quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Judí e as coisas que não são bem assim...









Quando o Boneca passou por mim como um foguete de três estalos e a meteu direitinha de canhota junto ao poste mais distante, eu só queria que o alcatrão me engolisse. Ficámos miseravelmente fora do campeonato da escola e a Judí era a pior testemunha da minha desgraça. Logo naquela tarde de sol a pino, em que estreei as minhas luvas pretas adornadas a vermelho-fúria e levei umas galdinas acolchoadas para me dar a requintes felinos entre os postes e arrancar "bruás" de todas aquelas gargantas em idade de mudança de voz. A baliza era a minha casa e ali só entrava quem eu queria, mas o Boneca levou-me a melhor. Podia ser pior. Podia ter engolido um frango dos bojudos se ela me passasse por entre o pername, mas ver o Boneca partir para a festa e levar o 9º7ª em frente na prova encheu-me da mais adolescente vergonha. E a Judí a virar costas...

A Judí era a causa maior de todos os meus frémitos. Por ela engasgava e tremia. A Judí tinha rosto trigueiro, sorriso de cinco mil paus, que era para mim todo o dinheiro do mundo. Fazia-a rir logo pela fresca, antes de subirmos a ladeira até à escola. Ir ao lado da Judí era flanquear realeza e ser dono de todos os ciúmes. Conhecemo-nos a tirar o horário na paredão da cantina. Apontámo-lo nas costas um do outro por graça e marcámos encontros regulares entre todos os toques. A minha devoção atingiu proporções de meliante, ou não tivesse aliviado umas notas azulecas da carteira do papá para impressionar a Judí a gomas, matinés no Palmeiras e incursões pela cidade que parecia tão longe dos nossos insulares subúrbios. Não apanhar a Judí no autocarro - angústia de horror. Fins de semana tão longos - faziam-me sentiar crescer o buço com a facada da espera porque eu era do outro lado do vale. Férias - era não sentir o sabor da brisa, não entender o sol e renegar o mar. Regresso - promessa de Judí e do beijo que esperava soltar-se. A Judí perdoou-me perder o desafio com o Boneca, que a cobiçava debaixo do meu buço. A derrota morreu ali, o futebol voltava a ser reduzido a um jogo. Passámos a ser eu e a Judí atrás do pavilhão de mecanotecnia e até a professora Auzenda, uma megera do pior, me parecia a mais encantadora visão depois de cada bate-pé em que só valia a Judí e eu.



Perdi a Judí depois, pelas incontáveis vezes que a deixei à minha espera por aí e sem porquê. Sei que a encarei com vergonha maior quando a escola já não nos juntava. Nada para dizer e cada um a crescer para seu lado.

Os anos vararam e, ao atravessar da rua da cidade outrora distante, tive os olhos da Judí por cima do mesmo sorriso, a meio lábio, a olhar para mim do outro lado de um espelho que passou. Agora sou eu que me prendo a um instante, na esperança que ela volte a passar a cada vez que um lado me separa do outro. Se ela reaparece e pára, vou perder-me em elipses porque ela tem rosto de trigo, mas confessar-lhe-ei tudo o que aprendi que mais não é que as coisas não são bem assim. 

Aposto que ela volta a rir só para mim quando lhe abrir a boca. Lá dentro, tenho uma goma.


Filipe Alexandre Dias
Jornalista


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