No livramento de um debruçar para Carcavelos, não tínhamos horas. Ou melhor, as horas nós é que as fazíamos e o velho e eu éramos um relógio parado a apontar exatamente para repórter e um quarto - ele era repórter, eu o resto e o que vinha a seguir que viesse quentinho porque tínhamos sede de mar e raiva a copos cheios. O velho contava histórias de Moçambique já embaciadas na janela da sua saudade e eu falava-lhe de mais uma paixão a apagar-se em mim. Numa tarde dessas, enquanto bebíamos umas e outras, ele levantou o sobrolho, deixou a descoberto todo o azul que lhe desenhava as radiais e sentenciou que no dia seguinte seríamos outra vez filhos do areal, mas menos majestáticos. Isto da vida estava para mexer mais e pensar menos e ele fora homem de ação e pouco béu-béu.
Dia a seguir, repórter e um quarto da tarde e outra vez Carcavelos, eu e o velho. Queria espraiar-me no bar e discutir com ele aquele livro do Stanislaw Ponte-Preta e os porquês dos tantos porquês que há numa mulher (matéria inflamável...) a cigarros e cevada quando o velho dispara sobre o areal como um possuído. O espetáculo que foi vê-lo descascar-se e exibir o carcaçame ao sol perseguir-me-á para sempre. Tirou a camisa de caqui com rapidez notável, estufou o peito, atirou calças e sapatos para o ar com desprezo e ficou com uma sunga indízivel, azul-bebé com uma lista amarela a cobrir-lhe as vergonhas.
"Olha bem para estes restos de uma antiga opulência", sentenciava a ufanar-se dos vestígios de bícepes e das ruínas de peitorais. A malta passava, ria e a situação para mim era ver-me sentado na sanita de uma casa de banho de luz presencial subitamente apagada e a esbracejar em vão no escuro sem me poder mexer. Porreiro...

Depois de eu dar uma cacholada para vingança, já o velho estava há muito no WindSurf café, típico bar amadeirado, de pranchas, areia e sal. De um lado ouve-se ska, do outro o rebentamento do mar. Pouso os ossos na cadeira e o gajo raspa-se para a casa de banho. No "entr'acte", descubro na mesa em frente uma morenaça de estalo de cabelo castanho em tons que o sol criou, que tinha assistido à ginástica cueca e, pelo toque do tambor, já tinha entabulado converseta com o velho - um encantador viçoso e nato, mau grado os poucos dentes lhe fazerem a boca num cemitério abandonado. Ela abre o sorriso de promessas muitas, mas levanta-se, pousa-me a mão no ombro num tique compassivo e solta na passada que aponta à saída: "Ai que sorte. Tens um avô tão giro..." Ao voltar, o velho cruza-se com ela na porta e despedem-se com fugaz cumplicidade.
Ele senta-se, pisca-me o olho, faz-me um sorriso de ladrão já com o dia feito, acende um cigarro, prende-o nos beiços, retira-o para a primeira pufadela molhando-o junto ao filtro (o senhor raramente secava as mãos...) e lá rematou em resignação esfuziante pelo triunfo de um momento: "Viste?... Se eu agora não jogasse snooker com uma corda..."
Filipe Alexandre Dias
Jornalista
Hahahahahaha lindo!!!!!!!
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