quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Estou com dor de barriga....







Sentimos emoções todos os dias, umas vezes mais através do corpo, outras, através da mente. Temos dores de barriga quando nos sentimos nervosos ou ansiosos, às vezes perante uma tarefa difícil de realizar, um teste, uma avaliação no trabalho. Sentimos dificuldade em respirar quando perante uma notícia grave ou chocante para nós nos parece faltar o ar. Podemos ter dores de cabeça fortes na manhã em que vamos trabalhar – não nos apetece ir, podemos recear estar prestes a ser despedidos ou quem sabe, sermos nós quem vai ter de despedir alguém. Às vezes, quando estamos apaixonados, sentimos borboletas na barriga e perdemos o sono e o apetite. Corpo e mente são, como defende Patrícia Câmara (2019), psicóloga e Vice Presidente da Sociedade Portuguesa de Psicossomática,  indissociáveis e, por isso, pensá-los de forma separada pode ter uma função redutora e limitativa quando se pensa no ser humano enquanto pessoa que se relaciona consigo própria e com o mundo envolvente. Quando, por outro lado, pensamos a pessoa e a sua relação com o exterior integrando estas duas componentes – mente (psykhé) e corpo (soma) – estamos a pensar de forma integrada e psicossomática.

Na primeira etapa da nossa vida, que é a infância, Cohen e Marcelli (2006), ambos pedopsiquiatras, consideram que não há nada de mais psicossomático do que um bebé. O corpo ocupa um lugar de destaque no complexo campo das interações com o mundo externo, em que as várias funções fisiológicas (alimentação, tónus estático e dinâmico, eliminação esfincteriana) servem de base para a comunicação com o externo, o qual por sua vez terá o papel de “mentalizar” esse comportamento, através das capacidades de compreensão e antecipação da mãe.

 Para Winnicott (1960), pediatra e psicanalista, esta mentalização faz-se não só através da satisfação de necessidades fisiológicas, como também através do “agarrar/pegar” fisicamente o bebé, tendo em conta não só a sensibilidade da sua pele (ao toque, à temperatura, à gravidade) como o facto de que, para o bebé, nada mais existe ainda para além dele próprio numa relação pouco diferenciada com a sua mãe. As necessidades do bebé, apesar de manifestas fisiologicamente através do corpo, são também psíquicas, não podendo ser satisfeitas de forma mecanizada, implicando uma genuína empatia por parte da mãe.

Quando existem, por outro lado, falhas na relação de cuidado materno-devido à existência de uma depressão pós parto prolongada, uma situação de luto ou crise na família, por exemplo, o sentimento do bebé enquanto ser coeso e seguro do ponto de vista identitário  pode, nesta fase de construção, ser posto em causa. É a falência do continente materno, ou seja, do aparelho psíquico da mãe que, segundo Coimbra de Matos (2003), psiquiatra e psicanalista, impede o bebé de desenvolver a capacidade de leitura dos próprios afetos e interações, o que condiciona o desenvolvimento emocional e simbólico. É neste condicionamento que se adoece psiquicamente, em que o rasto somático é o único registo de uma experiência frustrante ou de privação afetiva (Coimbra de Matos, 2003). Como se só o corpo pudesse sentir.

Nas crianças e sobretudo nos bebés, o sintoma psicossomático assume um lugar privilegiado no sistema de interação mãe/filho, devendo ser considerado nessa perspetiva. Dominada com frequência pelas perturbações do sono e alimentares, mas também pelas perturbações da pele (eczemas), a expressão somática na primeira infância pode contudo ser muito diversificada, devendo ser analisada quanto à sua localização, extensão, importância, entre outros fatores.  A perturbação do sono no primeiro semestre, por exemplo, poderá estar relacionada com atitudes maternas inconscientes contraditórias, conduzindo à emissão de mensagens opostas por parte da mãe ou a uma dificuldade no ajustamento da distância afectiva entre ela própria e o bebé, podendo oscilar entre aproximações  fusionais e afastamentos bruscos. A ocorrência de uma depressão materna durante a gravidez poderá, também, estar na origem destas perturbações, uma vez que limita as capacidades maternas de escuta das necessidades do bebé, perturbando o seu sono (Mazet et Stoleru, 2003). A alimentação, por estar no centro da relação mãe/criança, quando perturbada - através do vómito ou anorexia do segundo semestre, por exemplo - pode apontar para dificuldades na satisfação da necessidade primária de ligação do bebé à mãe ou para dificuldades da mãe em relação ao investimento no seu bebé (Mazet et Stoleru, 2003).

Seja qual for a perturbação de expressão psicossomática, ela parece ser, antes de tudo, o reflexo de conflitos intrapsíquicos dos pais, sendo importante, além de uma atenta observação da relação pais/bebé ou mãe/bebé, escutá-los com atenção e disponibilidade. A história de vida da mãe, em particular, e a forma como percepcionou e vivenciou os laços afectivos com a sua própria mãe e com o seu pai são dados fundamentais na compreensão das expressões somáticas no bebé. A sua resolução depende muitas vezes de um processo psicoterapêutico da mãe, do pai, ou de ambos.






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