproxima-se do meu gabinete. “Dr., o YZ (número fictício) cortou-se. O meu colega diz que ele está passado, que já partiu a cela toda. Diz que só fala com o psicólogo”. “E o Graduado, que diz?”, pergunto. “Para o Dr. decidir se o recebe ou não”. Penso por alguns instantes. “Okay. Diga ao Chefe de Ala que pode deixar vir o homem.” Dirijo-me ao gabinete de Enfermagem e dou conta do sucedido. “Esse? Outra vez? Podia cortar-se de uma vez!”, diz uma das Enfermeiras. Olho-a com censura. “Estou a brincar Dr.”. “Será que está?”, penso. Volto ao meu gabinete com a dúvida: “Será que o transbordamento agressivo se deve, apenas, à possibilidade do recluso lhe atrasar o serviço? Está apenas farta dele? Pergunto-me se o cortaria ela mesma, se tal não implicasse qualquer consequência para si?” Pergunto-me, ainda, se a minha indagação não terá que ver com uma projecção minha. A verdade é que muitos destes indivíduos são extremamente incorrectos, não só entre eles e para os guardas, mas também para os técnicos de saúde, sendo os elementos da equipa de enfermagem, por hábito, os mais visados: desvalorização, ofensas e, pontualmente, agressões, são alguns dos ataques desferidos ao ritmo das circunstâncias; e que, por mais vezes do que seria desejável, acabam por ferir-lhes os narcisismos.
                Entretanto, o pórtico apita. Ouço a voz do DANIEL (nome fictício). Taciturno, balbucia qualquer coisa. Levanto-me e percorro o corredor. O guarda pede-lhe que se posicione para a revista. Ele diz que não é necessário; que traz uma lâmina. O guarda ordena-lhe que a entregue. Nega, com um meneio de cabeça. Diz-lhe ainda que deve ser assistido pelas Enfermeiras. Volta a negar, com o mesmo gesto. Aproximo-me. “Boa tarde DANIEL. Vamos falar um pouco?”. “Já não há mais nada a dizer!! Isto acaba hoje”. “Mais ainda nem falamos, venha lá. Conversamos lá dentro. Entregue a lâmina ao Sr. Guarda, para podermos ir.”. “Não entrego! Eles põem-me logo ali”, aponta para a Secção de Segurança. “Primeiro falamos, depois logo se verá o que acontece”. (...) Cede, hesitante. É fulcral não garantir-lhe o que quer que seja. Tal pressuposto representaria meio caminho andado para a eventual manipulação do setting terapêutico. “Tem a certeza que não quer tratar os cortes?”. “Não vale a pena, que eu arranco tudo”, afirma com aparente desdém. “Pois, mas pelo menos deixe a Sra. Enfermeira colocar-lhe uma compressa. Já sabe como é.”. Dirige-se à sala de tratamentos, reticente. Sabe que não o irei atender sem que proteja a ferida. Também já aceitou vir ao gabinete e não irá agora recuar. Feita a negociação por ordem inversa, esta duraria mais 10 ou 15 minutos.
                Enquanto aguardo, percorro mentalmente a sua história e processo de acompanhamento psicológico. DANIEL é um trintão, com ar de quadragenário, que tem mais anos de reclusão e institucionalização do que de liberdade: é o epítome do cadastrado. Outrora, chegou a dominar pátios e alas, pela força. Hoje, na gíria, é uma piranha, um mero carocho. Poli-toxicodependente desde a adolescência, a espaços e consoante as circunstâncias intra e extra-muros, o seu continuum sobrevém: consumos - dívidas - conflitos; desnorte após desnorte, pena após pena, cadeia após cadeia. Atendi-o pela primeira vez, também em SOS, há algumas semanas. Após alguma resistência aceitou falar um pouco. Desde aí, tem estado em processo de acompanhamento psicológico, ao qual tem aderido de forma pouco investida. Todavia, vai aparecendo; algo que já é significativo, no seu caso em particular.
