quinta-feira, 25 de maio de 2017

Automutilação: Uma Forma Dolorosa de Falar ...





Há palavras que não saem. Simplesmente porque não conseguem sair, como se existissem num sítio tão profundo e longínquo, que o caminho que necessitam de percorrer até que ganhem forma, torna-as intransponíveis. Essas palavras são como tijolos empilhados uns em cima de outros, que vão criando barreiras cada vez mais difíceis de tolerar. E tornam-se muros demasiado altos para que outros se aproximem, demasiado pesados para que sejam suportáveis, demasiados escuros para permitirem a entrada de luz. São muros que acolhem ao seu redor uma dor incalculável.


Mas essa dor sem nome às vezes sai à rua, trespassando os muros em forma de grito – um grito que, sendo grito, é também mudo, mas que pela sua intensidade é capaz de transformar em árido o que poderia ser agreste. Um grito em surdina, em jeito de murmúrio, que na impossibilidade de sair por via da palavra, transforma-se numa outra forma de dor. A dor do que é cortado, do que é rasgado e infligido à própria pele.
A automutilação é, por isso, um “meio caminho” para escoar o sofrimento, que sem acesso à palavra, vê na agressão ao corpo uma forma de aliviar a insuportabilidade da angústia. É assim que é marcado no corpo o que não é mais suportável, traduzindo a incapacidade para verbalizar o que vai dentro. Magoa-se a pele para sossegar a mente. E anestesia-se a alma, que, levada ao excesso, encontra um sossego na dor física que se autoinflige.
Esta forma de estancar o sofrimento emocional, deslocando-o de uma dimensão psíquica-interna para uma dimensão física-externa, funcionando como uma espécie de penso-rápido de curta duração. Precisamente porque os muros altos não se desconstroem de cada vez que esta forma de grito aparece. Pelo contrário, apenas estagnam, por breves instantes, numa ilusão de resolução que, na verdade, funciona apenas como entorpecimento. A angústia reaparecerá, assim como todos os sentimentos difíceis de suportar, o que torna a automutilação num “meio caminho” que se repete ciclicamente.

Talvez por isso, dos relatos que se conhecem, oiçamos muitas vezes falar “em vício”: um vício que, como qualquer outro, cria uma dependência, que começa por pequenos cortes, que evoluem posteriormente no tamanho e na profundidade. Afinal, esta destrutividade autodirigida intensifica-se, à medida que se compreende que o dito “meio caminho” que os cortes representam não é suficiente, não cessa ou estanca a dor, porque nada parece ser capaz de suportá-la ou de contê-la. 
É importante pôr palavra na dor, colar os rasgos, cuidar das feridas… De dentro. Só assim o corpo deixará de ser palco da tristeza que, finalmente, poderá ganhar nome. Esta dor sem nome que é possível ser contida, trabalhada e suportada num contexto psicoterapêutico.


Dr.ª Joana Alves Ferreira
O Canto da Psicologia


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