Contam que primeiro o Ti
Vicente viu a escarlatina levar-lhe as duas meninas. Depois a sua senhora caiu
no catre para se entregar ao desgosto que também a levou. Chegado a um destino
de vazio e nada, o Ti Vicente deixou a razão pelo caminho. Ou talvez não… A
normalidade não passa de uma subjetividade envergonhada. Antes de a sua alma
enegrecer, os antigos asseguram que ele fora homem de finezas. Sabia do mundo,
de contas e até letras, lá onde as mãos quase todas eram de enxada num lugar o
Ribatejo já tinha cara de Beira, mas mal sabia ler.
Para o Ti Vicente, o mundo
passou a ser uma piada. Como só os loucos são livres, declarou guerra às
convenções e fez-se ao contra. Montava bestas virado para a cauda; perambulava
de noite e repousava de dia; caminhava sobre muretes, cercas, telhados e
galhos, avesso a tudo o que fosse caminho de gente. Dormia em palheiros.
Passava jornadas sem falar e outras a palrar sozinho. Tinha o maior desvelo com
a bicharada e um desprezo olímpico a quase todas as pessoas. Se lhe dessem uma
guitarra, tocava até sangrar, sem comer ou beber. Fumava cigarros de barba de
milho. Sabia tudo de todos e trazia no bolso da calça vestida do avesso todas
as vergonhas e segredos dos cínicos da freguesia. Ninguém o confrontava por ser
andrajoso e indiferente à miséria. Quem se atrevesse, ouvia o sexagenário
tresloucado cuspir-lhe uma verdade azeda.
Sempre que o rapazio ao qual
Ti Vicente se dava lhe pedia uma lição de História, o velho avivava o olhar
verde, cofiava a barba nauseabunda e rala para contar em lusitano detalhe o
cativeiro de Fernando, o Infante Santo, como se o tivesse visitado na masmorra
de Fez naquele cristão suplício. Depois houve aquela vez em que roubou uma
bicicleta e bradou que agora só a apanhavam na Alemanha ao deslizar em fúria
caminho abaixo. Deram com ele dois quilómetros adiante a cavar numa fazenda.
Com o lado errado da pá, como está bom de ver.
Comia com os pratos ao
contrário e quando o convenceram a investir sobre uma sopa na tigela, pegou um
garfo bojudo e sorveu-a mesmo assim. Num almoço deu com o fundo de um prato em
casa de gente piedosa. Viu uma flor desenhada na louça e, mortificado, disse
que era veneno para sair num rufo de inferneira.
Afagava a Castanha, a mula do
Jaquim Pereira, e nessas alturas chorava sobre a palha a falar para dentro.
Quando Tejo subiu, as cheias
tragaram casas e muitos ficaram com pertences submersos. O Ti Vicente mergulhou
e mergulhou em desafio às aguas. Resgatou quanto pôde. Depois bordejou pelo rio
até desaparecer no horizonte. O medo há muito ficara para trás.
Tentaram tratá-lo, mas ele
respondeu que se era para aquilo, não o tivessem chamado. Fugiu.
Fechou os olhos numa sala
branca e luzidia de uma afilhada que lhe amparou a doença, já física, e voltou
para sempre à escuridão amiga.
Desceu à terra sem que lhe
fizessem a última e funérea vontade: ir de barriga para baixo, de costas
viradas.
O mundo não lhe merecia
mais.
Filipe Alexandre Dias
Jornalista
Jornalista
Adorei o texto, mas é muito triste perceber o que a vida pode fazer a um homem.
ResponderEliminarJá não ouvia este "conceito"há uns tempos largos! Ou melhor, desde a minha infância. Era uma sopa com muito "entulho", tipo sopa da pedra mas com mais legumes.
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