Ainda a tempo de
celebrar Freud, face ao aniversário recente do seu nascimento, impõe-se
recordar mais um dos seus inumeráveis contributos para a Psicanálise. Bem mais
de um século volvido após os seus primeiros trabalhos, o fenómeno da repetição
e particularmente da compulsão a repetir (ou à repetição) gera, ainda hoje,
discórdia entre autores e correntes teóricas, sobretudo quanto à sua
importância teórica e clínica.
Em “Recordar, repetir e elaborar” Freud articula a compulsão a repetir com
a transferência e a resistência. O autor refere mesmo que “logo percebemos que
a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição” e coloca a
repetição, num primeiro momento, ao lado da resistência, dizendo que o paciente
repete ao invés de recordar, e que, quanto maior for a resistência, mais a
actuação (repetição) substituirá o recordar. Neste sentido, se a transferência é
a repetição na análise, ela é-o, não porque são reproduzidos factos reais
vividos pelo paciente, mas sim porque estes são actualizados e tomam sentido na
relação com o analista. A repetição é tomada, inicialmente, então, sob um
aspecto negativo, como sendo um exemplo de resistência, para, num segundo
tempo, ser considerada como o fundamento da transferência. É, então, pelo
manejo da transferência e pela posição que esta lhe confere, que o analista
pode isolar a repetição na transferência e propiciar ao paciente a entrada na
neurose de transferência. Assim, seria entre a transferência e a compulsão a
repetir que se centraria o espaço do processo psicanalítico, no qual a
transferência procura articular a repetição na neurose de transferência, remetendo-o
à simbolização. Por esta altura da evolução da teoria freudiana a repetição era
encarada numa dupla perspectiva, i.e. como retorno do recalcado e como
compulsão a repetir. Contudo e porque nessa época o campo epistémico da psicanálise
era enriquecido a todo o momento, a compulsão a repetir viria a estar passados
alguns anos, na génese de uma das questões mais polémicas da metapsicologia;
questão polémica que, de resto, ainda hoje se mantém bem acesa.
A edição em 1920 de “Para Além do Princípio do Prazer” e a
introdução da segunda teoria pulsional conduzem Freud a novas reflexões. À já
dificuldade em enquadrar processos das neuroses traumáticas (sonhos, reviver desensações, etc.) ou o jogo do fort-da
na trilha exclusiva do princípio do prazer, agregava-se agora a questão da
transferência. Quando
o autor se debruça de novo sobre a transferência, a mudança de paradigma começa
a operar-se na totalidade. É, aliás, a respeito desta, que Freud
alude, pela primeira vez, à compulsão a repetir; i.e., “experiências reprimidas, das quais o “enfermo” não se pode recordar, acabam sendo repetidas como vivências actuais na
situação analítica, após a repressão ter sido um pouco atenuada (…) [essa] repressão, assim como a resistência (…) pode
ser compreendida como estando ao serviço do princípio do
prazer” (aspas nossas). Ainda segundo o autor, “algumas repetições
transferenciais seriam facilmente conciliáveis com o
princípio do prazer (…) [ou seja] aquelas cuja satisfação representa um prazer para o sistema inconsciente e, ao mesmo tempo, um desprazer para o
pré-consciente”. No entanto,
existiriam outras que não
podem ser compreendidas dessa forma. Freud registou que “a compulsão de
repetição também traz de volta aquelas vivências do passado que não contêm nenhuma
possibilidade de prazer, que tampouco naquele tempo puderam trazer satisfações,
nem mesmo das moções pulsionais desde então reprimidas. (…) [e por tal se
verificar] devemos ter coragem de supor, que existe realmente na vida psíquica
uma compulsão a repetir, que se sobrepõe ao princípio do prazer (…) [à qual
atribuiremos também] os sonhos dos que padecem de neurose traumática e o
impulso para o jogo da criança”. É nesta altura e com base nestes dados, que
Freud opta por enquadrar a compulsão a repetir na hegemonia de uma nova
“força”, que traz uma nova dinâmica à teoria pulsional: a pulsão de morte - ou thanatos. Sintetizando, a
pulsão de vida possuiria o objectivo da ligação libidinal, orientaria os laços
entre o psiquismo, o corpo, as instâncias internas, os seres e as coisas do
ambiente e por isso tenderia a garantir a coesão entre as diferentes partes do
mundo (organicidade). Já a pulsão de morte objectivaria o desligamento, o
desprendimento da ligação libidinosa e o retorno a um estado de tensão zero;
ambicionaria a um repouso total, ao silêncio enfim.
