quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

É tarde para ser bom, Johnny?...






Johnny chamava-se mesmo assim, surgiu do nada, bateu-me em tudo e fez com que o mundo me pontapeasse no plexo solar. Das sardas a um par de olhos refulgentes, dos brinquedos marcianos que arrecadavam os meus legos na Idade Média sem remissão até ao cabelo cor de fogo, Johnny vinha de outro planeta, todos o queriam, acordou-me para as minhas imperfeições e a maltosa lá da rua pôs-me de lado como quem larga um mau hábito. Johnny não sabia juntar as palavras que eu conhecia, soltava coisas ininteligíveis que arrancavam risos a todos - menos a mim… - e um dia procurava alguém com quem brincar na ruela que só passou a ter olhos para ele mas que naquele dia só nos encontrou na nossa pequenez. Tinha uma bola oval, esquisita, com cordões de lado. Diferenças que me deixavam em erupção. Instantes depois, lembro-me de o ver curvado a sangrar profusamente do nariz - cortesia do malévolo soco que lhe dei por trazer tantas invejas no punho. Antes de passar pela minha mãe em cambaleios e choros, Johnny falou pela primeira vez em português mascavado a caminho de casa: "Elhe não gota de mim..." 

Seguiu-se a carga de lenha que D. Eugénia tão bem me aplicava no lombo. Pingos secos vermelho-criança ficaram anos a pintar o lajedo do jardim. Um lembrete do traste que eu podia ser e do Johnny que não tornei a ver.

Sinto todas as doenças ao achar que não gosto de alguém. Não gosto de achar que não gosto. Nunca mais soube não gostar desde Johnny. É o medo de, por afinal tanto gostar, enfrentar a imensidão do que em mim não gosto.

Johnny, tu que não me lês, ficas a saber que voltei a andar ao biscoito, não levei a porrada toda que merecia, mas nunca mais me fugiu um pedido de desculpa. Só falta mesmo pintar umas sardas, fingir que sou bonito e que me partam o nariz para ser bom como tu. Achas que é tarde?….



FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalista



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