quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Os dias e os tempos em 160 km...







O melhor de ser da cidade é ter terra. Melhor ainda que o melhor: ir à terra. Superior até ao melhor que o melhor: arrancar dos subúrbios, esventrar a cidade num Ford Granada e ir até à terra quando já havia ponte sobre o Tejo, mas as autoestradas morriam em Vila Franca. Era onde um novo mundo pastoril começava. Tinha 160 km de comprido, mas muita palavra de largura.

Antes de lançar os seus impantes 3.000 de cilindrada ao asfalto, o Ford Granada verde oliva abria portas a todos os credos, preferências e tiques dos Dias e parentes por afinidade. Havia guerras de PCP a CDS e jogavam-se dérbis do pendura ao banco de trás. Até fazia eco como se fosse em hóquei de pavilhão, tamanha o espaço do bólide. Foram tantas, mas ficou uma particular, que se calhar é amálgama de várias. 1982, o Granada dos Dias ainda não meteu a quarta e a coisa já ressuda a disputa em estreias absolutas nos meus ouvidos. Uns não olham para aquele campo com galinha granítica de asas estendidas à porta, na fronteira entre Carnide e Benfica, e outros desdenham do recinto detonado com vidraças partidas a condizer mais adiante, onde o Lumiar pede licença para continuar Lisboa ao Campo Grande - a Susana vai aos pés da mãe no banco do pendura. Exatamente aí, acaba o dérbi e a fricção política entra de supetão. O pai e o tio saudosos do tempo da outra senhora condoem-se a perguntar porque é que o pedestal de mármore rosácea do venerável Marechal Carmona já só tinha a armação. O padrinho enamorado do 25 de abril e mal refeito da pancada do PREC acha que até fica melhor assim - a Susana já se recosta no colo do tio.




A estação muda a crepitar do Paulo Alexandre para a Tonicha e na Reta do Cabo surge uma acalmia na forma de consenso sobre os dias melhores que já viu a futura carcomida Estalagem do Gado Bravo. Dá-se continuidade ao tema ao passar o Porto Alto, admiram-se os arrozais de Benavente e há a paragem em Salvaterra para apanhar a tia chata que não está para ir no seu Morris e aproveita a espaçosa boleia. Se se diz que é para a direita ela diz que é para a esquerda e seguimos todos com a sua insuportabilidade inescapável - a Susana nem olha para a tia e encosta-se a mim. Os cavalos olham de soslaio para Marinhais, apontam a Muge, trespassam Benfica do Ribatejo e há uma trégua em Almeirim a Sopa da Pedra - a mesma que a Susaninha vomita em Vale de Cavalos quando a conversa já desagua em Sá Carneiro mártir que o padrinho garante ter sido uma grande perda para... os reaccionários. O pai embirra com o sobrinho e acusa-o de comunagem desavergonhada que aprendeu lá com a maralha da EDP. O primeiro defende que defendeu a Guiné e que o segundo nem pôs os calcantes no Ultramar. O segundo ri-se e diz que esteve no Largo do Carmo com o Salgueiro Maia e se o primeiro pudesse tinha ido buscar o professor Marcello ao Brasil. A mãe e a tia (irmãs desavindas) adormecem ao som de um golo do Jordão no barbante do Espinho - o que considero uma afronta - e o meu tio volta, 21 anos volvidos, a asseverar que o Eusébio foi gamado aos leões numa jogada súcia que não interessava nem ao pirata. O meu padrinho faz descaso e garante que o Espinho ainda vai dar a volta ao marcador - a Susana vai ao colo do pai, a fazer-se ao volante e há quase um fim do mundo em cuecas dentro do Granada. Há um azedo cortar de relações que vai da Chamusca até Vila Nova da Barquinha depois que o vira e mexe tocou as ex-colónias, o passado de armas e a família Dias só reassume contornos de clã em Rio de Moinhos, à volta de copos cheios num café com aroma de adega. A mãe e a tia dormem no carro - a Susana desaparece por instantes, há um desespero hediondo em segundos e ela reaparece com um cachorro pulguento nos braços. O meu pai cumpre à risca o que comigo combinou, compra-me o último Recruta Zero e duas saquetas do Mundial de Espanha - edição da Panini, naturalmente. Abrantes já era e Alferrarede também até que todos se aguentam à tortura medieval da estrada das curvas e contra curvas até ao mourisquense destino. Há sacos de serapilheira e garrafões revestidos de verga a sair da bagageira e um "até à volta" - a Susana chama qualquer coisa à tia depois de tentar sair do carro em andamento.

Acaba a viagem. Pior: acaba a discussão. 

Percebi depois que o jornalista em mim vem desses ribatejanos 160 km. Entre duas opiniões, pode haver uma a mais, mas estou cá para todas. Ah, se estou. E podem vir dos Cinco Violinos que se finaram, passar pelo Nené que não sujava os calções, até à nossa crónica incúria governamental. Eu aguento-me ao biscoito. 


Filipe Alexandre Dias
Jornalista



P.S.: Nas autoestradas nada se aprende. Vão por mim.
P.S.S: A Susana é minha irmã e ainda deve andar a mudar de posição enquanto vos escrevo.



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