Quando eu, infiel defunto,
estiver de jaleca nova e mãozinhas dadas, mas ainda a arrefecer num sobretudo
de madeira, a olhar para dentro, almofadado nas bochechas e a fazer cara de
grão de bico, não peçam piedade pela minha alma ou que os anjinhos me defendam
na sua alva guarda, que eu tenho outras merdas combinadas porque nunca fui bom
pardal: o que eu quero (e espero!) é porrada e salsifré numa bronquite aguda ao
meu funéreo redor, que decerto deve tresandar a formol, mas aguentem-se e
batam-se. Aqui, vivíssimo do Carmo, formulo este chamejante desejo pós-quinanço
– morrer não me dá jeito agora, mas se for amanhã, que venha ao pontapé. Por
(fugaz) amor à verdade, assumo-o porque se me aquecem os órgãos ao ver o
maralhal deitar fogo à peça indiferente à solenidade de ocasiões; porque isto
do valor do choque se tatua na memória; porque a sinceridade mora em casa do
soco…
Contanto não se recomende, gostava muito que no meu funeral houvesse
porrada e daquela de três em pipa ou de car(v)alho a quatro - se há crianças
desse lado, o vê – já se vê - é de prevenção para verem que às vezes não sou
rafeirola. Confesso esta vontade de bifada na casa do choro. Tenham a fineza de
passar à ação a mostrar esse barro. Nem será preciso pedir. A mocada nasceu
abençoada pela espontaneidade, mas pode ser previsível de baptismo. Quero
latada da grossa, ginja, arranhões, impropérios e cuspo.
Já adivinho o fandango porque
as minhas ligações são em fricassé, uma mistura de gente que não se chupa: vai
ser dessa que o Solipa e o Mató se reencontram depois de o primeiro ter tingido
os lençóis da cama com a mulher do segundo e a tantas fisgadelas de leitaça que
enchia uma garrafa de um quarto de Vigor (porcalhões!!!) - a coisa só pode
faiscar porque o Mató ainda hoje não cabe nas portas e cabrões e varas moles
são gente suscetível que tem o sangue da virilidade a fugir-lhes do pichotame
para os galfarros; pelos meus apontamentos o Vinholas reaparece após anos a
chutar família, amigos, dívidas, roubos e veneno para a veia - o meu funeral
mete convidados que criam ferida na palma das mãos porque a raiva os obriga a
fazer punhos só de farejarem o pobre caroucho que, bem entendido, vai sair
marreco do serviço fúnebre depois de tanto desfalque e trambique, tal o fartum
e carga de lenha; o Gigi, muito desempregado e sportinguista incorrigível,
atesta-se e rega-me o cremanço de gasolina só de ouvir o Acácio gabar-se ao
cumprido do tetra e de vender ranho com igual facúndia por negociar casas que
nem pão quente na Remax. O Acácio é quem enche mais a marmita quando a coisa
parte para o físico; o Quim Confusões, que não tem um osso bom no corpo, assoma
à porta a cantar o “Eu vou para Maracangalha” e vomita o vinho carrascudo que
ingeriu no Bácoro, o maior pé sujo do canto onde caí com o esqueleto, para
depois resfolegar alto lá para dentro: “Quem é que marou, caralho??? - este não
pensa em crianças… Ato contínuo, é corrido a ponta de faca (estão lá os meus
amigos ciganos de Mira Tejo todos em alcateia para fazerem o filete a alguém).
No remate, a Pati, a patroa, dá com a Zindinha - que nunca viu mais boa e tem
curvas que só lhe faltam falar - a berrar por nunca mais ver a sua zaragatoa
favorita. A minha senhora topa que serrei presunto do outro lado da quinta e a
nossa filharada que se despede do pai amarelado vai ter em estreia absoluta nos
ouvidos “puta”, “vadia”, “badalhoca” e um incontornável “este cabrão só me
fazia nos anos e quando era Natal”. A minha mãe desafia todos os decibéis a
gritar que eu nem a morrer prestei (para
a próxima que me fingir de finado num texto, tiro-a do filme só por causa das
moscas).
Mas, nisto, já sei que me
canso e acordo de uma morte aparente (o Carlos Paião parece que não teve tempo,
diz o tétrico povo). Levanto-me no torpor de quem tem o trabalho à espera para
mais um dia a seguir ao outro. Lavo os fagodes na água benta, coço-me, estouro
um peido com indolência e digo a todos que são uma “granda merda”. Entre o
pasmo daquele milagre bufo, faço-me ao piso e deixo tudo a olhar para mim
congelado e transido. O ensaio de porrada esteve abaixo do preço do bilhete.
Peço lume ao pobre Vinholas que precisa de ser raspado do chão e saio a fumegar
aí pelos caminhos. Limpo a maquilhagem do cangalheiro como quem vem da
televisão.
Preciso de fazer outros
amigos, de outras histórias.
Pode ser que a Pati me perdoe
estar vivo e ter dado carapauzadas fora de casa.
Prometo que vai ser tudo
melhor. Não morro mais.
Filipe Alexandre Dias
Jornalista
O Canto da Psicologia
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