quinta-feira, 11 de outubro de 2018

Aqui Jaz uma infância perdida!





“João A…, ao Gabinete 1”
“ Matilde L…, à Sala de tratamentos”

E assim sucessivamente se ouviam os “plins” de uma campanha que servia de banda sonora aquela manhã.
Naquela sala de espera da urgência de pediatria (do que poderia ser um qualquer Hospital Nacional), os brinquedos arrumados nas duas caixas ao lado da mesa, estavam claramente doentes. Coloridos, texturados e exuberantes, apelando provocadoramente ao “olha para mim” vestiam negro no olhar e cinzento nos sorrisos. Levianamente muitos diriam: é uma virose! Antes fosse… que entre mezinhas, pomadas, descanso e recato haveria de passar.
O diagnóstico parecia claro embora encontrasse o seu contraste nas cores da roupa da boneca de pano e na musica do orgão de animais, não poderia haver dúvidas de que aqueles brinquedos padeciam de um mal gravíssimo. O robot espacial, o carrinho do Noddy, o telefone cor-de-rosa, a boneca de pano, o orgão dos animais e sua restante comitiva transportavam um ar pesado, um olhar baço e uma inércia que tão pouco as pilhas alcalinas( já quase a “babar”) tinham potência para combater. Os brinquedos estavam de luto! Curvados, tortos e amassados se carregassem ás costas a sua perda, haveria a algures de se ler: Aqui Jaz uma infância perdida!
A vivacidade de outrora estava perdida, o sentido no balanço do significante e significado, perdera o norte e o seu papel há muito parecia enterrado nas memórias longínquas, de um tempo que parecia já não se voltar a repetir. No meio de todo o barulho e frenesim daquela sala, batiam corações mudos em sintonia entre os quatro lados de cada caixa e ao aproximar-me na incredulidade de tamanha exasperação, juro quase ter ouvido um choro uníssono abafado que só os objectos outrora amados e agora abandonados conhecem.
Os brinquedos estavam de luto, pelas enumeras crianças que perderam, pelas imensas mãos que já não lhes tocavam, pelos apertos que já não levavam e pelos sorrisos inocentes de novos descobridores que não vislumbravam.
Os brinquedos estavam de luto e sucumbiam a uma dor, por vezes enganada pelos passos desleixados em modo de corrida que se dirigiam sobre a caixa, que depois e sobre o olhar projectado e desvitalizador se desiludiam por nada mais terem para oferecer que não eles próprios. Os brinquedos estavam de luto pela perda do amor do objecto. Esse amor talhado na forma de olhar o outro, medido nos gestos de afecto e amparo, que cria laços tão fortes como cimento que edifica cada estrutura interna como única…esse amor faltava-lhes agora. Restava fantasiar sobre as linhas finas de uma constituição subjectiva do que até então se tinha internalizado mais profundamente que um ou outro parafuso, uma pelúcia, um botão, peça de plástico ou até mesmo uma bateria.

Imaginei a boneca de pano em sessão, mergulhada no divã com a caixa de lenços ao colo murmurando entre lágrimas os seus sentimentos de culpa que lhe atormentam os sonhos e o olhar sobre a realidade, os sentimentos de não merecimento e de insuficiência que a deixam letárgica e incapaz de pensar. Até mesmo o Robot enchendo o Setting com o seu vazio interno e a sua dificuldade em pensar as emoções, desviando o olhar sobre a janela e mantendo um silêncio tão ensurdecedor que não dava espaço para interpretar e conter. E o orgão de animais… metia dó mas já só tocava Ré, desarmonioso sem posição para estar saltitando de um lado para no sofá, levantando-se e gesticulando sem tom, num registo incontido e lábil, numa vulnerabilidade tão característica dos que perderam o seu lugar, papel e identificação.
Os brinquedos estavam de luto por todas as crianças que passaram, passam e permanecem naquela sala de espera. Choravam a perda dos palmos e meio que naquele mesmo momento enchiam o espaço, tornando-o cada vez mais vazio de quem o via através das caixas. Os brinquedos estavam de luto pelo João A. que de chucha na boca e lágrima ao canto do olho ficou ao colo do pai a ver o Babytv no tablet. Estavam de luto pela Matilde com 4 anos que sentada ao lado da mãe gargalhava entre a tosse e o fungar, ao ver a Dora - A Exploradora no youtube. Estavam de luto por eles e pelas restantes oito crianças que sem sair do lugar e sem nunca se debruçarem sobre as caixas, “brincavam” escondendo-se da espontaneidade, do faz-de-conta, da fantasia e da experimentação, atrás dos ecrãs das tecnologias.
Perguntei a medo à enfermeira - Isto é sempre assim? - não percebendo a inquietação inicial da pergunta acabou mais tarde por responder - Sim. No outro dia até pensei se não seria melhor retirar as caixas dali do fundo e… (enchi-me de esperança) deixar a extensão mais disponível para os carregadores de telemóvel e tablets (morri na praia). Mais grave que um infância que se perde é claramente uma adultez que a corrompe, esmaga e negligencia.

Aqui Jaz uma Infância que um dia soube brincar, fazer-de-conta, caiu e levantou-se, conheceu os limites do seu corpo, esfolou os joelhos, explorou, experimentou e foi…e soube ser CRIANÇA.


Drª Joana Cloetens
O Canto da Psicologia




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