quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Luto pela perda do cônjuge...









“Mesmo sem falarmos antes, sabíamos a resposta do outro, como se os pensamentos fossem sempre comuns. (…) As nossas partilhas queriam expressar por palavras diferentes os mesmos pensamentos, sentidos em uníssono. Na realidade, talvez não fôssemos já dois, mas uma nova pessoa”.
                                                                                                          Jorge Biscaia

Ainda que o luto se defina como uma reação adaptativa natural e expectável perante a perda de um ser querido, é um dos acontecimentos de vida mais doloroso vivenciado pelo ser humano. Abrangendo todas as idades e contextos culturais, depois da morte de um filho(a), a morte do conjugue é apontada como um dos acontecimentos vitais mais stressantes em termos de intensidade e duração pelo qual uma pessoa pode passar (Holmes & Rahe, 1967; Windholz, Marmar; Horowitz, 1985; Demi, 1989; Dohrenwend et al., 1994; Parkes,1998; Pringerson & Jacobs, 2001; Ungar & Florian, 2004).

Apesar da maioria das pessoas vivenciarem processos que levam a resoluções adaptativas e integradas do luto, estima-se que para 10% a 20% destas pessoas a experiência de perda seja mais complexa na medida em que, apesar do tempo, e de outras variáveis, constata-se uma interferência notória no seu funcionamento geral – uma incapacidade de reorganização das relações familiares, de amizade ou de trabalho e outras atividades importantes (Payás, A., 2012; Lathman & Prigerson, 2004; Barry, Kals & Prigerson, 2001; Rebelo, 2012), elevando o risco de problemas de saúde física e mental e aumentando a probabilidade de morte prematura, principalmente em casais idosos (Genevro, 2004; Stroebe et al. 2001; Stroebe et al., 2007; Stahl et al., 2016; Fagundes et al., 2019).

Através de uma investigação meta-analítica, concluiu-se recentemente que pessoas viúvas, especialmente os homens, têm um risco 11% maior de mortalidade quando comparadas com pessoas casadas (Manzoli, Villari, Pirone, & Boccia, 2007), muito devido à fragilização da saúde do conjugue sobrevivente, sobretudo os que não dispõem de uma rede social de suporte próxima (Prizanteli, 2008). De forma relacionada, a taxa de morbidade é mais significativa em pessoas viúvas (Parkes, 1998), sendo o tipo de luto mais frequente que precede sintomatologia psiquiátrica associada a um luto complicado ou patológico (Bowlby 1973-2004; Parkes, 2006). O risco de depressão em viúvos/as quadruplica no primeiro ano (Zissook & Shuchter, 1991; Fagundes et al., 2019), verificando-se um aumento do abuso de álcool (Maddison & Viola, 1968) e de psicofármacos - sedativos, hipnóticos e tranquilizantes (Parkes, 1964; Windholz, Marmar & Horowitz, 1985). As principais causas de morte em viúvos/as estão relacionadas com eventos cardiovasculares (Hart et al., 2007; Shor el al, 2012; Moon et al., 2013; Fagundes et al., 2019) e suicídio (Kaprio; Koskervuo & Rita, 1987).

No enviuvamento, a pessoa fica sozinha com o sentimento de ser e fazer parte de uma unidade que objetivamente já não existe (Lira, 2005). Nesse sentido, e como afirma José Eduardo Rebelo (2008), “A perda da pessoa com quem um dia decidimos partilhar toda uma vida constitui um golpe bem rude nos sentimentos, emoções e expectativas que devotávamos ao sentido real da nossa existência: o amor”. É a perda de um projeto de convivência no qual se investiu intensivamente durante uma vida e também, em casos mais ou menos precoces, a perda de um projeto de futuro que se idealizou de forma dual, como “pessoa conjugal”, utilizando o termo de Jorge Biscaia (2010). A “desconjugalização” por morte, descontinuidade abrupta do casal, remete o sujeito para uma angústia extremamente solitária e desorganizadora, tornando o futuro, no momento presente, impensável e “invivível”. Inaugura-se o terrífico tempo da vivência do luto, o tempo da desvinculação desconcertante mas necessária adaptativamente.

A vivência deste tempo comporta não só a perda do outro mas também a perda de uma parte da identidade do próprio que existia através daquela relação. Este desvincular implica a perda e despojamento de posições e papéis, presença e segurança (Gameiro, 1988 referido por Biscaia, 2010). Existe a perda de um amor conjugal mas também a perda de um confidente, de um bom amigo, do parceiro sexual, da fonte total ou parcial da renda da casa (Parkes, 1998), perda dos ideais, da família sonhada, dos bens materiais, do status, da partilha do crescimento do(s) filho(s) (Ducati, 2013).

A perda do cônjuge convoca pois a uma dupla gestão: ora de aspetos emocionais associados à morte, ora da gestão dos ajustes comportamentais, sociais e económicos partilhados pelo casal enquanto unidade (Carr & Utz, 2001; Donnelly & Hinterlong, 2010 ; Ha, 2010 ; Stroebe & Schut, 2010 ; Utz, Carr, Nesse, & Wortman, 2002).
Pouco a pouco, a vivência do luto vai convocando a um reinvestimento nos papéis atuais e ao desafio da aprendizagem de novos papéis de forma não conjugal, de forma individual, à medida que o sujeito se apropria de um novo modelo de mundo, de um novo repertório de soluções para os problemas da “nova” vida (Marinho, Marinonio & Rodrigues, 2007).

De acordo com Rebelo (2012), “As intervenções psicoterapêuticas no luto, levando em consideração a especificidade dos fatores de risco envolvidos, procuram integrar as diversas dimensões: somático-sensoriais, emocionais, cognitivas, comportamentais e físicas. (…) Procura-se não só um controlo sintomático, uma recuperação funcional, mas também um crescimento e desenvolvimento pessoal após uma perda significativa”, num espaço de segurança, confiança, respeito e de não patologização. Acompanha-se a pessoa na adaptação a uma realidade em que nada volta a ser o mesmo, nem sequer o próprio, sendo importante que a pessoa integre, ao seu ritmo, a perda na sua nova identidade para que o luto não se complique e origine situações de maior mal-estar (Payás, A., 2010).






Sem comentários:

Enviar um comentário