                Ouço passos. “Está aqui o homem Dr.”, diz o guarda. “Entre DANIEL... sente-se, por favor.”. Senta-se, suspira e lança o olhar ao chão. Assim fica durante algum tempo. Agito-me internamente, pois conheço o seu registo dramático. Tento controlar-me para não me mexer sobremaneira, mostrar-lhe-ia que exaspero. Espero serená-lo, pelo contrário. Foi a leitura psicanalítica da situação clínica, que me permitiu pensar esta contra-transferência de impaciência, mesmo de alguma perturbação, que me impelia a questioná-lo, amiúde, nestas situações, correndo o risco de ir ao encontro das suas expectativas transferenciais de teor anaclítico, que sempre procuram criar no outro, de forma passivo-agressiva, manipuladora, a ideia de que este outro tem o seu destino nas mãos e é seu responsável último, desresponsabilizando-o a ele do que quer que seja. No fundo, eis a comunicação subliminar: “vê como me permites sujeitar-me à minha própria violência e te tornas cúmplice dela”. Ainda assim, o seu registo caracterial é mais forte, mais imperativo; o funcionamento narcísico-limite impõe-lhe que teste o setting continuamente. Sussurra: “Estou farto disto. Já nem você me pode ajudar. Nem sei para que vim falar consigo”. Numa outra sessão perguntar-lhe-ia porque continua a vir, quando é chamado, se julga que não o posso ajudar. Já hoje... “deixe-me primeiro perceber o que se passa, para saber como o posso ajudar”. Fica perdido, pois esperava a primeira hipótese. Também por isso, não resiste: “Sabe porque entreguei a lâmina? (...) Na boa... tenho outra.”. Tira uma lâmina da boca e aproxima-a do braço. “Se eles não me resolverem a vida, desta vez corto as veias”. Olha-me, provocador, à espera de uma reacção. O tempo pára…
                No Estabelecimento Prisional X, onde as várias dimensões da degradação humana estão presentes, a frequência destas situações entranha na nossa prática clínica uma frieza por vezes assustadora. Do Canto Terceiro da Divina Comédia, um dos mais antigos reclusos do Sistema Prisional costuma vociferar para os recém-chegados: “Ó, Vós que aqui entrais. Abandonai toda a esperança”.
                Avalio o risco. Meço a distância entre ambos e pergunto-lhe: “DANIEL, não acha que é melhor pousar a lâmina, para podermos conversar?”. Revolve-se na poltrona, nunca afastando a lâmina do braço. “Não pouso lâmina nenhuma, enquanto eles não me resolverem a vida”. Arrisco e levanto-me. Pego num pouco de papel, coloco-o próximo dele. “DANIEL, coloque aí a lâmina. Se não o fizer, vou lhe pedir para sair. Como vai ser?”. Olha-me por algum tempo, imóvel. Finalmente, cede e pousa a lâmina, que recolho. “Diga lá!”, exclama. “Diga-me você. Afinal o que se passa?” Conta que está desesperado, que não aguenta mais. Que já não dá. Que tem de ser transferido. Que neste EP já não pode ficar. Está de novo atolado em dívidas. Consumidor ávido de heroína, acumulou calotes nos dois pavilhões onde esteve anteriormente. No que se encontra agora - onde acabou de chegar - tem as contas ainda controladas. Pouco importa. Não falta aí quem queira cobrar as dívidas de outros, que esteja disposto a tudo para fazê-lo. Na prisão é assim: nenhuma dívida se esquece e, se necessário, será cobrada em liberdade. São esses que o atazanam: os cobradores. A dinâmica é simples: quem cobra fica com uma parte da dívida; dívidas que dobram de semana para semana, de data para data. Aqui, a conta do juro mais o spread é fácil de fazer: 100%. Como é frequente, DANIEL está fechado a seu pedido. Para evitar problemas. Para sua protecção, a bem dizer. Isso significa que está confinado à sua cela de habitação durante todo o dia, à excepção da hora a céu aberto preconizada por lei; e que, nestes casos, se transforma muitas vezes em 20min., que servem para pouco mais do que tomar um banho e dar algumas voltas entre gradões. Tomou esta decisão já depois do nível de pressão, de violência, se tornar insuportável. Quer isso dizer que já foi avisado, ameaçado, coagido, ofendido, agredido, torturado... não necessariamente por esta ordem e de diversas e reiteradas formas. Porém, ficar fechado não significa, per si, a eliminação dos riscos, muito menos a não sujeição à acção dos que o atormentam. As vozes que entram pela janela que dá para o pátio, ou pelo postigo da sua porta, ditam sempre a mesma sentença, a pior que um recluso pode ouvir dos seus pares numa cadeia: “chibo!!”