quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Quando a perda invade o espaço terapêutico...



“Não tenho medo da morte. Só não quero estar presente quando ela acontecer.”

                                                                                                         Woody Allen

Drª. O meu pai partiu hoje ao início da tarde…que tristeza tão profunda…” 

Se por um lado, no desempenho da nossa profissão, vamos, com orgulho profissional, assistindo ao crescimento dos nossos pacientes, há momentos em que a empatia se instala de tal forma e, num poder descontrolado, apodera-se e embebeda-nos em momentos de sofrimento imenso onde a dor contamina e é sentida de forma intensa quase como se fosse  nossa; valha-nos a experiência, a supervisão e as nossas ferramentas de trabalho que nos permitem um distanciamento suficientemente seguro de maneira a sermos capazes de ajudar, conter e suportar o sofrimento desmedido pela perda sentida por  quem está à nossa frente, derrubada por uma tristeza imensurável. É inimaginável  este cenário; também somos humanos e trazemos connosco, às costas, a nossa própria história e também as nossas perdas mas, foi para isto e muito mais que nos fomos preparando enquanto profissionais de saúde mental  e por isso, capazes de fazer o nosso trabalho mesmo nestas circunstâncias tão, mas tão difíceis …

Ao longo dos meus anos de prática, já acompanhei dois processos lancinantes de espera da morte; um, enquadrado no percurso normal da vida,  e outro, absolutamente antinatural onde se trabalhou durante um ano e meio,   a espera inevitável da morte de um filho, na primeira infância.

Alguém me disse, um dia, de que as dores são incomparáveis e são, efectivamente; e estas, as dores da perda pela morte prematura ou tardia, são incontornáveis e tem o seu tempo para serem vividas. O Professor Coimbra de Matos, numa supervisão, dizia: “ O luto de um filho nunca se faz; vai-se aprendendo a viver de saudade” ; Rose Kennedy escreveu um dia:” Diz-se que o tempo cura todas as feridas. Eu não concordo. As feridas ficam. Com o tempo, a fim de proteger a sua sanidade, a mente cobre as feridas e a dor diminui, mas nunca desaparece”.

Também eu passei, há uns anos, pela morte do meu pai. Esperada e pela doença degenerativa da qual sofria a certa altura, até “desejada”, a despedida era feita a cada visita, tal a vontade que o seu sofrimento terminasse mas, perante a derradeira impossibilidade de o trazer novamente à vida com um simples sopro de amor, sucumbi à dor lacinante de me tornar órfã de pai; valeu-me a terapia onde houve dias em que o som era só o do meu choro, do meu lamento, da minha tristeza profunda e incapacidade de lidar com o meu novo estatuto, o de “órfã de pai”.

Apesar de ter tido tempo para me ir preparando ( será que alguém consegue estar verdadeiramente preparado para tal?) assistiram-me as cinco fases de luto: negação, revolta, negociação , depressão e aceitação; retirei-me temporariamente da presença dos meus pacientes e mais tarde, quando regressei , cuidei para que, enquanto eu não tivesse este meu luto resolvido, não recebesse ninguém em consulta que estivesse igualmente a passar por um processo de luto: eu não estaria ainda  preparada para o ou, a acompanhar. A vida, entretanto, quando achou que assim o devia e que eu aguentaria,  foi-me pondo à prova pelos casos que fui abraçando e dei por mim, serena,  a trabalhar lutos com a saudade por companhia e com a empatia  em absoluta sintonia.

 E ontem, recebi esta mensagem! Já esperávamos! Trabalhámos ao longo destes últimos dois meses esta realidade possível mas tão impossível ao mesmo tempo de ser pensada! Com momentos difíceis e terrivelmente dolorosos, a inevitabilidade deste fecho de vida foi-nos colocando a ambas e em cada uma de maneira diferente, face a face com a morte;

Entre estes factos da vida, a morte é o mais evidente, o mais intuitivamente palpável. Desde cedo, bem mais cedo do que muitas vezes se julga, compreendemos que a morte há-de chegar e que não há escapatória (…)

(…) Há medida que envelhecemos, aprendemos a não pensar na morte ; distraímo-nos; transformamo-la em algo positivo; negamo-la com mitos que nos sustentam; esforçamo-nos por alcançar a imortalidade através de obras imperecíveis (…)

(… Contudo, existe outra via – uma tradição antiga, que se aplica à psicoterapia- , que nos ensina que a perfeita consciência da morte amadurece o nosso pensamento e enriquece a nossa vida”

A Psicologia do Amor

Irvin D. Yalom

Respondi à mensagem da mesma forma que me ouvi, quando a li e que achei importante fazê-lo : “ Só me resta relembrar-lhe o que ao longo deste tempo temos tantas vezes dito em sessão: só morre quem é esquecido e o seu pai tem um lugar perene no seu coração”

Agarro-me à frase inicial de Woddy Allen e transformo-a segundo a minha existência:

“Não tenho medo de trabalhar a inevitabilidade da morte. Só não quero estar presente quando ela acontecer.”


Drª Ana de Ornelas

Directora Geral do Projecto 

O Canto da Psicologia




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