Em escritos posteriores a “Além do princípio de prazer”, como, por
exemplo, “Observações sobre a teoria e
prática da interpretação de sonhos” e “Inibições,
sintomas e ansiedade”, Freud tece mais algumas considerações acerca da
compulsão a repetir. No primeiro texto, o autor afirma que a transferência
positiva é o que dá assistência à compulsão a repetir na “luta” desta última em
superar o recalcamento; e só após o trabalho do tratamento, sob a influência da
transferência positiva, ter afrouxado um pouco o recalque é que a compulsão a
repetir pode mostrar sua força. Já no segundo texto, Freud fala sobre a relação
da resistência com a repetição. Primeiramente, retoma o que havia afirmado em “Oego e o id”, ou seja, que a maioria das resistências que têm de ser
vencidas durante a análise provém do eu. Depois, fala ainda da existência de
uma resistência do inconsciente, que se manifesta sob a forma da compulsão a
repetir: “pode ser que depois de a resistência do ego ter sido removida, o
poder da compulsão a repetir – a atracção exercida pelos protótipos
inconscientes sobre o processo instintivo reprimido – ainda tenha de ser
superado. Nada há a dizer contra descrever esse factor como a resistência do inconsciente”.
Com esta afirmação, Freud acaba por, de certa forma, reformular o que havia
afirmado em “Para Além do Princípio do
Prazer”, quando nesse trabalho referiu que não existiria uma resistência do
inconsciente, mas sim uma resistência inconsciente ligada ao eu. Mas é em “O problema económico do masoquismo”,
porém, que se encontram as contribuições freudianas mais substanciais acerca da
compulsão a repetir, após o trabalho “Para
Além do Princípio do Prazer”. Nesse ensaio, Freud articula a compulsão a
repetir com o masoquismo, salientando que este último possui a mesma face
demoníaca da compulsão a repetir: primeiro, por ser uma expressão da pulsão de
morte, e, segundo, porque carrega, sobretudo no masoquismo moral, a permanência
de um sofrimento que parece advir de uma força demoníaca do destino. Estas
observações também possibilitam interpretar a compulsão a repetir como sendo
uma forma de actualização do evento traumático. Ora, se no masoquismo moral,
essa força é o último recurso de representação do poder, que exige a renúncia à
satisfação pulsional, já na compulsão a repetir, o destino mostra-se sob a
forma do acaso, por meio das circunstâncias que permitem e reforçam a repetição.
Realce-se que esta introdução de uma pulsão contrária à vida e à
líbido é ainda hoje um dos temas mais controversos da doutrina analítica. De
resto, diversos autores se mostraram e mostram contra esta alteração na
metapsicologia, levada a cabo pelo seu próprio
fundador. Alguns referem-se à criação da noção da pulsão de morte como
exactamente isso - uma criação de índole meramente teórica, impulsionada pela
necessidade de explicar o que Freud considerou ser um transbordamento dos
fenómenos de repetição, em relação ao domínio do princípio do prazer;
precisando assim de uma unidade livre de contradições que não requeresse ligar elementos isolados uns dos outros (portanto,
abstracções) numa totalidade funcional. Coimbra de Matos, por exemplo, a
propósito da compulsão a repetir, refere que “considerá-la apenas no pólo
pulsional consiste em persistir no reducionismo da vida psíquica à pressão do
instinto (…) bem como explicá-lo simplesmente por um mecanismo pseudo-adaptativo
do Eu – necessidade de maîtrise [de
domínio] – é ver somente o mecanismo
defensivo, em face da impossibilidade de fazer concordar a necessidade instintiva de oferta da realidade (…) fazer intervir a existência de uma pulsão
de morte como instinto básico que se oporia à força expansiva da líbido – nas
suas vertentes narcísica e objectal – é recuar a uma mitologia dos instintos,
negando o verdadeiro conflito sujeito-objecto”. Outros ainda, tal como Klein,
Kernberg, Bergeret, Green, Grotstein, etc., alicerçaram algumas das suas
propostas a partir da formulação pulsional dualista, ou mesmo variações desta.
Pensamos,
quiçá, numa posição ponderada e não extremada. Aliás, não é o facto da pulsão
de morte surgir não “de uma meditação a
priori mas (…) como resultado de uma série de exigências lógicas e procedentes de observações clínicas [ou seja, de certas expressões da compulsão a repetir]”, como referiu Bergeret, que retira a validade epistémica ao
constructo que representa, desde aí, a face negra das pulsões humanas. De
resto, esta é uma discussão que extravasa significativamente os limites da teoria
psicanalítica, situando-se mormente ao nível da filosofia e em particular no
plano ontológico. Todavia, muito há ainda a discutir; e daí, que o empirismo
provindo do setting terapêutico jogue
uma “cartada forte” e preponderante nessa mesma discussão.
Finalizamos
voltando à repetição e à transferência. Importa dizer que seja qual for a nossa
posição e, outrossim, a posição que queiramos atribuir à compulsão a repetir na
teoria pulsional, é inexorável a sua posição de relevo na epistemologia
psicanalítica. Até porque, recordando novamente palavras Coimbra de Matos, “a
compulsão a repetir – na vida quotidiana e na transferência analítica – é um
dos mais importantes núcleos patológicos e patogénicos da neurose clínica e da
neurose de transferência”.
Resta frisar que, se é verdade que a teoria e técnica psicanalítica muito mudaram desde as primeiras obras de Freud, o horizonte por ele rasgado mantém-se limite aberto para a Psicanálise e a marca indelével por ele deixada, como a sua eterna matriz.
Dr. Pedro Rodrigues Anjos
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