. Os bilhetes que entram por baixo da porta... todos lhe indicam o mesmo: ameaças de sevícias e morte, com expressões e requintes de malvadez impronunciáveis. E tudo isto é vivenciado todo o dia, durante dias, semanas, meses por vezes, num espaço que permite pouco mais de um par de passos em cada direcção. Um espaço onde, no seu caso - visto até a televisão já estar no prego - a privação neuro-sensorial atinge um nível desumano e desumanizante. A violência mantém-se; é portanto transversal, apenas a sua face muda. Para a psicodinâmica individual do DANIEL, onde o controlo de impulsos é quase inexistente e a passagem ao acto a defesa por excelência, está então sempre composto o cenário para o descalabro. A ideação agressiva é assim uma constante, atravessando todo o seu discurso... e esta sessão. Já a gradação e direcção da mesma são variáveis. Auto-dirigida: da imperatividade das auto-mutilações, até à ideação suicida semi-estruturada, expressa em ameaças veladas de teor apelativo-manipulatório; ou hetero-dirigida: começando na agressão e culminado no homicídio dos seus carrascos. Olho para as paredes e só me apetece dar lagartadas nos braços... mas às vezes apetece-me é acabar com isto tudo... pôr a corda de uma vez...”, recosta-se por uns breves segundos, “também já não quero saber... já disse o que tinha a dizer, vou é abrir-me e apanhar um com um ferro, pode ser que os outros pensem duas vezes.. se não chegar pego num aço... eles que venham, pelo menos um levo comigo, se é para alguém chorar, vai chorar a mãe dele, não chora a minha.”
                Recordo o que Freud referiu na quarta das suas novas conferências, a propósito da então denominada pulsão de destruição. Para Freud, esta conheceria três etapas distintas e a sua expressão violenta teria diversas orientações. Num primeiro momento esta pulsão dirigir-se-ia para o exterior; num segundo momento, a pulsão, por força de encontrar obstáculos, retornaria para o interior do indivíduo e transformar-se-ia em atitudes de auto-destruição; sobre a última etapa afirmou: “tudo se passaria como se fossemos forçados, para evitar a nossa própria destruição, a destruir outros”. E se esta dinâmica está particularmente patente do discurso do DANIEL, é de igual forma generalizável ao modus vivendis na instituição prisão - aqui, a máxima “ou eu ou o outro” assume importância major.
                Entre desesperança e desalento, vai ainda projectando todas as responsabilidades da situação em que se encontra; Director, Chefe de Guardas, TSR, Psiquiatra, Clínico Geral - ninguém escapa. Sobre a sua própria atitude e comportamentos nem uma palavra. Foi outrem que se endividou, afinal. Ouço tudo isto circunspecto, fazendo meros e pontuais apontamentos, que servem para o confrontar com algumas incoerências e tentar esbater a pretensa ideação suicida - por precaução -, recordando-lhe que não está farto de viver, que está é farto da situação em que se encontra; o que, no seu caso (cujo horizonte há décadas não ultrapassa os muros), passa por relembrar-lhe como nos períodos em que consegue estar abstinente, o seu quotidiano é bem mais calmo. Aparentemente, DANIEL vai serenando um pouco. Parece sempre que esta atitude pouco flexível e directiva lhe provoca alguma constrição da agitação e sobretudo da impulsividade mais limite. Com efeito, parece que cada vez que lança ameaças agressivas auto e/ou hetero-dirigidas e tendo a não valorizá-las, destituo-as do seu valor simbólico, enquanto expressões de uma destrutividade imanente, ao mesmo tempo que lhes invalido um eventual valor prático, enquanto ganho terapêutico secundário. Neste particular, esse ganho poderia passar pelo agendamento de uma avaliação de urgência no Hospital Prisional