O Ford Granada do meu pai era
um corcel verde (já lá vamos, que não é inocente…) tinha o tamanho de um campo
de futebol, 3 000 de cilindrada, tragava a rua pela metade mesmo estacionado
rente ao meio fio do passeio e abrigava-me o imaginário. Era ligar o rádio, ver
a agulha passear horizontalmente até fazer ressoar uma voz domingueira
crepitante antes de se limpar quando caía estendida, certeira na estação que me
fazia sair da boca do túnel para sentir no peito o grito da bancada.
“À figuuuuura de Carlos
Padrão”, avisava o Ribeiro Cristóvão para o Alves dos Santos explicar como é
que se tinha chegado ali. Padrão e figura tinham tudo a ver. Claro que o Damas
para mim era tudo e tudo mas não o apanhei galã e felino na sua primeira vida
por cá; o Bento era um cerrar de dentes de um poste ao outro; o Tibi não me
dizia porra nenhuma e o resto dos guardiões, porteiros e arqueiros davam-me dó
só de os ver cabisbaixos a recolher a “menina” depois de trespassados por
Jordão, Nené ou Jacques. Mas o Padrão para mim era a contra-corrente, o grande
dos pequenos, uma lição de história.
Antes de saber que padrão
sabia a descobrimentos por todo o mar, já o Carlos guarda-redes me dava aulas
de luvas Uhlsport numa saída dos postes de pezinho levantado para afastar a
freguesia numa clara antecipação à História que me esperava nos livros. O
Carlos Padrão - ou “Cás Padrão” como Lisboa gosta de dizer -, tinha vindo ao
mundo no Lobito antes de eu saber que Angola era e é; jogara no Riopele que
afinal fora clube-empresa mas tinha uma fonética tão arrepiante quanto unhas a
passar na ardósia e saiu-me numa saqueta em cromo equipado à Setúbal (isso de
Vitória é só para vitorianos…), de bola laranja bem presa, supercílios escuros
a sombrear-lhe o olhos, rosto ossudo cortado a canivete e, cada vez que eu o
trazia à conversa para nos fazer companhia, o meu velhote soltava: “Ele já foi
nosso.” Tomei-o como vizinho que se tinha posto ao fresco lá da rua antes que
eu desse por ele, ou um familiar desavindo por uma dívida ao Tio Leonel, mas
claro que era a infinitude leonina do meu pai a falar, enciclopédica em tudo o
que era Alvalade e arredores – o Carlos Padrão, descobri depois, começou a
deixar de ser moço numa ex-metrópole suja de fresco quando chegou ao Sporting, cheio
de África até à última lágrima, à derradeira pinga de sangue.
Ora o Adriano preto de
Linda-a-Pastora sabia mais que eu em tudo o que metia cautchú, dois postes e
uma trave. Explicou-me que o Padrão também tinha passado pelo Leiria, andara
por Beira-Mar e Belém e o pulha sacou-me uma exibição de estalo no frescor de
uma tardinha de primaveras no pelado do Bairro dos Bombeiros. Num amigável
“ad-hoc”, a minha malta de Queijas metralhou o Adriano de Linda-a-Pastora de
todos os flancos e o escurinho cortava o ar, sacudia-a, segurava-a, esconjurava
todos os perigos porque o dia era dele. No arco oposto, eu engolia meio frango
por cada tiro e levámos um atesto dos antigos. A descer para casa no mastiganço
de mais uma humilhação, senti o Adriano dar-me um afago e dizer que o meu mal
era não saber voar. Depois, lá voltou ele para a barraca perto da granja onde o
Cesário Verde não curou uma tuberculose e eu voltei para casa onde não curei
mais uma derrota. Rendi-me da melhor maneira ao esplendor da minha inépcia num
treino particular de praia em que um mestre total chamado César Nascimento fez
um favor à família, me desenhou duas pirâmides por postes que para mim iam de
Cascais a Sintra e a quatro estilhos me fez engolir toda a areia da minha falta
de vocação quando a conversa era defender.
Sempre que eu voltava ao
Padrão e o perscrutava onde o tinha deixado, ele já lá não estava e demandara a
outra latitude. Gostava de me apanhar distraído. Fez furor em Chaves, foi
campeão no FC Porto, meteu Paços de Ferreira, Boavista e mais uns quantos na
extensa folha de serviço e parece que ainda teve um arroubo de pivô de andebol
em Olhão porque a grandeza é feita de mãos, pés e tudo.
Os anos vararam e o jornalismo
apanhou-me por aí. Travámos conhecimento, metemos conversa. Damo-nos muito bem.
Não será inconfidência dizer que somos grandes amigos. O Padrão apareceu-me
depois. Topei-o por Alvalade, apertei-lhe os ossos fugazmente no Bonfim onde o
tive em cromo e trocámos amenidades curtas na sociedade das redes de hoje.
Muito por culpa da Neuza, filha dele. A Dona Miúda, uma taramela excelentíssima
que nasceu para indagar e contar.
Tentei ser concorrência do
Padrão a todo o campinho de várzea e falhei miseravelmente, mas a história
agora conta-se ao contrário. O homem vai agarrar-me e eu nem bola sou. É que
ele voltou a sentir Alvalade como casa, é comentador de fala fluída e, se
começa a escrever, arrepio-me só de imaginar o capítulo seguinte depois do que
me ensinou e fez sonhar sem nada dizer.
Mas o peso dos ilustres não
pesa e se o Padrão também já esquadrinha o relvado da comunicação para
perguntar como é, espere pelo toque que ainda vai ter de me dar resposta ao
mistério que me fugiu tão lépido quanto a Andreia do 8º7ª quando a convidei
para jogar ao bate-pé e ela meteu o pé na tábua a chamar pelo pai.
“Como é que se faz para voar,
senhor Padrão?...”
De certeza que me fará a
fineza de desvendar o segredo.
Quem viveu pelos ares, vive
maior.
FILIPE ALEXANDRE DIAS
Jornalista
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