“Que as mulheres não sejam criadas para serem criadas” - e eu acrescentaria: nem os homens para serem servidos
A frase e a ilustração são da Clara Não,
feminista, ilustradora e escritora, é assim que se descreve no seu perfil do
instagram onde conta com mais de 114 mil seguidores e tem muitas outras
reflexões ilustradas que valem a pena uma visita atenta. Aqui fica mais uma:
“não quero um cavalheiro, quero alguém que trate as pessoas com respeito,
independentemente do género delas”.
Num momento em que (felizmente) muito se fala da
importância da saúde mental, deixo-vos alguns números e conclusões do Relatório
Anual sobre a Igualdade de Género na UE de 2021 em que ficou claro que a
pandemia exacerbou as desigualdades existentes entre mulheres e homens em quase
todos os domínios da vida e por todo o mundo.
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Os Estados-Membros registraram um
agravamento da violência doméstica, por exemplo com um aumento de 32% em França
durante a primeira semana do confinamento, ou de 5 vezes mais casos na Irlanda
durante a primeira quinzena (a APAV está neste momento a realizar um estudo e
as conclusões sobre este assunto no nosso país serão publicadas em Maio).
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As mulheres
estiveram na linha da frente na luta contra a pandemia:
76% dos trabalhadores do setor da saúde e da assistência social são mulheres, o
que representou um aumento tanto do volume de trabalho, dos riscos sanitários e
dos desafios em conciliar a vida profissional e familiar.
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As mulheres
dedicaram, em média, 62 horas por semana a tomar conta de crianças (em contraste com 36 horas para os homens) e 23
horas por semana foram consagradas ao trabalho doméstico (em comparação com 15 horas para os homens).
São vários os relatos que oiço de mulheres que têm
de conciliar o inconciliável e que expressam a sua exaustão e por vezes outros
sintomas. Nos jornais abundam manchetes como “Jovens mulheres estão a ser afectadas desproporcionalmente” pela pandemia” ou “Covid-19: Pandemia faz descarrilar conquistas de
igualdade” e as conclusões dos estudos relacionam este
fenómeno com o facto de serem maioritariamente as mulheres a acumular papéis e
tarefas.
Eu pergunto-me porque sentem as mulheres um pouco
por todo o mundo, e na generalidade dos casos, esta responsabilidade acrescida.
Porque devem ser elas a cuidar da casa, dos filhos e por vezes de outros
familiares dependentes que têm a cargo, a prestar assistência no ensino à
distância das crianças, a prejudicar a produtividade e reduzir a progressão na
carreira e o salário ou até a abdicar do trabalho ou de outros projetos em prol
da família? Existe sem dúvida um conjunto de fatores que ajudam a responder a
estas questões, mas hoje gostaria de falar apenas de um: o papel da educação
diferenciada por género.
As crianças são imersas e formadas pela linguagem,
atitudes e ações das pessoas significativas que as rodeiam e é inegável que
meninos e meninas continuam a ser tratados de forma distinta seja em casa, no
espaço público ou na escola.
A linguagem é fundamental na construção da identidade e também na
construção das representações sociais de género. Por vezes são coisas pequenas que se dizem como
“vais ajudar a mamã a fazer o jantar?” ou “vais ajudar o papá a lavar o
carro?”(a primeira questão será,
regra geral,
colocada a uma menina e a segunda a um menino); os comentários e os olhares de reprovação quando não é a mãe a ir buscá-los à escola ou
se chega atrasada, em contraste com o olhar benevolente se é o pai a atrasar-se
ou a ter de sacrificar-se para ir buscar as crianças; a escolha dos brinquedos
ou das atividades marcadamente femininas ou masculinas; um elogio que será
focado numa qualidade relacionada com a beleza para as meninas e na força para
os meninos.
Eu sou mãe de um menino e fico deliciada ao ver
que no parque ele tem interesse nas bicicletas e trotinetes dos outros
independentemente da cor e feitio delas (sim, porque a galinha da vizinha é
sempre melhor do que a minha) e assustada com os comentários de adultos
relativamente a esse interesse: “mas olha que essa é cor-de-rosa, é de menina”.
Por acaso não tem 2 rodas, um selim e um guiador? Fico igualmente deliciada ao
observar a criatividade nos seus jogos de faz-de-conta que tanto envolvem
cuidar de bonecas e realizar afazeres domésticos como dominar pistas de carros
de corridas, e entristece-me pensar que um dia alguém lhe vai dizer que bonecas
são para meninas.
Se continuarmos a educar os homens para serem
homens e as mulheres para serem mulheres, estamos a alimentar esta desigualdade
e a certeza de que este tratamento diferenciado vai resultar em estatísticas como
as que comecei por enumerar. Nas palavras de Nelson Mandela: A educação é a
arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”.
E se, em vez disso, educarmos as crianças para
serem pessoas que respeitam outras pessoas, independentemente do género, idade,
raça ou religião delas?
Drª Rafaela Lima
O Canto da Psicologia - Braga
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