quarta-feira, 11 de setembro de 2019

O Narciso em busca da perfeição tirana...






Narciso era um rapaz plenamente dotado de beleza. Seus pais eram o deus do rio Cefiso e da ninfa Liríope. Dias antes de seu nascimento, seus pais resolveram consultar o oráculo Tirésias para saber qual seria o destino do menino. E a revelação do oráculo foi que ele teria uma longa vida, desde que nunca visse seu próprio rosto.
Narciso cresceu, e se transformou um jovem bonito, que despertava amor, mas era muito orgulhoso e tinha uma arrogância que ninguém conseguia quebrar. Para dar uma lição ao rapaz frívolo, a deusa Némesis, o condenou a apaixonar-se pelo seu próprio reflexo na lagoa de Eco. Encantado pela sua própria beleza, Narciso deitou-se no banco do rio e definhou, olhando-se na água e se embelezando”.

Vivemos uma era de obsessão com a perfeição do eu inatingível, onde não há espaço nem para a falha, nem para o insucesso, temos de ser mais e melhores na procura de integrarmos um ideal do ego. Quando uma figura pública entra em septicemia, com risco de perder a vida, derivado à injeção da hormona Testosterona, faz-nos questionar qual o preço a pagar para atingirmos objetivos rígidos que retiram toda a genuinidade ao ser humano.
O mito do Narciso retrata, precisamente, essa postura que ao estar ensimesmado sobre si próprio, pode, subitamente, perde-se de si mesmo. De tanto olhar para si, afundou-se na sua própria solidão.

O desenvolvimento do narcisismo primário dá-se, sensivelmente, nos primeiros anos de vida, tempo em que os pais reconhecem o filho e nesse exercício de interação, vão projetando as suas perceções e crenças, sobre bebé. Os pais são como um espelho onde o bebé se pode ver refletido e, assim, construir a sua incipiente identidade. A qualidade desta relação precoce irá influenciar a base de amor-próprio que o sujeito irá carregar para o resto da vida. Contudo, se esta base narcísica não for bem nutrida, isto é, se o bebé não tiver sido validado, apreciado, amado, irá viver com um vazio e uma falha narcísica básica que terá consequências no sentimento que tem por si próprio já em adulto, assim como nas defesas que irá assumir no seu funcionamento psíquico.

Narciso, era assim um jovem falsamente embevecido com a sua própria imagem mas, fechado sobre ela, esqueceu-se do mundo ao seu redor pelo que ficou pobre e despido da sua identidade. Uma vez que é na relação, com o outro, que nós contruímos a nossa identidade nos primeiros tempos de vida para que, posteriormente, já na fase adulta, possamos estar seguros da qualidade do nosso amor interno.
Figuras parentais narcísicas irão projetar na criança ideias ambivalentes de que, por um lado desejam que o filho cumpra com todos os seus desejos omnipotentes de sucesso, por outro, acreditam, secretamente, que o mesmo não os conseguirá alcançar; ignorando assim as necessidades afetivas básicas do seu filho, em desenvolver uma identidade própria e genuína. Neste processo, o sujeito vai desenvolver feridas narcísicas primárias de difícil tratamento psicoterapêutico.


Por isso, o narciso não é apenas um sujeito obcecado com a sua própria imagem e vaidade, é um ser que acima de tudo, carece nas capacidades essenciais tais como: a da empatia, do desejo, da curiosidade e da vontade, de compreender o outro e do amar nesse caminho; ainda à procura da sua própria coesão identitária e do seu genuíno self, fica em busca, de atingir um ego superficial que encaixe em modelos de perfeição doentios. Obcecado com o ginásio, com as plásticas, com os diplomas, com os cargos de poder, no fundo sente que só vale porque consegue ter sucesso e porque é percecionado pelos outros como “perfeito”, e, por isso, apreciado e não amado. Aqui está o grande dilema do narcísico, uma vez que não está familiarizado com o ser amado genuinamente, por aquilo que é, pelas suas qualidades intrínsecas, acaba por recorrer à superficialidade externa, exclusivamente, para obter algum reforço na sua precária autoestima. Por este motivo, o narciso não aceita a diferença no outro, o pensar diferente, o ser verdadeiro, o ser imperfeito. Sente que a diferença do outro, fere a sua capacidade de aceitação, apenas um pode estar certo, apenas um caminho existe para percorrermos nesta vida.

Assim, cabe-nos a reflexão: - Será que já não há tempo para amar? Para estimular uma relação intersubjetiva que nasce no berço? As relações com os pais não são íntimas, subjectivas? Temos de arranjar tempo, para amar, para brincar, para viver no presente e desfrutar de estarmos com quem mais amamos, sem julgamentos e criticas.

A alienação é inevitável, quando se procura atingir a imagem que pensamos que os outros querem de nós, leva à diluição identitária nos outros, temos de ter a figura perfeita, o pensamento cópia. Assim não estamos a abraçar a alteridade, a sair do narcisismo primário que apenas concebe o espelho, o igual. Só na aceitação do diferente é que podemos crescer, complementar pensamentos, ideias, mudar as perspetivas, ver em outros ângulos. Aceitar que muitas vezes erramos, que a ciência e a evolução na vida depende de quebrarmos com pensamentos antigos e deixarmos emergir o novo e o diferente.  

Esta posição é uma forma de estar na vida que acaba por ser transversal a tudo, - posso não pensar igual ao outro, mas aceito a sua diferença e considero que poderá complementar as minhas ideias, neste exercício do pensamento, vou criar análises da realidade únicas, repletas significado partilhado e entendido-. A partir deste posicionamento podemos co-construir e evoluir sem nos esquecermos dos afetos bons, do amor.

Congruência é fundamental na vida, assim como, a aceitação da diferença. A diferença, a intersubjetividade de cada um de nós, é o que temos de mais precioso. Sermos únicos e especiais nas nossas idiossincrasias. A alteridade é a aceitação de que não somos cópias de ninguém, mesmo com a pressão eventual, devemos manter a nossa genuinidade e deixar emergir, tão-somente, o nosso true self, consciente e disponível para receber e dar o melhor nesta vida, em todas as nossas relações.





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