e o eventual internamento subsequente, se DANIEL se revelasse hábil, o suficiente, para convencer o médico psiquiatra que estivesse de chamada, da validade e risco da sua ideação agressiva - no fundo, alguns dias de descanso, longe de todas as suas problemáticas. Esta directividade, noutros contextos tecnicamente pecaminosa, aqui é pedra basilar da nossa prática, sobretudo pela fraca capacidade reflexiva, que a larga maioria dos nossos sujeitos apresenta. Neste caso, por sentir que DANIEL não tem insight suficiente para pensar a sua própria destrutividade, raramente lho solicito. Tento apenas afastá-lo das vicissitudes limites da mesma. Concomitantemente, privo-o da possibilidade de sequer inferir - consciente ou inconscientemente -, que os reflexos mais ou menos directos desta, possam condicionar as minhas decisões clínicas e, mais que isso, os meus pareceres técnicos. No limite, também a nossa prática clínica conhece, em parte, uma dimensão violenta; ainda que elaborada. Esta asserção é particularmente fundada no fenómeno contra-transferencial; sobretudo, pelas implicações que o acting-out e postura apelativo-manipulatória destes sujeitos provocam na nossa abordagem. Este aspecto, reforçado pela relativização e banalização diária da violência e coadjuvado pela necessidade última de evitar homicídios e suicídios entre a população que atendemos, conduz, por vezes, a um registo hiper-pragmático e focado no controlo do sujeito, condicionando-o. É também neste limbo constante, que se constrói a relação e se desenrola o processo terapêutico com as personalidades narcísico-limites, funcionamento mental mais representado no contexto prisional e no qual, talvez, a dimensão destrutiva e violenta da existência psíquica seja mais norteadora.
                Entretanto, a compressa já não é capaz de conter o efeito da impetuosidade do DANIEL... e o sangue escorre até ao pulso, do pulso para até ao indicador, do indicador para o chão do gabinete.  Conduzo a sessão para o seu término, dando-lhe conta do que irá ocorrer. Será conduzido à Secção de Segurança, onde irá ficar em medidas cautelares, na pendência do processo disciplinar que lhe será instaurado, pelos danos causados na sua cela. No fundo e ainda que não o diga, sei que tal resultado não lhe desagrada de todo. É apenas mais uma violência necessária. Um mal menor. Quando lho transmito, tenta encenar uma reacção negativa, mas que pouco condiz com o que dirá pouco depois. “Fechado e sem televisão já eu estou, ao menos ali ninguém me chateia”.  Enquanto abandona o gabinete diz-me: “Obrigado Dr. Depois vá lá à Secção, se não começo a bater mal e… ”. “Quando puder DANIEL. Já sabe que não me esqueço de si.”.
...
                Esta sessão... o caso de DANIEL, como tantos outros que compõem o quotidiano do sistema prisional, é paradigmático da perversão desse mesmo sistema, suas premissas e agentes. Já tendo sido ultrapassada, há longas décadas, a visão exclusivamente punitiva deste dipositivo de controlo, o sistema almeja, actualmente aos três “rs” - regenerar, reeducar e reintegrar. Porém, o paradoxo é gritante: privamos da liberdade homens, mulheres, rapazes, raparigas, por violências impostas à sociedade (aos seus membros e leis) e depositamo-los num local onde, raramente, há lugar para outro homem, que não o homo violentus - expressão cunhada por Roger Dadoun. Um espaço que solicita e incita o irromper das condutas mais agressivas e destrutivas do ser humano, num contexto de sobrevivência limite. Fazemo-lo, arrumando-os e escondendo-os, longe da nossa vista, da nossa percepção, em clara recusa de uma parte da realidade, ao bom e requintado estilo perverso; esquecendo-nos que, mais tarde ou mais cedo, voltarão a estar entre nós. Um contexto no qual a violência impera, é lei; física ou nas suas outras diversas formas, define a vida da e na prisão.
                Aqui, mais do que em qualquer outro local, a violência ecoa num fundo de destrutividade.



Dr. Pedro Rodrigues Anjos
O Canto da Psicologia



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