quarta-feira, 8 de março de 2017

Como é isso de voar, Sr. Padrão?







O Ford Granada do meu pai era um corcel verde (já lá vamos, que não é inocente…) tinha o tamanho de um campo de futebol, 3 000 de cilindrada, tragava a rua pela metade mesmo estacionado rente ao meio fio do passeio e abrigava-me o imaginário. Era ligar o rádio, ver a agulha passear horizontalmente até fazer ressoar uma voz domingueira crepitante antes de se limpar quando caía estendida, certeira na estação que me fazia sair da boca do túnel para sentir no peito o grito da bancada.

“À figuuuuura de Carlos Padrão”, avisava o Ribeiro Cristóvão para o Alves dos Santos explicar como é que se tinha chegado ali. Padrão e figura tinham tudo a ver. Claro que o Damas para mim era tudo e tudo mas não o apanhei galã e felino na sua primeira vida por cá; o Bento era um cerrar de dentes de um poste ao outro; o Tibi não me dizia porra nenhuma e o resto dos guardiões, porteiros e arqueiros davam-me dó só de os ver cabisbaixos a recolher a “menina” depois de trespassados por Jordão, Nené ou Jacques. Mas o Padrão para mim era a contra-corrente, o grande dos pequenos, uma lição de história.

Antes de saber que padrão sabia a descobrimentos por todo o mar, já o Carlos guarda-redes me dava aulas de luvas Uhlsport numa saída dos postes de pezinho levantado para afastar a freguesia numa clara antecipação à História que me esperava nos livros. O Carlos Padrão - ou “Cás Padrão” como Lisboa gosta de dizer -, tinha vindo ao mundo no Lobito antes de eu saber que Angola era e é; jogara no Riopele que afinal fora clube-empresa mas tinha uma fonética tão arrepiante quanto unhas a passar na ardósia e saiu-me numa saqueta em cromo equipado à Setúbal (isso de Vitória é só para vitorianos…), de bola laranja bem presa, supercílios escuros a sombrear-lhe o olhos, rosto ossudo cortado a canivete e, cada vez que eu o trazia à conversa para nos fazer companhia, o meu velhote soltava: “Ele já foi nosso.” Tomei-o como vizinho que se tinha posto ao fresco lá da rua antes que eu desse por ele, ou um familiar desavindo por uma dívida ao Tio Leonel, mas claro que era a infinitude leonina do meu pai a falar, enciclopédica em tudo o que era Alvalade e arredores – o Carlos Padrão, descobri depois, começou a deixar de ser moço numa ex-metrópole suja de fresco quando chegou ao Sporting, cheio de África até à última lágrima, à derradeira pinga de sangue.

Ora o Adriano preto de Linda-a-Pastora sabia mais que eu em tudo o que metia cautchú, dois postes e uma trave. Explicou-me que o Padrão também tinha passado pelo Leiria, andara por Beira-Mar e Belém e o pulha sacou-me uma exibição de estalo no frescor de uma tardinha de primaveras no pelado do Bairro dos Bombeiros. Num amigável “ad-hoc”, a minha malta de Queijas metralhou o Adriano de Linda-a-Pastora de todos os flancos e o escurinho cortava o ar, sacudia-a, segurava-a, esconjurava todos os perigos porque o dia era dele. No arco oposto, eu engolia meio frango por cada tiro e levámos um atesto dos antigos. A descer para casa no mastiganço de mais uma humilhação, senti o Adriano dar-me um afago e dizer que o meu mal era não saber voar. Depois, lá voltou ele para a barraca perto da granja onde o Cesário Verde não curou uma tuberculose e eu voltei para casa onde não curei mais uma derrota. Rendi-me da melhor maneira ao esplendor da minha inépcia num treino particular de praia em que um mestre total chamado César Nascimento fez um favor à família, me desenhou duas pirâmides por postes que para mim iam de Cascais a Sintra e a quatro estilhos me fez engolir toda a areia da minha falta de vocação quando a conversa era defender.

Sempre que eu voltava ao Padrão e o perscrutava onde o tinha deixado, ele já lá não estava e demandara a outra latitude. Gostava de me apanhar distraído. Fez furor em Chaves, foi campeão no FC Porto, meteu Paços de Ferreira, Boavista e mais uns quantos na extensa folha de serviço e parece que ainda teve um arroubo de pivô de andebol em Olhão porque a grandeza é feita de mãos, pés e tudo.

Os anos vararam e o jornalismo apanhou-me por aí. Travámos conhecimento, metemos conversa. Damo-nos muito bem. Não será inconfidência dizer que somos grandes amigos. O Padrão apareceu-me depois. Topei-o por Alvalade, apertei-lhe os ossos fugazmente no Bonfim onde o tive em cromo e trocámos amenidades curtas na sociedade das redes de hoje. Muito por culpa da Neuza, filha dele. A Dona Miúda, uma taramela excelentíssima que nasceu para indagar e contar.
Tentei ser concorrência do Padrão a todo o campinho de várzea e falhei miseravelmente, mas a história agora conta-se ao contrário. O homem vai agarrar-me e eu nem bola sou. É que ele voltou a sentir Alvalade como casa, é comentador de fala fluída e, se começa a escrever, arrepio-me só de imaginar o capítulo seguinte depois do que me ensinou e fez sonhar sem nada dizer.

Mas o peso dos ilustres não pesa e se o Padrão também já esquadrinha o relvado da comunicação para perguntar como é, espere pelo toque que ainda vai ter de me dar resposta ao mistério que me fugiu tão lépido quanto a Andreia do 8º7ª quando a convidei para jogar ao bate-pé e ela meteu o pé na tábua a chamar pelo pai.

“Como é que se faz para voar, senhor Padrão?...”
De certeza que me fará a fineza de desvendar o segredo.
Quem viveu pelos ares, vive maior.



FILIPE ALEXANDRE DIAS 
Jornalista



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