quarta-feira, 24 de maio de 2017

No funeral, espero que haja porrada....






Quando eu, infiel defunto, estiver de jaleca nova e mãozinhas dadas, mas ainda a arrefecer num sobretudo de madeira, a olhar para dentro, almofadado nas bochechas e a fazer cara de grão de bico, não peçam piedade pela minha alma ou que os anjinhos me defendam na sua alva guarda, que eu tenho outras merdas combinadas porque nunca fui bom pardal: o que eu quero (e espero!) é porrada e salsifré numa bronquite aguda ao meu funéreo redor, que decerto deve tresandar a formol, mas aguentem-se e batam-se. Aqui, vivíssimo do Carmo, formulo este chamejante desejo pós-quinanço – morrer não me dá jeito agora, mas se for amanhã, que venha ao pontapé. Por (fugaz) amor à verdade, assumo-o porque se me aquecem os órgãos ao ver o maralhal deitar fogo à peça indiferente à solenidade de ocasiões; porque isto do valor do choque se tatua na memória; porque a sinceridade mora em casa do soco… 

Contanto não se recomende, gostava muito que no meu funeral houvesse porrada e daquela de três em pipa ou de car(v)alho a quatro - se há crianças desse lado, o vê – já se vê - é de prevenção para verem que às vezes não sou rafeirola. Confesso esta vontade de bifada na casa do choro. Tenham a fineza de passar à ação a mostrar esse barro. Nem será preciso pedir. A mocada nasceu abençoada pela espontaneidade, mas pode ser previsível de baptismo. Quero latada da grossa, ginja, arranhões, impropérios e cuspo.

Já adivinho o fandango porque as minhas ligações são em fricassé, uma mistura de gente que não se chupa: vai ser dessa que o Solipa e o Mató se reencontram depois de o primeiro ter tingido os lençóis da cama com a mulher do segundo e a tantas fisgadelas de leitaça que enchia uma garrafa de um quarto de Vigor (porcalhões!!!) - a coisa só pode faiscar porque o Mató ainda hoje não cabe nas portas e cabrões e varas moles são gente suscetível que tem o sangue da virilidade a fugir-lhes do pichotame para os galfarros; pelos meus apontamentos o Vinholas reaparece após anos a chutar família, amigos, dívidas, roubos e veneno para a veia - o meu funeral mete convidados que criam ferida na palma das mãos porque a raiva os obriga a fazer punhos só de farejarem o pobre caroucho que, bem entendido, vai sair marreco do serviço fúnebre depois de tanto desfalque e trambique, tal o fartum e carga de lenha; o Gigi, muito desempregado e sportinguista incorrigível, atesta-se e rega-me o cremanço de gasolina só de ouvir o Acácio gabar-se ao cumprido do tetra e de vender ranho com igual facúndia por negociar casas que nem pão quente na Remax. O Acácio é quem enche mais a marmita quando a coisa parte para o físico; o Quim Confusões, que não tem um osso bom no corpo, assoma à porta a cantar o “Eu vou para Maracangalha” e vomita o vinho carrascudo que ingeriu no Bácoro, o maior pé sujo do canto onde caí com o esqueleto, para depois resfolegar alto lá para dentro: “Quem é que marou, caralho??? - este não pensa em crianças… Ato contínuo, é corrido a ponta de faca (estão lá os meus amigos ciganos de Mira Tejo todos em alcateia para fazerem o filete a alguém). No remate, a Pati, a patroa, dá com a Zindinha - que nunca viu mais boa e tem curvas que só lhe faltam falar - a berrar por nunca mais ver a sua zaragatoa favorita. A minha senhora topa que serrei presunto do outro lado da quinta e a nossa filharada que se despede do pai amarelado vai ter em estreia absoluta nos ouvidos “puta”, “vadia”, “badalhoca” e um incontornável “este cabrão só me fazia nos anos e quando era Natal”. A minha mãe desafia todos os decibéis a gritar que eu nem a morrer prestei (para a próxima que me fingir de finado num texto, tiro-a do filme só por causa das moscas).

Mas, nisto, já sei que me canso e acordo de uma morte aparente (o Carlos Paião parece que não teve tempo, diz o tétrico povo). Levanto-me no torpor de quem tem o trabalho à espera para mais um dia a seguir ao outro. Lavo os fagodes na água benta, coço-me, estouro um peido com indolência e digo a todos que são uma “granda merda”. Entre o pasmo daquele milagre bufo, faço-me ao piso e deixo tudo a olhar para mim congelado e transido. O ensaio de porrada esteve abaixo do preço do bilhete. Peço lume ao pobre Vinholas que precisa de ser raspado do chão e saio a fumegar aí pelos caminhos. Limpo a maquilhagem do cangalheiro como quem vem da televisão.

Preciso de fazer outros amigos, de outras histórias.
Pode ser que a Pati me perdoe estar vivo e ter dado carapauzadas fora de casa.

Prometo que vai ser tudo melhor. Não morro mais.

Filipe Alexandre Dias
 Jornalista

O Canto da Psicologia




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