“Mesmo sem falarmos
antes, sabíamos a resposta do outro, como se os pensamentos fossem sempre
comuns. (…) As nossas partilhas queriam expressar por palavras diferentes os mesmos
pensamentos, sentidos em uníssono. Na realidade, talvez não fôssemos já dois,
mas uma nova pessoa”.
Jorge Biscaia
Ainda que o luto se defina como uma reação
adaptativa natural e expectável perante a perda de um ser querido, é um dos
acontecimentos de vida mais doloroso vivenciado pelo ser humano. Abrangendo
todas as idades e contextos culturais, depois da morte de um filho(a), a morte
do conjugue é apontada como um dos acontecimentos vitais mais stressantes em
termos de intensidade e duração pelo qual uma pessoa pode passar (Holmes & Rahe, 1967;
Windholz, Marmar; Horowitz, 1985; Demi, 1989; Dohrenwend et al., 1994;
Parkes,1998; Pringerson & Jacobs, 2001; Ungar & Florian, 2004).
Apesar da maioria das pessoas vivenciarem processos que
levam a resoluções adaptativas e integradas do luto, estima-se que para 10% a
20% destas pessoas a experiência de perda seja mais complexa na medida em
que, apesar
do tempo, e de outras variáveis, constata-se uma interferência
notória no seu funcionamento geral – uma incapacidade de reorganização das relações familiares, de amizade ou de trabalho e outras atividades importantes
(Payás, A., 2012; Lathman & Prigerson, 2004; Barry, Kals & Prigerson,
2001; Rebelo, 2012), elevando
o risco de problemas de saúde física e mental e aumentando a probabilidade de
morte prematura, principalmente em casais idosos (Genevro, 2004; Stroebe et al. 2001; Stroebe et al.,
2007; Stahl et al., 2016; Fagundes et al., 2019).
Através
de uma investigação meta-analítica, concluiu-se recentemente que pessoas
viúvas, especialmente os homens, têm um risco 11% maior de mortalidade quando
comparadas com pessoas casadas (Manzoli, Villari, Pirone, & Boccia, 2007),
muito devido à fragilização da saúde do conjugue
sobrevivente, sobretudo os que não dispõem de uma rede social de suporte
próxima (Prizanteli, 2008). De forma relacionada, a taxa de morbidade é mais
significativa em pessoas viúvas (Parkes, 1998), sendo o tipo de luto
mais frequente que precede sintomatologia psiquiátrica associada a um luto
complicado ou patológico (Bowlby 1973-2004; Parkes, 2006). O risco de depressão em viúvos/as quadruplica no primeiro
ano (Zissook & Shuchter, 1991; Fagundes et al., 2019), verificando-se um
aumento do abuso de álcool (Maddison & Viola, 1968) e de psicofármacos -
sedativos, hipnóticos e tranquilizantes (Parkes, 1964; Windholz, Marmar &
Horowitz, 1985). As principais causas de morte em viúvos/as estão relacionadas
com eventos cardiovasculares (Hart et al., 2007; Shor el al, 2012; Moon et al.,
2013; Fagundes et al., 2019) e suicídio (Kaprio; Koskervuo & Rita, 1987).
No enviuvamento, a
pessoa fica sozinha com o sentimento de ser e fazer parte de uma unidade que
objetivamente já não existe (Lira, 2005). Nesse sentido, e como afirma José
Eduardo Rebelo (2008), “A perda da pessoa com quem um dia
decidimos partilhar toda uma vida constitui um golpe bem rude nos sentimentos,
emoções e expectativas que devotávamos ao sentido real da nossa existência: o
amor”. É a perda de um
projeto de convivência no qual se investiu intensivamente durante uma vida e
também, em casos mais ou menos precoces, a perda de um projeto de futuro que se
idealizou de forma dual, como “pessoa conjugal”, utilizando o termo de Jorge
Biscaia (2010). A “desconjugalização” por morte, descontinuidade abrupta do
casal, remete o sujeito para uma angústia extremamente solitária e
desorganizadora, tornando o futuro, no momento presente, impensável e
“invivível”. Inaugura-se o terrífico tempo da vivência do luto, o tempo da
desvinculação desconcertante mas necessária adaptativamente.
A vivência deste tempo comporta não só a perda do outro mas também a perda de uma parte da identidade do próprio que existia através daquela relação. Este desvincular implica a perda e despojamento de posições e
papéis, presença e segurança (Gameiro, 1988 referido por Biscaia, 2010). Existe
a perda de um amor conjugal mas também a
perda de um confidente, de um bom amigo, do parceiro sexual, da fonte total ou
parcial da renda da casa (Parkes, 1998), perda dos ideais, da família sonhada,
dos bens materiais, do status, da partilha do crescimento do(s) filho(s) (Ducati,
2013).
A perda do cônjuge convoca pois a uma dupla gestão: ora de
aspetos emocionais associados à morte, ora da gestão dos ajustes
comportamentais, sociais e económicos partilhados pelo casal enquanto unidade (Carr & Utz, 2001;
Donnelly & Hinterlong, 2010 ; Ha, 2010 ; Stroebe & Schut, 2010 ; Utz,
Carr, Nesse, & Wortman, 2002).
Pouco a
pouco, a vivência do luto vai
convocando a um reinvestimento nos papéis atuais e ao desafio da aprendizagem
de novos papéis de forma não conjugal, de forma individual, à medida que o
sujeito se apropria de um novo modelo de mundo, de um novo repertório de
soluções para os problemas da “nova” vida (Marinho, Marinonio & Rodrigues,
2007).
De acordo com Rebelo
(2012), “As intervenções psicoterapêuticas no luto, levando em consideração a especificidade dos fatores
de risco envolvidos, procuram integrar as diversas dimensões: somático-sensoriais,
emocionais, cognitivas, comportamentais e físicas. (…) Procura-se não só um
controlo sintomático, uma recuperação funcional, mas também um crescimento e
desenvolvimento pessoal após uma perda significativa”, num espaço de segurança, confiança,
respeito e de não patologização. Acompanha-se a pessoa na adaptação a uma
realidade em que nada volta a ser o mesmo, nem sequer o próprio, sendo
importante que a pessoa integre, ao seu ritmo, a perda na sua nova identidade
para que o luto não se complique e origine situações de maior mal-estar (Payás,
A., 2010).
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