quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Lição de ginástica Cueca...






No livramento de um debruçar para Carcavelos, não tínhamos horas. Ou melhor, as horas nós é que as fazíamos e o velho e eu éramos um relógio parado a apontar exatamente para repórter e um quarto - ele era repórter, eu o resto e o que vinha a seguir que viesse quentinho porque tínhamos sede de mar e raiva a copos cheios. O velho contava histórias de Moçambique já embaciadas na janela da sua saudade e eu falava-lhe de mais uma paixão a apagar-se em mim. Numa tarde dessas, enquanto bebíamos umas e outras, ele levantou o sobrolho, deixou a descoberto todo o azul que lhe desenhava as radiais e sentenciou que no dia seguinte seríamos outra vez filhos do areal, mas menos majestáticos. Isto da vida estava para mexer mais e pensar menos e ele fora homem de ação e pouco béu-béu.

Dia a seguir, repórter e um quarto da tarde e outra vez Carcavelos, eu e o velho. Queria espraiar-me no bar e discutir com ele aquele livro do Stanislaw Ponte-Preta e os porquês dos tantos porquês que há numa mulher (matéria inflamável...) a cigarros e cevada quando o velho dispara sobre o areal como um possuído. O espetáculo que foi vê-lo descascar-se e exibir o carcaçame ao sol perseguir-me-á para sempre. Tirou a camisa de caqui com rapidez notável, estufou o peito, atirou calças e sapatos para o ar com desprezo e ficou com uma sunga indízivel, azul-bebé com uma lista amarela a cobrir-lhe as vergonhas. 

"Olha bem para estes restos de uma antiga opulência", sentenciava a ufanar-se dos vestígios de bícepes e das ruínas de peitorais. A malta passava, ria e a situação para mim era ver-me sentado na sanita de uma casa de banho de luz presencial subitamente apagada e a esbracejar em vão no escuro sem me poder mexer. Porreiro...

No embaraço, já a descambar para o "tirem-me daqui que não sei andar nisto", vi o velho galopar para o quebra-mar, o meu nome ecoar à distância e arranquei a ver-lhe as plantas dos pés alternarem pelos ares. "Isto não é ginástica sueca, mas cueca, como dizia o Vasco Santana", ofegava ele, a recomandar os pulmões carcomidos pelo tabaco, como quem volta a impor ritmos perdidos. Foram saltos para lá, calcanhares nas palmas das mãos para cá, a minha vergonha para acolá, os poucos fios de cabelo do velho a esvoaçar por acolí com a devida justaposição de flexões de tronco à frente para acabar a comer areia, agachamentos para o trícep no murete, abdomniais oblíquos (nem sabia que ele sabia o que era, mas é no que dar subestimar a terceira idade) e mais um sem número de merdas a que o velho, sempre de esqueleto a agitar-se se entregava com eletricidade de "personal trainer" quando eu já tinha apagado o maçarico há muito. Bufava sobre a toalha a ver a roupa do velho dispersa na praia e a topar-lhe à distância a careca ser-lhe engolida por uma onda. 


Depois de eu dar uma cacholada para vingança, já o velho estava há muito no WindSurf café, típico bar amadeirado, de pranchas, areia e sal. De um lado ouve-se ska, do outro o rebentamento do mar. Pouso os ossos na cadeira e o gajo raspa-se para a casa de banho. No "entr'acte", descubro na mesa em frente uma morenaça de estalo de cabelo castanho em tons que o sol criou, que tinha assistido à ginástica cueca e, pelo toque do tambor, já tinha entabulado converseta com o velho - um encantador viçoso e nato, mau grado os poucos dentes lhe fazerem a boca num cemitério abandonado. Ela abre o sorriso de promessas muitas, mas levanta-se, pousa-me a mão no ombro num tique compassivo e solta na passada que aponta à saída: "Ai que sorte. Tens um avô tão giro..." Ao voltar, o velho cruza-se com ela na porta e despedem-se com fugaz cumplicidade.

Ele senta-se, pisca-me o olho, faz-me um sorriso de ladrão já com o dia feito, acende um cigarro, prende-o nos beiços, retira-o para a primeira pufadela molhando-o junto ao filtro (o senhor raramente secava as mãos...) e lá rematou em resignação esfuziante pelo triunfo de um momento: "Viste?... Se eu agora não jogasse snooker com uma corda..."  


 Filipe Alexandre Dias
Jornalista



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