Não o fiz porque sim…era
mesmo o que queria fazer. Foi mesmo a vontade que tive ali. Já andava dentro de
mim esta coisa…essa ideia e acho que pensei mais do que uma vez nisso mas foi
ali…foi naquele dia. Era mesmo aquilo.
(…) Agora continua tudo
dentro da minha cabeça! A diferença é que a minha mãe está sempre preocupada
com aquele dia. Com aquilo que fiz…ás vezes parece uma coruja como se tivesse a
tentar olhar para dentro da minha cabeça. Já o meu pai não sei…acho que parece
igual…não sei (Alexandre 12 anos)
Nunca pensei…ele??Porquê
ele?? O que lhe passou pela cabeça?? Sempre foi uma criança impecável! Nunca
deu muito trabalho, comparando com os irmãos…foi o mais fácil embora sendo o
primeiro de todos os filhos. Foi um
choque…uma surpresa horrível e inimaginável.(…) Agora…dou comigo a tentar
ver-lhe palavras escritas na cabeça que me digam alguma coisa…sei lá. Morro de
preocupação…parece que estou sempre em alerta! (Mãe do Alexandre)
O Alexandre
entre lágrimas que não corriam pelo rosto, falava no encolher de um sofrimento
que há muito habitava o seu T0 (e mais uns tantos anexos construídos no então)
interno. Contava de olhar fixo no chão e com o rosto sobre as mãos, aquele que
achava ser o único momento em que alguém gritara o seu nome de forma diferente.
Momento no qual o seu desespero falara mais alto e o impelira a um
desprendimento abrupto e precoce de uma realidade que parecia demasiadamente
insuportável e pungente. Com um bilhete estampado no fundo de um frasco de
comprimidos religiosamente arrumado no pechiché da avó, o Alexandre parecia ter
encontrado uma saída para o seu sofrimento que culminara naquela véspera…”curiosamente” véspera de natal.
Nem olhei pá porcaria do
espelho ali mesmo à frente! Olhei pó fundo do frasco e… tive vontade de poder
ver lá a minha cara! Que estupidez isto mas…foi isto mesmo que pensei!
Entre as várias
conversas com o Alexandre e entre tantas palavras, choros mudos e coisas não
ditas mas expressas, ficava latente a forma como o registo depressivo se vinha
instalando e descolorindo as paredes do seu T0, outrora pintalgadas de mil e
uma cores que só a infância catalogara. Rasgavam-se
momentos como posters desinteressantes na parede, de jogos de futebol sem público,
de histórias de aventuras empolgantes de recreio interrompidas por chamadas
sempre urgentes e teimosas, de cadeiras vazias nas festas da escola, de “porque
sim” a porquês que apenas serviam para ficar ali no carro só os dois só mais um
pouco, e de sorrisos e cavalitas em terras distantes em tempos em que o mundo
ainda conhecia heróis, dragões e guerreiros. O Alexandre falava de uma infância
tão longínqua que parecia já velha, fragmentada em memórias a longo
prazo recuperadas a custo e em esforço. Faltara-lhe um colo
vindo de dentro, suspenso em braços fortes por fora, suficientemente bom que
perdurasse, fizesse crescer, cair e levantar. Um colo
que amanhecesse e anoitecesse sobre um olhar de amor, expectativas e sonhos que
como se de uma mão se tratasse e segurasse sempre na sua a cada desafio, tropeção
e conquista.
Parecia ter
havido sim uma espécie de colo amputado de
um braço, e nesse espaço tinha desaparecido a exclusividade, a espontaneidade e
força para cinco minutos de recatez no quarto das mil e uma cores. Cinco
minutos que já não se contavam e não faziam a cova de outros tempos na borda
cama, aquando de um adormecer que já não precisava de um conto mas um sim um
ponto apertado de afecto sobre um vínculo enlaçado ao primeiro choro. Esse cólo quase…quase inquestionável…fazia o que podia…e tinha
gritado naquela noite o nome do Alexandre mais do que o que as cordas vocais
permitiam. O grito tinha ainda hoje um eco atroador naqueles ouvidos de mãe,
que tornara o coração pequeno e excessivamente apertado para tanto
desespero, ancorando em fateixa pesada uma culpa esmagadora. Inquestionável e
legítimo eram os desejos desta mãe: que seus ouvidos tivessem ouvido os
pezinhos de lã de uma tristeza demasiado longa a persistente, por detrás do silêncio
que carregava uma mochila de livros e cadernos; que os seus olhos tivessem
traduzido o olhar funesto escondido atrás do telémovel agarrado às mãos nos “serões”
de sofá; que o seu nariz tivesse cheirado o esturro das dores de cabeça e
barriga nos jantares de família…que todos os sentidos e mais alguns lhe
tivessem mostrado que no sapatinho nº 36 do Alexandre havia um enorme desejo de
ser novamente importante, engraçado, ouvido…de ser amado.
Não tivesse o
Alexandre nome de guerreiro e poderíamos quase acreditar que esta poderia ser
apenas uma estória triste…mas…
Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia
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