quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Sopa comida a garfo....








Contam que primeiro o Ti Vicente viu a escarlatina levar-lhe as duas meninas. Depois a sua senhora caiu no catre para se entregar ao desgosto que também a levou. Chegado a um destino de vazio e nada, o Ti Vicente deixou a razão pelo caminho. Ou talvez não… A normalidade não passa de uma subjetividade envergonhada. Antes de a sua alma enegrecer, os antigos asseguram que ele fora homem de finezas. Sabia do mundo, de contas e até letras, lá onde as mãos quase todas eram de enxada num lugar o Ribatejo já tinha cara de Beira, mas mal sabia ler.

Para o Ti Vicente, o mundo passou a ser uma piada. Como só os loucos são livres, declarou guerra às convenções e fez-se ao contra. Montava bestas virado para a cauda; perambulava de noite e repousava de dia; caminhava sobre muretes, cercas, telhados e galhos, avesso a tudo o que fosse caminho de gente. Dormia em palheiros. Passava jornadas sem falar e outras a palrar sozinho. Tinha o maior desvelo com a bicharada e um desprezo olímpico a quase todas as pessoas. Se lhe dessem uma guitarra, tocava até sangrar, sem comer ou beber. Fumava cigarros de barba de milho. Sabia tudo de todos e trazia no bolso da calça vestida do avesso todas as vergonhas e segredos dos cínicos da freguesia. Ninguém o confrontava por ser andrajoso e indiferente à miséria. Quem se atrevesse, ouvia o sexagenário tresloucado cuspir-lhe uma verdade azeda.


Sempre que o rapazio ao qual Ti Vicente se dava lhe pedia uma lição de História, o velho avivava o olhar verde, cofiava a barba nauseabunda e rala para contar em lusitano detalhe o cativeiro de Fernando, o Infante Santo, como se o tivesse visitado na masmorra de Fez naquele cristão suplício. Depois houve aquela vez em que roubou uma bicicleta e bradou que agora só a apanhavam na Alemanha ao deslizar em fúria caminho abaixo. Deram com ele dois quilómetros adiante a cavar numa fazenda. Com o lado errado da pá, como está bom de ver.
Comia com os pratos ao contrário e quando o convenceram a investir sobre uma sopa na tigela, pegou um garfo bojudo e sorveu-a mesmo assim. Num almoço deu com o fundo de um prato em casa de gente piedosa. Viu uma flor desenhada na louça e, mortificado, disse que era veneno para sair num rufo de inferneira.
Afagava a Castanha, a mula do Jaquim Pereira, e nessas alturas chorava sobre a palha a falar para dentro.

Quando Tejo subiu, as cheias tragaram casas e muitos ficaram com pertences submersos. O Ti Vicente mergulhou e mergulhou em desafio às aguas. Resgatou quanto pôde. Depois bordejou pelo rio até desaparecer no horizonte. O medo há muito ficara para trás.
Tentaram tratá-lo, mas ele respondeu que se era para aquilo, não o tivessem chamado. Fugiu.

Fechou os olhos numa sala branca e luzidia de uma afilhada que lhe amparou a doença, já física, e voltou para sempre à escuridão amiga.
Desceu à terra sem que lhe fizessem a última e funérea vontade: ir de barriga para baixo, de costas viradas.
O mundo não lhe merecia mais. 



Filipe Alexandre Dias
Jornalista




2 comentários:

  1. Adorei o texto, mas é muito triste perceber o que a vida pode fazer a um homem.

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  2. Já não ouvia este "conceito"há uns tempos largos! Ou melhor, desde a minha infância. Era uma sopa com muito "entulho", tipo sopa da pedra mas com mais legumes.

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