MARIA VIEIRA DE
MESSINES
Aparecias-me
sempre cedo e a primeira coisa que perguntavas era se eu já metia as mãos nas
mamas das gajas. A desemburrar das pernas e enfiado num pullover de lã rafeira
que me fazia sentir enfiado num saco de serapilheira, lá ia o filho do doutor
para análises ao sangue e tu, Bia, a dar no batente a desoras, fora do local de
trabalho...
Queria que o fronde de Monsanto fosse nunca acabar de arvoredo a ladear estrada
ou que demorássemos tudo na descida da Pimenteira. Ansiava nunca chegar porque
saber a cantiga cantada a garrote e agulha. A porra das análises ao sangue.
"Porra" foste tu que me ensinaste num desvelo de vernáculos. Só
sossegava na antecâmara de mais um jejuador despertar esterilizado quando te
fisgava, à porta da clínica. Artilhada em banhos de ouro, cheiravas a laca.
Ali, à espera do herdeiro dos alicates. Perguntavas se o tamanho do meu
penduricalho aumentava e os meus nada púbicos sete anos respondiam que sim. As
mamas das gajas eram o assunto recorrente, mas só fiz carreira em apalpões
subsequentemente. Numas vezes safei-me. Noutras não. Lembro-me do teu desdém
por "paneleires", mas isso seria lá mais à frente do que agora fica
atrás. Estar com merdas não era bem o teu mester. Eras a Bia, mas descobri que
afinal era disfarce de Maria. Maria Vieira. De São Bartolomeu de Messines,
outra estreia absoluta nos meus ouvidos. Despertei em ti para remoques de
algarves e asneirada peluda, da rija. Fintámos juntos toda aquela gente feia e
ensimesmada nas salas de espera e dizias que eu tinha olhos de bichano. No fim
da seringadela, como me sentia trespassado pelo Scaramouche na asa picada,
normalmente acabávamos a bolos e meias de leite, já lá fora Lisboa era um
espavento. Estava quase sempre a chover. Compravas-me o último Almanaque Disney
com o patacôncio que o meu pai te deixara de antemão na Emílio Braga e ainda te
esmifrava um cowboy e dois indios em PVC.
Não sei se soubeste, mas uma vez levei uma injeção na bochecha esquerda da
pandeireta e deu-me um sarapantéu dos antigos no posto médico de Algés. Só
precisava de uma "carvalhada" das tuas como antídoto, mas foi da tua
ausência que quase morri da alergia à penicilina (decerto dizias mal penicilina;
descansa que da tua boca tudo me soava bem). Naquele susto, acho que foi a
primeira vez que disse "foda-se" e em homenagem à tua santidade
palavrosa.
"Olha para 'iste'... 'maldeçoades'", ruminavas tu quando voltavas ao
consultório do velhote, vinda das análises cá com o brotas, já a sala de espera
rebentava de clientes que te lixavam a porca antes de entrarem no gabinete para
dar boca e dente à broca. Eu? Bem, eu nessa altura gostava era do teu colo, de
te ouvir insultar pessoas com cara de enfado e de rires para mim enquanto
lixavas a clientela ao meu pai: "Menes um...", soltavas após o
despeitado bater de porta de mais um ofendido qualquer. Mais centímetros
depois, desvendei-te um lado erótico menos vestido, o teu desassombro a
recontares os cabritos e cabrões que tinhas esfolado - expressão tua, claro.
Um dia não estavas no sítio de sempre e foi para sempre. Deixaste de estar e
sem aviso prévio de permanente ausente. No dia em que o Rogério me disse que
tinhas morrido, pousei a bebida, larguei a dança e senti-me gelar. Nem
tartamudeei um "foda-se", como merecias.
Quando a manhã me torna a desemburrar em contragostos, tenho o meu único par de
seios fiéis por perto na modorra e julgo que vejo o passar de um puto com
cowboys e índios na mão metido num pullover serapilheiroso, penso na Maria
Vieira, de Messines. Se lhe roubasse um borbulharzinho de lágrima, isto de aqui
escrever valeria por tudo. Aposto que ela enxugava-se, chamava-me
"sacrista" e mandava-me à merda.
Percebo hoje a irreprimível tristeza das salas de espera e porque nelas sou o
mais só dos homens.
Por crescer, a única agulha que me pica é a saudade, Bia.
Todos os "bêjinhes"...
Filipe Alexandre Dias
Jornalista
Que linda homenagem Filipe!!! Parabéns pela tua capacidade de sentir!!
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